quarta-feira, 14 de julho de 2010

Paulista - Inédito

Paulista


Paulista foi meu pai de rua em BH. Me ajudou, me acolheu e até me chamava de “fio”. Eu vim subindo pela Afonso Arinos de besteira, recém chegado ainda, quando senti o cheiro da ganja forte e prensada do Paraguai que eles usam por lá.Encostei no cara, fumava ele e um pivete que eu já vira no sinal da Afonso pena, pedindo dinheiro pra as madames nos carros. Foi só chegar: _ São meus fios esses aí - ele me disse apontando o outro neguinho que se achegou na roda: _ nós somos uma famía... e parou sugando o cigarro de erva, olhando com o rosto inclinado, pralgum nada profundo( Eu ia me acostumar com isso, sempre que sua filosofia pedia alguma reflexão mais demorada): _ é fio, nós somos uma famía, repetiu olhando ainda algum ponto atrás da minha cabeça: _ Só falta uma mãe, não é? Mas isso eu arranjo essa semana, pode contar! Era Seu jeito: o que tinha de ser, tinha de ser!

Desse jeito eu entrei pra a família, nesse movimento. Meu destino era São paulo, mas Belo é uma passagem que sempre emperra o cara uns dois meses até seguir na viagem. Se, pressão, eu tava dormindo num albergue lá na Lagoinha, em vista de uma passagem com a assistente social da prefeitura. Buscar trabalho, fazer dinheiro, comprar um barraco numa dessas favelas que agente ouve os nomes nas letras de Rap. Paulista que me ensinou das ruas do Centro:

_ Olhe Fio, eu posso te ajudar, e tal, uma mão lava outra e tal. Eu tenho um trabalho aí, que eu faço e tal, uns barco de papelão com palitos de fósforo. Cê é bem chegado na nossa família, cê ajuda nóis que nóis ajuda ocê.

Paulista devia ter seus trinta anos, gordo não, forte. Preto como um africano, cabeça raspada sob um boné do Corinthians que não saía pra nada. Sempre de bermuda e tênis, camisa de futebol. Tinha o Gui, seu mais velho, de dez anos, que guardava carros na praça, e o ivan, que ele só chamava por “neguinho”, e era o que pedia no sinal.

_ Tem esse cachorro aí fio, que é da famía também, ta ligado, fica com nóis e não pega nada pra ele, que de noite no cio, é ele que avisa de movimento.

Os meninos eram parecidos, filhos da mesma mãe, eu presumi, já que não eram muito parecidos com o pai, e o Neguinho era mais escuro que o Gui. O Cachorro era um típico vira-latas sarnento mesmo, que vivia amarrado por um fio de corda de varal, na árvore do ponto de ônibus que sobe pra a Savassi. Eu pegava seis da manhã com o Paulista no ofício de fazer os barcos de palitos de fósforo. Armávamos nossa oficina e loja num banco da praça. E a cidade se movimentava ansiosa à nossa volta, executiva e progressista, enquanto nós só pensávamos em arrancar a cabeça dos palitos e colá-los no lugar certo. Logo às seis e meia, ele me passava uma nota de um Real e me dizia:

- Fio, uma garrafa de 51 pra nóis, e olhe fio, veja no jornal que time daqui que ganhou no Domingo, pra saber de que cor nóis faz os barcos hoje, branco e preto, ou azul e branco. Eu ia e olhava os resultados dos jogos do Atlético e do cruzeiro.

Nem me dei o trabalho de perguntar: já no segundo dia, eu estava sozinho fazendo um barco do Flamengo, e um núbio pôs a cabeça pra fora da janela de um ônibus que subia pra a Serra e gritou:

- É vagabundo, eu também sei fazer desse barco! Já ganhei muita hora fazendo desses barquinho meu cumpadi, e aprendi no mesmo lugar que você! Eu acenei positivamente, o ônibus seguiu e eu fiquei cortando ali os moldes dos barcos, tirando minhas conclusões de bom entendedor.

-É fio, ele dizia, eles pensam que nóis bebemos ( ele tinha mesmo uns de repente de concordância verbal) pra ficar chapado, e não botam fé que nóis bebemos é pra ficar careta. Eles não sabem que na rua, se ficar de cara, o homem pira o cabeção, então nossa caninha é que segura agente de cara!

Logo de manhã e ele saía com uma dessa. Aí dava uma bicada na garrafa de refrigerante cheia de cachaça e levantava pra fazer as tranças de lã, que nós usávamos pra fazer o acabamento dos barquinhos: Azul e branco era da Máfia Azul, preto e branco era da Galoucura, vermelho e preto do Flamengo e verde e branco do Palmeiras. Uma tiazinha levou dois do atlético pro neto dela, e o negão me deu metade da grana, mesmo com o material ser todo dele. Mais tarde ele chamava o Gui e o Neguinho pra beber um pouco de cachaça com agente e depois despejava um trago na guela seca do cachorro. O pequeno Ivan fazia uma careta leve, mas segurava. Eu até me assustei da primeira vez:

- Ele não é muito novo?

- Nóis vivemo narua fio, eles se perdem fácil, e nóis somos uma famía e tal, eu tenho que mostrar pra eles toda hora que eles também faz parte, que eles são igual a nóis, senão eles se perdem fácil, e o cachorro vai também!


- Casa fio, prende agente num lugar só, agente vira bicho enjaulado. Aqui eu faço minha casa onde eu quiser e carrego minha casa comigo. Cada noite eu posso escolher um coió onde nóis vai dormir e sou eu quem faço a casa e não ela que me faz, ta ligado? Melhor do que ter as coisas pra perder é você ter o que não pode perder, ta ligado? Eu qualquer dia desse vou é pra Bahia, e minha casa vai ser lá também!

Então fumávamos um fino paraguaio, o bazycrazy, pra abrir o apetite e revezávamos pra almoçar num self-service de dois reais em frente ao Parque Municipal, como quem vai pra a Praça da estação. Nada de riso à toa, nada de lombra, era só pra aumentar o campo de atenção. Eu notei Logo que o povo da rua respeitava o meu tutor com um quase medo, e depois que eu me tornei um “ menino do Paulista”, esse respeito se ampliou à minha pessoa e até lugar na fila da Padaria, vagabundo me oferecia. Eu tirava um cochilo entre os desocupados do parque, olhava as pretas da Serra dançando funk em volta de um radinho, sol de verão na cidade sem mar, refletia na água da lagoa, cortada pelos caiaques alugados. Os sem-teto de um lado, os Rappers e funks do outro, os viados lá atrás das quadras.

O Neguinho no sinal ganhava quase que o mesmo tanto que nós com os barcos, a cara de menor abandonado. O Gui também tirava sua grana pastoreando os carros, e comprava sua própria ganja. Éramos uma família feliz. Fui eu que dei a idéia de cozinhar na praça, em minhas primeiras experiências gastronômicas. Improvisei um fogão à lenha com uma lata de 20 litros, compramos uma panela, racahamos uns caixotes de madeira e eu fiz arroz com verduras e ervilhas. No outroi dia, ele cozinhou uns pimentões recheados com carne moída, e no domingo comemos pirão de peixe, no coió, numa rua que era descida prar o Mercado. Sem camisas, abríamos um encanamento embutido no subsolo da praça, e tínhamos água limpa pra tomar banho e lavar as roupas. Nesses momentos, os meninos brincavam de ser crianças e corriam e se molhavam puxando o cachorro pra cima e pra baixo, enquanto nós colocávamos as roupas pra enxugar sobre o capim.

Paulista não sabia ler, e me confiava os seus documentos:

- Isso aqui, é um extrato bancário, meu irmão, e você tem 4 mil paus no banco, ta ligado? Deve ter vendido barco pra caralho. Pôrra Paulista, cê vendeu 4 mil reais de barco?

- Barco vende né fio? - ele disse irônico, e depois de uma pausa continuou:

- Mas eu vendo é maconha, ta sabendo? Cada buraco daquela praça tem maconha minha enterrada, e vende que nem água, ta ligado? Aí dá pra juntar uns trocos pra qualquer emergência minha ou dos meninos e tal, se você tiver afim, eu te ponho aí noserviço e nóis divide tudo meio a meio.

- Eu agradeço de coração, meu irmão, sua confiança, mas pra mim é o lance dos barcos mesmo, ta sabendo? Eu to indo pra São Paulo, não posso arriscar pegar um 12 agora, eu não tenho parente, nem família, nem ninguém pra me garantir. Então eu sigo nos barcos e pra mim ta às pampa!

- Sossegue fio, fique com os barcos mesmo, eu já cumpri meus tempo, ce ta ligado? Hoje polícia nem me mexe, e tal. Às vezes tem de botar uma grana, uma garrafa de uísque, ou umas balas de 38 que eu compro lá no Papagaio, mas sem enquadração. Fique nos barcos, que eu movimento a boca, mas fique de olho aberto!


Realmente eu já tinha notado o movimento dum guardinha que passava toda semana, chegava como quem não quer nada, escolhia um barco, jogava uma conversa fora e saía sem pagar. Tinha também o Neinho, um filhinho de papai, quer dizer, um ex-hippie viciado. Já na faixa dos seus 45, que colava em nossa oficina atrás de um pouco de pó. Inteletual, o inútil, sua mãe era uma política importante da BHcity, e ele vinha semanalmente, cabelos embranquecendo, cara chupada de décadas de drogas, tiques nervosos nas articulações:

- Qual é cara? Ta me tirando, Eu tive em Arembepe, com a Janis Joplin, eu vivi em Londres em 1977, tá entendendo?

- Porra Neinho, deixe o meu menino quieto fazendo barco! Pôrra Neinho, ô Dona, leve um barco do cruzeiro pro teu menino, 20 Real com desconto pra a senhora, Dona!

Anoitecia, a cidade voltava pra casa, Belo Horizonte chic, entre o provincianismo nordestino e a sofisticação sulista, eu sorria, muito pela distração do álcool e da ganja. Neinho satisfazia nossos egos afro-marginais:

-Você fez tudo isso- dizia Paulista- mas agora tem de vir aqui implorar pra nóis um pouco de cocaína. Vai Neinho, vai pra casa sô, e trais outro relógio bonito daqueles, que nóis te arruma um pouco de pó!



Passei um dia todo na assistente social, pra ver lance das passagens, à noite, subi a Rua Bahia em direção à Afonso Arinos. Ainda ganhei um copo de sopa que as boas almas samaritanas distribuíam toda noite pros vagabundos e mendigos da Rua Paraná. Na praça. Paulista tinha arrumado uma namorada:

- Essa aqui é a Poderosa, fio. Nóis se conhecemo ontem a noite e nóis se amemo aqui mermo na praça. Nóis se amemos duas vezes e a poderosa vai ficar com nóis agora, dar uma força pra olhar os meninos, adiantar uma alimentação. É minha mulher agora, a Poderosa!

Poderosa era um ser mitológico: idade indefinida, raça indefinida, sexo indefinido. O álcool levara suas feições embora, seus dentes, e boa parte dos seus neurônios. Sentada do nosso lado, passava as horas a xingar, amaldiçoar e reclamar, saindo desse transe somente pra estender a mão em direção à garrafa.

Agora éramos uma família perfeita: Paulista e Poderosa, os dois meninos, o cachorro sem nome, e eu, o agregado. Via Paulista satisfeito. Pela manhã desencaixotávamos as coisas, eu comprava a cachaça. Comíamos uns pães e começávamos a preparar os palitos de fósforo, cortar e colar os moldes de papelão, recortar os papéis coloridos nas cores dos times, fazer as tranças de lã pro acabamento, pôr os barcos pra secar, atender os clientes, parar pra fumar uma pra abrir o apetite, almoçar e fumar um pra ajudar na digestão, enquanto meu patrão atendia um ou outro cliente que aparecia. À noite acendíamos uma fogueira com restos de caixotes de feira e ficávamos em volta das chamas, esquentando os nossos rostos e fazendo mover-se a dança horrível de nossas sombras. Bebíamos cachaça e fumávamos erva mesclada com coca. Às vezes Neinho aparecia, e nos divertíamos humilhando-o. Ou o Primo, um paraibanocompadre do meu sócio, e que nos distraía contando histórias de banzo e as novidades das páginas policiais.

Uma manhã, notei o negão mais sério que o habitual, e perguntei:

- É o Gui, fio, sabe que o moleque teve a ousadia de me dizer que minha maconha ta fraca?- Era um pai introspectivo, refletindo sobre a melhor maneira de tratar com um filho rebelde. Ainda com um ar pensativo, continuou:

- Eu crio meu menino é pra a rua, fio, pra esse mundo que nóis vive. Ele tem de saber que é duro, e tem de ser homem pra pra assumir cada coisa que ele fala. Eu gostei da ousadia dele, teve coragem, o pivete. Eu disse a ele que tudo bem, que ele tava falando pro pai dele o que ele achava que devia falar, se ele achava que devia me falar isso, e coisa e tal. Disse pra ele que ele saísse hoje e só voltasse com a maconha dele, e se não fosse melhor que a minha, ele nunca mais ia fumar com a gente.

Gui saiu cedo, deixou o neguinho no movimento de pastorear os carros, e a Poderosa ficou dormindo encostada numa árvore. Almoçamos, e só pras quatro da tarde o menino voltou, calado, e assumiu seu posto de guardador de carros, sem dar uma palavra. De noitinha, depois de termos guardado o material de trabalho, nos sentamos em volta da fogueira, eu, Paulista, Gui, Neguinho, a Poderosa e o Cachorro, que parecia entender a sobriedade do momento: nem latia, nem gemia, nem gania.

Como era de costume, Paulista estava impassível. Sentou-se como um sultão, sério como Omoro, na primeira viagem a pé de Kunta Kintê. Gui tirou um pedaço de um tijolinho da ganja paraguaia, e dichavou em cima de um dos bancos, a cidade era cega pra a nossa cerimônia. Apertou um baseado de tamanho bom, contando que a diamba prensada concentra mais THC que a erva nordestina, a cabeluda, famosa Elba ramalho. O baseado passou na roda, duas, três vezes. A cachaça por cima pra rebater, e depois o silêncio se manteve, A onda bateu forte dentro da minha cabeça, que se abriu como um foco de luz em todas as direções, eu estava muito louco, com profundas emoções pungentes emoldurando o quadro da nossa miséria, as luzes se fundiam aos sons longínquos da city fantasma, vapores subiam do chão úmido. “ Eis que começou de forma tão vulgar, e termina assim, com anjos de fogo e gelo...” é esse torpor não podia durar por mais de alguns minutos, sob o risco de nos tornarmos vítimas da cadeia alimentar urbana. Levantamos e buscamos algo o que fazer. Paulista continuava sério, em silêncio, e isso queria dizer que o menino passara no teste, mas não haveria demonstração de euforia, ou mesmo cumprimentos. Ele permanecia no grupo, e sua palavra agora tinha peso de responsbilidade.

Mais tarde, quando dormiam os meninos, foi que o negão veio todo alegre, com um sorriso de orelha a orelha, já enrolando outro fino com a maconha do Gui:

- Cê viu fio? Cê viu? O menino firmô! Cê viu que maconha boa que o moleque trouxe pra nóis? Moleque danado, tá às pampa agora o moleque, desafiou e cumpriu, vamo fumar essa maconha: Era um pai orgulhoso, dum menino de dez anos.


Tempo em que eu arrumei pra namorar uma punk que fazia ponto ali na estátua do soldado patriota. Ele me disse:

- Uma punk? Esses punks daqui são todos do asfalto fio, nóis é do morro! Nóis vive aqui, mas nóis é do morro , não deve se misturar!

- Eu tô gostando dela Paulista... e ela de mim também!

Ele acendeu um cigarro, coisa que nunca fazia. Ele não fumava, somente um cigarro de vez em quando:

- Fio, escuta uma coisa que eu vou t dizer: Mulher não gosta de ninguém, só dela mermo!


Certo, sei que fiz planos, me apaixonei, ela morava na Savassi, a patricinha, e me levava pro seu apartamento de luxo quando seus pais estavam na rua, e eu gostava de comê-la de quatro em cima da cama do casal, bebendo vinho do Porto e fumando a maconha do Gui, de primeira qualidade, que empesteava o quarto. fizemos planos, íamos pra São paulo juntos, assim que saísse a passagem da assistente social, e ela ia me hospedar na casa de uns punks amigos dela, até que eu arrumasse trabalho. em troca tinha que me enfiar com força, e fazer valer o seu dinheiro.

As coisas coincidiam. Uma noite saí com o patrão pra roubar, faziam 10 graus, apesar do céu estrelado, e eu precisava de uma grana pra sair da dependência da passagem da prefeitura, e pra a branca não achar que eu tava vivendo às custas dela, um pouco de dignidade não faz mal a ninguém. portávamos cada um uma peixeira, a noite era fria, subimos como desconhecidos até os bares que ficam próximos à Praça da liberdade. As ruas das cercanias ficavam desertas e nós nos pusemos na escolta de algum playboy que pensasse em buscar o carro estacionado. esperamos cerca de 40 minutos, escondidos cada um de um lado da rua. Vestia um blusão de frio, calça jeans, gorro de ladrão, eu era um flagrante ambulante.

Vinham três, um casal e mais uma acompanhante. A bolsa dela, alvo. Mais as carteiras dos dois parmalats, os três relógios, só fazer. Os faróis de algum carro longe enegrecia suas silhuetas, esticavam suas sombras e eles andavam numa alegria nervosa, apressando os passos em nossa direção. Foi um enquadre rápido e limpo. Faca na garganta, silêncio, coleta feita, se gritar parar de nadar, olhar pra trás, morre. Cada um de nós pra seu lado, mais tarde nóis comemora fumando maconha de Gui no Coió.

Eu desci no sentido inverso, em direção aos botecos próximos à rodoviária. O frio já transpusera o pano do blusão, entrei num barzinho fuleiro, meus dezessete anos, pedi uma vodca com refrigerante de limão e um tiragosto de salame. vagabundo olhava de canto de olho, umas putas sorriam, seu riso de anzol buscando peixe bobo. paguei e segui em direção do lugar combinado. Somente os meninos dormiam, e o cachorro e a Poderosa. Dormir sentado, esperando o mano que só chegou duas horas depois, com a cara partida e ensanguentada, o queixo deslocado, inchado, deformava suas feições e dois dos seus dentes da frente estavam partidos. Falava sôfregamente, sem poder mover o maxilar. Os caras tinham seguido ele, com outros, de carro, e o cercaram na rua de cima, tentando espancá-lo. No rosto, tinha sido o fundo de uma garrafa de cerveja, certeira. a peixeira ele deixara enterrada lá nas costas de um, e esse foi o ponto que ele fugiu, enquanto os outros iam prestar socorro ao amigo. Agora eu tinha de ficar ali olhando os meninos

- Disfarce o dinheiro na cueca do Gui, e finja que está dormindo. Eu vou procurar um médico conhecido meu. E saiu segurando a boca.

Peguei no sono, cansado, fui despertado por chutes de coturnos militares. Apanhei pouco, alguns murros mais, e cassetetadas, pra mim dar o serviço do irmão, mas eu bati pé firme, a bem da verdade, que eu era um pobre migrante nordestino indo pra São Paulo, que se interessara em aprender o negócio dos barcos, e tomava conta dos meninos pra ajudar. No mais, não sei, não vi, não sou, morro cadeado. Os gambés saíram doidos, que a próxima vez que me vissem com o paulista, iam me fazer assinar um 57, e eu ia ver como é bonita BH.

Pois então, o mano voltou todo sorridente, uns dias depois, enquanto nossa indústria naval ficara sob minha responsa. mostrou as mãos enfaixadas, de apanhar no xadrez, que pagou uma grana pros policiais pôr ele na rua . que tinha posto dente novo e o queixo logo ficava bom. Que a cidade era dele e que eu ficasse sossegado. Mas não, daquele homem duro, juro que eu arranquei uma lágrima, quando lhe mostrei a passagem da prefeitura.

Tempo foi, do Paulista eu soube que foi pra Brasília, e mais tarde, que o Gui tentara matá-lo, que tinha tirado outra cadeia, mas que já tava solto, fazendo seus barcos de araque. Do que eu conheci dele, deve ter ficado orgulhoso do filho, feito homem para as ruas, garras afiadas de predador, no topo da pirâmide alimentar. Eu já fui e já voltei por ali algumas vezes, e quando posso, pergunto aos amigos de outras terras, se por acaso não se avistaram com o meu pai de rua, vendendo barcos coloridos numa praça qualquer pelo mundo afora.


Mandingo

24/25 de Março de 2006

Um comentário:

  1. VIVA O POVO DA RUA! Parabens por mais esse conto, que mostra uma visao da vida na rua livre das hipocrisias dos cristaos.
    Saude e Sorte!
    7Folha

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