sábado, 27 de setembro de 2014

Etnocentrismo Europeu e Contemporaneidade - Fábio Mandingo

Resumo – O presente ensaio visa tratar das limitações do pensamento europeu e das mistificações a seu respeito, e a impossibilidade de reformá-lo sem um exercício honesto de crítica. Tecendo um diálogo com linhas historiográficas e filosóficas divergentes ou não centradas na Europa, analisar aspectos presentes no etnocentrismo europeu alçado à posição de normatividade, buscando entender de que forma essa perspectiva etnocêntrica universalista afetou a percepção do europeu a respeito de si mesmo e do mundo, em seus movimentos históricos e construções filosóficas. Palavras Chave: Etnocentrismo, cultura européia, pensamento europeu
Introdução
O mundo acadêmico, espaço onde o conhecimento especializado é produzido e legitimado, é entre outras coisas, um espaço de poder. Como poder, entendemos a capacidade de definir um fenômeno e conduzi-lo a partir desta definição. Desse modo, a legitimidade do conhecimento produzido na academia, está respaldada socialmente na percepção da Universidade enquanto espaço excelente da produção de conhecimento e de conceitos, tornando aquele que fala desde a academia, apto para conduzir os fenômenos sociais sobre os quais trata, a partir da sua definição própria. Nas duas últimas décadas, o Brasil tem sido palco de diversas discussões públicas e acadêmicas a respeito da Universidade – e é o que queremos significar quando utilizarmos o termo academia – enquanto espaço de construção de poder e, a partir disso, espaço de exclusão social. O entendimento da academia enquanto espaço socialmente privilegiado, deu origem às até aqui polêmicas políticas públicas de reparação e ações afirmativas, através de medidas como as cotas raciais para o acesso ao ensino superior. Pesquisas e censos(1) têm sido realizados nos últimos anos, e atestam – não sem levantar outras discussões – a efetividade da permeabilização étnica da Universidade Pública a partir da adoção das cotas raciais por grande parte das universidades brasileiras, bem como a equidade do desempenho dos estudantes cotistas no quadro geral do desempenho estudantil. O etnocentrismo eurocêntrico da universidade, no entanto, faz parte de uma série de estruturações em sua constituição, que serão aspectos mais longamente discutidos e dialogados, até que alguma transformação efetiva possa ser sentida e repercutida no sentido de incluir verdadeiramente os tradicionalmente excluídos de seu espaço, agora excluídos dentro dela por perspectivas e abordagens que não inserem seus pontos de vista e paradigmas divergentes, na constituição do saber legitimado.
Importante para nossa pesquisa, que trata dos conflitos entre professores e alunos de escolas públicas situadas em bairros periféricos de Salvador a partir da perspectiva do aluno enquanto agente social inserido no contexto histórico da população afro-brasileira, é analisar aspectos do etnocentrismo europeu presentes nas linhas gerais do pensamento ocidental e que perpassam diversos autores, mesmo alguns dos mais críticos entre eles. Embora alguns desses lugares-comuns etnocêntricos não passem de falácias facilmente desarticuladas por qualquer advogado de esquina, o lugar a partir de onde são gestados e reproduzidos, fornece a legitimidade necessária para que atuem como verdades poderosas e, como tais, conduzam fenômenos e instituições. É nesse sentido, que nos dedicamos nesse ensaio, a uma análise inicial a respeito da historicidade do pensamento europeu, tendo em vista que foi desde uma perspectiva idealizada sobre a própria Europa, de uma visão limitada e estereotipada sobre o não-europeu, e de uma busca por solidificar fenômenos sociais dinâmicos, que partiram os projetos universalistas europeus que ainda hoje tratam da alteridade como apenas mais um objeto do olhar eurocentrado. A continuidade e os efeitos dos projetos universalistas europeus no cotidiano das populações não-européias, inclusive no que diz respeito às perspectivas pulverizadoras como a assim chamada pós-modernidade, nos faz perceber a importância de enunciar desde fora do lugar europeu do pensamento, com Bob Marley: “ Nos recusamos a ser o que vocês querem que nós sejamos. Nós somos o que nós somos, e é desse jeito que vai ser.” ( Bob Marley - Babylon System – 1979) (2)
1- Europa – Uma Civilização tardia
A idéia do pioneirismo grego no que diz respeito ao desenvolvimento das ciências e do racionalismo, é a base sobre a qual se assentam a maior parte dos pressupostos eurocêntricos. Mais pernicioso que declarações explícitas de racismo com a de Hegel, que afirmou não terem os povos africanos apresentado “nenhuma contribuição ao desenvolvimento humano” (3), orações mais sutis com a que declara ser a Grécia o “berço da civilização”, executam de forma muito mais segura o serviço renascentista de entronizar o mundo greco-romano como matriz civilizacional da Europa pré-moderna, usurpando numa frase casual todas as contribuições dos povos não europeus para a constituição dessa herança, ao mesmo tempo em que consolida em forma de pensamento ‘histórico’, uma proposição pseudocientífica mais tarde rechaçada por Louis Pasteur: a da geração espontânea. A própria imagem metafórica que nos traz a idéia de “berço”, nos propõe reflexões inúmeras a respeito da origem da criança contida no berço, quem construiu o berço, quem foram mãe e pai da criança, entre outras. É Heródoto, o grego chamado de “pai da história” pelos eurocentristas, que nos oferece pistas sobre a origem e os pais da criança:
“Estender-me-ei mais no que concerne ao Egito, por encerrar ele mais maravilha do que qualquer outro país; e não existe lugar onde se vejam tantas obras admiráveis, não havendo palavras que possam descrevê-las.”
(4)
“ Quase todos os nomes dos Deuses passaram do Egito para a Grécia”
(5)
“Disseram-me ainda os sacerdotes que Sesóstris realizou a partilha das terras, concedendo a cada Egípcio uma porção igual, com a condição de lhe ser pago todos os anos certo tributo. Se o rio carregava alguma parte do lote de alguém, o prejudicado ia procurar o rei e expor-lhe o acontecido. O soberano enviava agrimensores ao local para determinar a redução sofrida pelo lote, passando o dono a pagar um tributo proporcional à porção restante. Eis, segundo me parece, a origem da geometria, que teria passado desse país para a Grécia.”
(6)
“ A medicina está de tal maneira organizada no Egito, que um médico não cuida senão de uma especialidade, há médicos por toda a parte, uns para a vista, outro para a cabeça, estes para os dentes, aqueles para os males do ventre, outros enfim, para as doenças internas”
(7)
A Europa é uma civilização tardia. Mesmo as cronologias mais otimistas localizam a chegada dos primeiros grupos humanos classificados como gregos, os micênicos,em cerca de 1.400 a.C. quando o Egito, por exemplo, já contava mais de 2 mil anos de Império Unificado! (BURNS, 1978, p,58) Também já eram seculares os Impérios da Mesopotâmia e do Vale do Indo, e ainda assim, a Grécia nunca conseguiu se organizar enquanto Estado, sendo esta somente a classificação da região que continha Cidades separadas que se entendiam enquanto gregas. Mesmo a produção filosófico-científica-cultural que é arbitrariamente classificada como pertencendo à “Antiguidade Clássica”, dificilmente poderá ser datada antes do século VI a.C. (BURNS, 1978, p 169) Talvez o grande pioneirismo grego tenha sido o da separação entre a ciência e a religião, como aponta Theodor Adorno, referindo-se à simbologia do desafio de Ulisses contra os Deuses, que aliás, eram Egípcios, como nos atesta outra vez Heródoto. A separação entre a racionalidade e o sentimento de sagrado e da divindade presente em todos os seres e coisas, é talvez a principal marca do que se constituiu historicamente como “civilização européia” (ADORNO, 2002, pg. 24).
Como nos propõem o economista queniano Walter Rodney em seu “Como a Europa subdesenvolveu a África”, a importância da ética religiosa de algumas civilizações não-européias, com todos os seus “isso não pode” e “isso não fazemos”, pode ter representado o freio para que algumas dessas civilizações, não tenham historicamente escolhido o modelo europeu de desenvolvimento(RODNEY, 1975,p 16). Nesse sentido, lembramos que a primeira perspectiva de pensamento humanista a se difundir profundamente na Europa, o Cristianismo, é uma perspectiva estrangeira e recomendamos ainda, a leitura das 42 Leis de Maat, suprassumo do código de ética egípcio que, segundo os arqueólogos, era observado desde o Faraó até os camponeses. (BUDGE, 1993, pg., 322) No entanto, a influência do Império Egípcio e das demais civilizações do Oriente Próximo, sequer é aventada pelos propagandistas da idéia de que a Grécia seria o “berço da civilização”. Do mesmo modo, o fato de grande parte dos pensadores gregos de relevância nas mais diversas áreas terem estudado no Egito, o fato de toda a mitologia grega ter sido copiada da egípcia, da matemática, química, arquitetura, medicina egípcia terem fornecido as bases para a constituição do pensamento grego, é omitido da história e dos discurso do pensamento europeu contemporâneo, inclusive por seus pensadores mais críticos e supostamente lúcidos, que reproduzem a idéia de que o “berço da civilização” teria gestado a sua “criança”, literalmente do “nada”, sem atentar que, parafraseando Heródoto, “A Grécia é uma dádiva do Egito”. Quando Heródoto entre outros pensadores gregos e romanos nos alertam para a negritude do império africano do Egito, chamado de Khemet – País dos homens pretos – por seu próprio povo ( DIOP, 1983, pg56) , podemos começar a entender a escolha feita por renascentistas e iluministas de recorrer à Grécia como base civilizacional da Europa, o que explica o mal estar sentido pelo acadêmico e general francês Volney, que liderava as tropas de Napoleão na invasão do Egito,
"Vendo esta cabeça negra em todas as suas características, lembrei-me dessa passagem notável do Heródoto, onde ele diz: Para mim, eu acho que os Colchians são uma colónia dos egípcios porque, como eles, têm a pele negra e cabelos frisados. Em outras palavras, os antigos egípcios eram verdadeiros negros do mesmo tipo que todos os africanos nativos.(…) Mas retornando ao Egito, o facto que ele dá à história oferece muitas reflexões à filosofia (…) Pensar que esta raça de negros, hoje nossos escravos e objeto de todos os desprezos, é mesmo aquela à qual devemos as nossas artes e as nossas ciências e até o uso da palavra (…) Imaginem , finalmente, que está no meio de pessoas que se dizem os maiores amigos da liberdade e da humanidade que se aprovou a escravidão mais bárbara e questionado se os homens negros têm o mesmo tipo de inteligência que os brancos!» (Cf. Viagem em Síria e Egito)."(8)
Importante atentar para o fato histórico de o mundo greco-romano representar historicamente o primeiro processo civilizacional, no qual a economia estava majoritariamente sustentada pelo trabalho escravizado. Um dos mais conhecidos pensadores gregos, Aristóteles, acreditava na existência de tipos humanos destinados à escravidão – embora essa tipologia já tivesse sido elaborada anteriormente na Índia quando da invasão dos arianos - , e essa sua tipologia foi base para o pensamento escravagista de períodos posteriores, “Um ser que, por natureza, não pertence a si mesmo, mas a um outro, mesmo sendo homem (ánthropos on), este é, por natureza, um escravo. Pertence a um outro que, mesmo sendo homem, é objeto de propriedade e instrumento ordenado à ação (ógananon praktikón) e separado".(9) Outro ponto a ressaltar referente à Grécia, é a total exclusão da mulher enquanto sujeito de direito público.
2- A Idade das Trevas européia X Idade do florescimento universal
Assim como os micênicos na Grécia, os itálicos em Roma, conquistaram um região onde já estava instalada uma civilização mediterrânea, os etruscos, dominando sua população e mantendo o seu modelo civilizacional. Roma se constitui então enquanto primeiro Estado Burocrático da Europa, a partir da colonização e exploração de territórios de outros povos, tendo como modelo organizacional as satrapias persas, retirando dessas regiões colonizadas, não somente seus recursos naturais mas também escravizando parte de suas populações, já que o trabalho escravizado foi também, base da economia romana. Quando o Império Romano é destruído, tanto pela rebeldia permanente dos povos por ele colonizados, como devido à pressão recebida por Roma na segunda grande migração de povos do norte da Europa em direção ao Mediterrâneo, o caráter estrangeiro do Estado Romano bem como dos conhecimentos culturais e científicos greco-romanos fica claramente evidenciado, e a Europa imerge no período classificado pelos próprios pensadores iluministas como Idade das Trevas, com ausência de estados burocráticos relevantes, regressão ou estagnação no desenvolvimento econômico, científico, cultural e social, sendo a Igreja Católica a única instituição de alcance continental.
Nada disso é fato de estranheza histórica, por tratar-se a Europa, como vimos, de uma civilização jovem, e nem pretendemos aqui atribuir características essenciais à sua civilização, sendo foco do presente estudo, entender melhor o processo histórico de desenvolvimento do pensamento europeu, tendo em vista desmistificar atribuições estereotipadas reproduzidas pelo etnocentrismo eurocentrado, que ao usurpar o conhecimento de etapas importantes dessa construção, impedem a consecução de um diálogo positivo entre as alteridades constantes do mundo contemporâneo. Sobre o período imediatamente posterior à queda de Roma, nos interessa mais uma vez as generalizações habitualmente proferidas a respeito do “mundo medieval”, como se representassem realmente um fenômeno mundial e não um fenômeno estritamente europeu. Omitir a simples informação de que o período entre os século V e XIV, representou para povos africanos, asiáticos e americanos, um período brilhante de desenvolvimento cultural, científico, econômico e filosófico, é mais uma deslealdade histórica cometida pelo discurso eurocentrado, às vezes até por real desconhecimento.
3- O “Renascimento Europeu” outro exemplo de Geração Espontânea?
Na Península Arábica no século VII, o surgimento do Islamismo e a constituição do Império Islâmico e do aparato civilizacional referente, possibilitou a manutenção e a disseminação do conjunto de conhecimentos científicos e culturais da Antiguidade, principalmente devido ao caráter sagrado, segundo o Islã, do conhecimento e do letramento enquanto formas de manifestação de divindade. Por todo o continente africano constituíram-se impérios grandiosos, como os de Gana, Mali, Songay, Ashanti, Yoruba, Angola, Monomotapa, Malgaxe, e o milenar Império Etíope mantinha a sua predominância na África Oriental. Com a expansão islâmica, muitos dos reinos do noroeste da África se converteram à nova religião, dando início a um importante período de intercâmbio econômico e cultural, que tem no Reino do Mali um dos seus exemplos mais importantes, onde foi fundada a universidade de Timbuktu, pelo menos um século antes do surgimento de universidades na Europa.
"A cidade de Timbuktu, situada ao sul do deserto, no Mali, ocupa uma posição única, ponto de encontro entre os povos Songhai, Wangara,Fulani, Tuareg e Árabe. Ela tornou-se um celebrado centro de cultura islâmica e desde o século XI um importante posto comercial. Segundo seus moradores, o ouro vem do sul, o sal do norte e o conhecimento divino, de Timbuktu. Lá no século XII havia a Universidade de Timbuktu, que se organizava em três mesquitas, Mesquita de Sakore, construída no século IX, de JIngara Bar e Sydi Yahya, havia também mais de 180 escolas corânicas e mais de vinte e cinco mil alunos freqüentavam suas aulas, em uma população de cem mil habitantes. Os estudantes vinham dos mais diversos lugares da África. Os livros não eram apenas escritos no Timbuktu, como também eram importados e copiados ali. Existia uma indústria bem desenvolvida de cópias na cidade e as universidades e bibliotecas tinham um importante catálogo acadêmico. "(10)
A importância do processo de expansão islâmica e desenvolvimento dos Impérios da África Ocidental, a ocupação da Península Ibérica durante 600 anos pelos mouros(11) , que tornaram a região, conhecida como Al Andaluz, em um dos mais florescentes experimentos de convivência econômica, política e científica-cultural pacífica entre cristãos, muçulmanos e judeus, também é omitida da historiografia oficial do pensamento europeu. No entanto, pensadores que viveram na região, como Ibn Khaldum, pioneiro na concepção de uma filosofia materialista histórica, e Ibn Sena, que traduziu vasta produção greco-romana, bem como compôs importantes compêndios sobre química, física, medicina e matemática, foram determinantes para que a Europa, então mergulhada na intolerância católica, tivesse acesso aos conhecimentos que possibilitariam o desenvolvimento a que chamam metafisicamente de “renascimento europeu”,
"During the Persian, Greek and Roman invasions, large numbers of Egyptians fled not only to the desert and mountain regions, but also to adjacent lands in Africa, Arabia and Asia Minor, where they lived, and secretly developed the teachings which belonged to their mystery system. In the 8th century A.D. the Moors, i.e., natives of Mauritania in North Africa, invaded Spain and took with them, the Egyptian culture which they had preserved. Knowledge in the ancient days was centralized i.e., it belonged to a common parent and system, i.e., the Wisdom Teaching or Mysteries of Egypt, which the Greeks used to call Sophia. Consequently, through the medium of the ancient Arabic language, philosophy and the various branches of science were disseminated: (a) all the so-called works of Aristotle in Metaphysics, moral philosophy and natural science (b) translations by Leonardo Pisano in Arabic mathematical science (c) translation." by Gideo a Monk of Arezzo in musical notation.(12)
4- A modernidade, o eterno complexo de Prometeu europeu.
O período que se seguiu à expansão marítima e à colonização das vastas terras das Américas pelos países europeus, foi de grande e intenso aporte de recursos naturais advindos das nações colonizadas, e que possibilitaram um grande desenvolvimento das sociedades européias nos mais diversos campos, inclusive no que diz respeito à ciência, cultura e pensamento, que de uma ou outra forma, são expressões humanas extremamente ligadas. Esse desenvolvimento possibilitou mesmo a superação dos modelos feudais de organização sócio-econômica, com o advento da hegemonia burguesa. Eric Williams(13) nos mostra que foram os lucros advindos do tráfico de seres humanos escravizados – e não o lucro advindo das desapropriações de terras camponesas - que possibilitou às cidades portuárias inglesas, como Glasgow e Liverpool, investir de maneira significativa no desenvolvimento das tecnologias de produção no momento histórico que ficou conhecido como Revolução Industrial.
O Iluminismo, o darwinismo, as ciências sociais como a antropologia e a sociologia, as perspectivas socialistas e marxista, são frutos desse período entre os séculos XVII e XIX, em que o grande desenvolvimento científico e material vivenciado em países centrais do continente, como França, Inglaterra e Alemanha, permitia aos europeus, a percepção de que a Europa era o centro do mundo, e que os seus habitantes eram protagonistas por excelência de uma história universal previsível, na qual os europeus tinham a missão, como prometeus modernos, de iluminar o mundo com seu conhecimento e sabedoria, possibilitando a evolução, daqueles que como bons coadjuvantes, estivessem biologicamente instrumentalizados para tornarem-se “como europeus”. Mas como podemos ver nas palavras de iluministas, filósofos e do pai do socialismo “científico”, Karl Marx, estes não consideravam os demais grupos étnicos humanos como, humanos. Voltaire o “pai” dos direitos humanos, nos diz sobre os mouros negros:
“…and they are not men, except in their stature, with the faculty of speech and thought at a degree far distant to ours. Such are the ones that I have seen and examined” (14)
David Hume,
“ I am apt to suspect the negroes to be naturally inferior to the whites. There scarcely ever was a civilized nation of that complexion, nor even any individual eminent either in action or speculation.” (15)
Kant:
“The Negroes of Africa have not received any intelligence from Nature that rises above foolishness.” (16)
Marx:
"A Inglaterra tem que cumprir uma dupla missão na Índia: uma destruidora, outra reguladora – a aniquilação da velha sociedade asiática e o lançamento das bases da sociedade ocidental na Ásia(...)os britânicos eram os primeiros conquistadores superiores e portanto inacessíveis para a civilização hindu(...) quaisquer que tenham sido os crimes da Inglaterra, ela foi o instrumento inconsciente da história para originar essa revolução”
(17) No entanto, aparentemente, os processos de luta por independência ocorridos nas Américas, no norte da África, no sul da Ásia e mesmo nos países da Europa Oriental, pareciam demonstrar que os demais povos do globo não estavam muito interessados nessa “iluminação”. Aparentemente, não acreditavam que o homem branco é o protagonista por excelência da história da humanidade, não acreditavam que eram menos humanos que o homem branco e não foram colaborativos com a pretensão de homens como o colonizador do Zimbábwe, Cecil Rhodes, em seus devaneios poéticos imperialistas:
"O mundo está quase todo parcelado, e o que dele resta está sendo dividido, conquistado, colonizado. Pense nas estrelas que vemos a noite, estes vastos mundos que jamais poderemos atingir. eu anexaria os planetas se pudesse, penso sempre nisso.” (18)
5- Conclusão: a pós-modernidade e a síndrome do espelho quebrado.
Foram necessárias duas Grandes Guerras, diversas descolonizações, a queda da URSS e outras tantas ditaduras totalitárias, pra que os Europeus começassem a questionar a fundamentação das suas verdades. Como bem nos situa o pensador jamaicano Stuart Hall, o marxismo, a psicanálise, a lingüística, a genealogia foucaultiana, assim como os movimentos de minorias por ele representados a partir do feminismo, foram capazes de abalar as crenças dos europeus em relação ao mundo enciclopédico dos pensadores modernos e, paradoxalmente, abriram espaço para o questionamento dos seus próprios pressupostos. As grandes perspectivas políticas da história estão sendo postas em questão. Do mesmo modo o racionalismo, a sexualidade, os papéis de gênero, a instituição familiar, a existência das raças, a saúde mental, o progresso, a civilização e até mesmo a exatidão das ciências exatas, são alvos de debates que propõem até a negação completa da matéria debatida. Por outro lado, no olho do furacão da fragmentação total, pensadores europeus contemporâneos têm escrito obras de grande aceitação pública, contemporizando os equívocos históricos dos projetos universalistas do racionalismo progressista europeu, analisando os seus aspectos positivos e chamando a atenção para a necessidade de refletirmos sobre abordagens diferenciadas de compreensão do mundo e do momento atual que atravessamos.
São obras que falam sobre a importância de solidificarmos e valorizarmos as relações humanas, sobre a necessidade de alcançarmos uma sociedade xenofílica, holística, auto-sustentável, ecológica, igualitária e fraterna, que respeite a alteridade no sentido de alcançarmos um humanismo profundo que possibilite a homens e mulheres desenvolverem ao máximo suas potencialidades, dentro de Estados equilibrados, onde o exercício da cidadania esteja em permanente diálogo com a isonomia de direitos.
O corajoso exercício realizado por pensadores como Diop, Cress-Welsing e Vulindlela(19) , entre outros, de romper com o tabu segundo o qual a Europa somente pode ser analisada no campo do pensamento, ao ousarem constituir uma análise antropológica da Europa e do pensamento europeu enquanto resultante da sua experiência histórica específica, nos evidencia, entretanto, que os valores e perspectivas de mundo elencados pelos pensadores que buscam resgatar o pensamento europeu da catástrofe pós-moderna, são valores e concepções estrangeiras à Europa e que são componentes da visão de mundo, justamente daquelas sociedades que foram contestadas pelo pensamento europeu enquanto não-históricas, incivilizadas e primitivas. O etnocentrismo é uma perspectiva de centralidade comum em praticamente todos os povos do planeta. A extensão de um etnocentrismo específico, para a normatização do outro, é o problema enfrentado pelos não europeus, nos últimos 400 anos em que a Europa tem alcançado progressivamente relativa hegemonia mundial. O presente trabalho parte de um centro que é outro, e a intenção da análise que fizemos nas páginas anteriores é a de buscar dialogar com os autores apresentados no decorrer da disciplina Bases Filosóficas da Contemporaneidade, que nos dispuseram a partir de suas obras e dos debates por elas suscitados um panorama amplo da constituição do pensamento ocidental, bem como dos dilemas vivenciados na atualidade, no contexto daquilo que entendemos como sendo a condição pós- moderna. Quando temos a pretensão de relacionar o nosso objeto de estudo, referente aos conflitos escolares nos bairros de periferia de Salvador, a um debate tão amplo, é somente porque entendemos que os fenômenos sociais cotidianos, são reflexos dos discursos, práticas, projetos e contradições presentes na macro-estrutura das nossas sociedades.
O exercício de desmistificação é fundamental para que esse diálogo se dê de forma leal, na superação da idéia de que os europeus são protagonistas exclusivos da história do mundo, de que o que é europeu é universal e o que é não-europeu é “alteridade”, de que a Europa é o espaço do pensamento por excelência e que o não-europeu é espaço do antropológico, de que o pensamento europeu surge, se desenvolve, se renova e se expande por geração espontânea, sem colaboração não-européia e por fim, de que a Europa, tem novamente a missão prometéica de iluminar o mundo, salvando-o da “idade do mal-estar”, em que ela mesmo o colocou.
Observando em uma cena cotidiana, uma Yalorixá pós-doutorada em história, senhora dos seus direitos e do seu corpo, pedindo licença à natureza para colher algumas folhas, no intuito de no alvorecer, saudar com as mãos levantadas em oração o disco solar, como no Egito de 6 mil anos atrás, entendemos como boa sugestão, a do poeta Landê Onawale, para os pensadores europeus, ansiosos em seu mal-estar:
“ Vocês chegaram agora...sentem, prestem atenção...e aprendam!”
Notas:
1 http://www.ufc.br/noticias/noticias-de-2013/4210-pesquisas-apontam-o-impacto-das-cotas-nas-universidades-brasileiras - Este artigo da Universidade Federal do Ceará nos traz os links de alguns importantes trabalhos acadêmicos que tratam do tema, entre os quais destacamos: QUEIROZ, D.M.; SANTOS, J.T. Vestibular com cotas: análise em uma instituição pública federal. Revista USP, São Paulo, n. 68, p. 58- 75, dez. 2005/fev.2006.
2 Música, letra e tradução disponíveis em: http://letras.mus.br/bob-marley/24594/traducao.html
3 Hegel, George Willhelm Friedrich, Filosofia da História, Brasilia Editora da UNB 1999 Pág, 88” ...O que nós propriamente entendemos por África, é o não-histórico, não-desenvolvido espírito, ainda envolvido na condição de mera natureza, e que foi apresentado aqui somente como soleira da história mundial.”
4 ( HERÓDOTO, 2006, Livro II, Cap XXXV)
5 ( Id, Livro II , Cap L)
6 (Ibidem, Livro II Cap CIX)
7 ( Ibd, Livro II Cap VXXXIV), Todos os grifos do autor.
8 Citado em DIOP, Cheik Anta, A Origem dos Antigos Egípcios; in: História Geral da África, África Antiga, vol.II, São Paulo/Paris: Ática/UNESCO, org: G Mokhtar, 1983, pg 56.
9 ARISTÓTELES; Pol., I, 5, 1254a 14-18
10 Disponível em: http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0912719_2011_cap_10.pdf
11 Habitantes negros do norte da África.
12 Sedgwick and Tyler History of Science Cap IX, Cit in: James, George G, Stolen Legacy, pag 40. “ Durante as invasões persas, gregas e romanas, um grande número de egípcios, fugiram não somente para o deserto e regiões montanhosas, mas também para as terras adjacentes da África, Arábia e Ásia Menor, onde eles viveram e secretamente desenvolveram os ensinamentos que pertenciam ao seu sistema de mistérios. No século VIII, os mouros ( nativos da Mauritânia, no norte da África), ocuparam a Espanha e levaram com eles a cultura egípcia que eles haviam preservado. O conhecimento no Egito Antigo era uma coisa centralizada, pertencia a famílias, o Conhecimento, ou os Mistérios, que os gragos chamaram de Sophia, Consequentemente, através da antiga linguagem árabe, a filosofia e os vários ramos da ciência se disseminara: (a) os assim-chamados ‘ trabalhos de Aristóteles sobre Metafísica, moral, filosofia e ciência natural (b) traduções de Leonardo Pisano sobre a ciência matemática árabe (c) Tradução de Gideo, um monge de Arezzo, sobre notações musicais. ( Tradução livre do autor)
13 WILLIAMS, Eric, Capitalismo e Escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012
14 VOLTAIRE, Ensaio sobre os mouros; Introdução. “...e eles não são homens, exceto pela estatura, com as faculdades de fala e pensamento a um degrau de distância das nossas. Esses são os que eu vi e examinei” Tradução livre do autor
15 HUME, David. Essays and Treatises on Several Subjects. In Two Volumes (London and Edinburgh, 1777), vol. 1, 550 “ Eu estou apto a suspeitar que os negros são inferiores aos brancos. Raramente houve uma nação civilizada com essa aparência, nem mesmo um indivíduo iminente em sua ação ou especulação.” TdA
16 KANT, Emmanuel. Beobachtungen über das Gefühl des Schönen und Erhabenen, Vierter Abschnitt “Os negros da África não receberam da natureza nenhuma inteligência que esteja acima da estupidez” TdA
17 MARX, Karl. O domínio Britânico na Índia, p 42-43 Citado em: MOORE, Carlos. O Marxismo e a questão racial. Belo Horizonte: Nandyala, 2010
18 RHODES,Cecil , Cit in: HUBERMAN, Leo, Histórias da Riqueza do homem. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1974, pp. 269-270
19 Cheik Anta Diop, Frances Cress-Welsing, Wobogo Vulindlela
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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Infanto Juvenil I

Primeiro de tudo: o futebol.

Na rua organizávamos o jogo mesmo no asfalto, as traves eram pedras amontoadas e nossas sandálias, que todos jogávamos descalços. As laterais do campo eram as calçadas, os portões da casa dos outros. 20 minutos de cada lado, falta podia ser marcada por qualquer um, que não tinha juiz.



Isso na Liberdade. Agente juntava dinheiro e ia no Paes Andrade com o pai de algum dos meninos, comprar os escudos dos times, feitos de pano que alguma mãe costurava em nossas camisas velhas. Uniforme de time era um sonho impossível, muito caro. Então eram os escudos costurados no peito e alguns de nós que não tínhamos mãe na disposição de perder tempo com molequeira, simplesmente passávamos cola de sapato ou de madeira e ficava uma coisa horrorosa, mas agente achava ótimo. Meu time era o de meu irmão que todo mundo chamava de Papel e por herança eu era chamado de Papelzinho ( só depois , na Ribeira, eu ganhei o apelido de Caneta, tudo sempre na seção de material escolar). O Galícia. Ainda lembro do escudo branco e azul colado na esquerda de uma camisa velha do colégio.


Oito ou nove anos, pivete solto na rua, dedo rebocado, dedão faltando a unha, canela cheia de marca de pancada de bola, cotovelo sempre ralado, realmente, jogar bola lá na rua era coisa de espartano.
Mas agente vivia na febre...
Os times do Bairro Guarani, os times do Estica, os times do São Lourenço, os times da Ladeira do Abacate, o campeonato era grande e inter-ruas. Como agente era pirralho, colava na tabela do campeonato dos meninos mais velhos e jogava antes ou depois do jogo deles.
O time era o Goleiro Papel ( só o goleiro podia ter mais de dez anos), eu, Jean, e Loguita na linha.
Os caras da Rua C cantavam: “Ontem à noite lá no baba, foi aquele arerê, o Galícia de calcinha, chamando outro time pra fuder. Tá de bode, ta sem moral, porquê é o pior time da capital...”
Agente engolia na raiva, vixe, tudo filho de mãe sem pai, tudo côro de rato que todo mundo na rua acha que pode tomar conta. Só escutava, no jogo agente resolvia.
Rapá, meu irmão era um frangueiro filho da puta. No primeiro jogo, contra os meninos do Estica, o cara tomou um gol em menos de três minutos de jogo. Eu espumava. Olhava de canto de olho. Gostava de jogar atrás, na raça, tomando a bola, lançando a bola, nosso time fez um e fez dois. Os meninos do Estica eram muito melhores que agente. Tinham um, dois anos mais, numa idade em que isso faz diferença grande, que o corpo já começa a ficar mais forte, mais másculo: Bau, Papa-Capim, Peixe Frito, Nem. Ganhamos o jogo ferrado nesse dois a um, os caras não aceitaram.
- Tomar no cú bairro Guarani, essa porra de rua só tem viado. Só tem puta!!
Calado. Já tinha ganhado, já tinha sido anotado o resultado na tabela, dois pontos, foda-se!
- Essa porra aqui não tem homem – gritou Bau – ninguém aqui tem coragem de sair na mão comigo.
Agente se entreolhou, vixe, meu irmão de cabeça baixa, todo mundo olhando pro chão. Eu andava lendo muita revista né, disse:
-Eu saio na mão com qualquer um!
Seco igual um agdaví, o medo pulsando adrenalina pelo corpo, se fuder, eu tava morrendo de medo, mas tinha lido alguma coisa sobre enfrentar o valentão e ele ficar com medo e dar pra trás.
Deu certo, em parte, três deram pra trás, mas Bau ficou.
- Cê vai sair na mão com ele?
-Saio!
-Ninguém se mete!
-Ninguém se mete!
Porra, se o primeiro jogo ta sendo assim, agente chega no final do campeonato morto.
O Goleiro Papel não falou nada, Bau era forte, tipo de cara atarracado, baixinho e forte, vai pra porra, agente se embolou no asfalto, chute, murro, pisão, tirou pedaço nenhum. Agente contava as brigas por murro na cara. Ganhou quem deu mais murro na cara, mas ninguém queria saber, né: os meninos do Estica carregaram Bau comemorando o vencedor, os meninos de lá da rua me carregaram gritando que eu ganhei.
Maravilha essa onda de estar com o sangue quente e não sentir dor. Nem murro, nem corte, nem arranhão, nem pereba. Vc briga e não sente nada.
Mas depois. Duas coisas somente eram capazes de apavorar um pivete perebento como eu: uma, o banho. A hora da água cair nas feridas, putaquepariu! Segunda, a pior: Mertiolate!!!!
- Se num queimar num cura! Diziam todas as velhas.
Mano velho, minha corrente, como agente dizia naquele tempo. Era ver o aplicador do mertiolate que minha alma gelava. Eu garanto que já senti mais dor com mertiolate do que com qualquer corte, ferida, arranhão ou qualquer diabo que já tenha acontecido comigo. Era tocar aquela porra de líquido vermelho e o homem gritava e se contorcia e as lágrimas brotavam nos olhos. Tinha de ser minha mãe, minha prima mais velha, minha avó, minha tia, pra me segurar e passar aquilo.
Banho tomado, noite caída, a resenha.
- Rapá, cê apanhou de Bau.
- Porra nenhuma.
- Nada a ver. O cara bateu, eu vi tudo, Bau só deu um murro na cara e ele deu dois.
-Mas o de Bau machucou mais.
-Mais ele deu dois e Bau só deu um
- Vocês são uns viados da porra, na hora que o cara chamou todo mundo pra mão ninguém falou nada.





Agente sentado no muro de seu Marinho. Tinha um monte de muro pra sentar mas seu Marinho ficava injuriado quando agente sentava lá, então todo dia agente colava lá até ele xingar todo mundo e agente saía e ia sentar no poste da Coelba que tinha caído do lado da igreja. Dava o quê, 15 meninos sentados no poste trocando idéia. Colava os meninos de 13, 14 anos, agente tinha de saber se comportar, mas de todo jeito sempre tomava um cascudo, uma broca, na verdade os meninos treinavam na gente a arte de dar brocas, com a curva da mão encaixando perfeitamente na nuca do outro. E tinha de estalar alto, pra todo mundo rir.
- Isso aí é fixe, Papelzinho foi o único que saiu na mão, vocês ficaram igual uns gadinhos de cabeça baixa.
Silêncio
- Mas vocês também se aputam quando os caras do Estica, do mesmo tope de vocês passam aqui na rua.
Barulho de uma broca. Alto. Estalo perfeito e um pirralho conversador calado esfregando a mão na nuca dolorida.
- Aí ó, um menino do Estica passando aí, quero ver um de vocês aprontar ele.
- Vai lá Papelzinho e Jean, vai, vai
Já sabia o roteiro.
- Ô viado você ta tirando onda na rua dos outros porquê?
Ele continuou andando.
- Ô viado não ande gingando na minha rua não que eu vou quebrar seu braço.
Eu e Jean éramos os menores da rua, então o cara do Estica vinha pra cima da gente, na inocência. Quando chegava perto, vinha Valnei, Messinho, Loguita, Coro Seco, os meninos maiores.
- Você vai bater do menino daqui da rua é?
- Ele me chamou de viado.
-Mas você passou aqui na rua tirando onda mermo, todo mundo viu. Agora você quer bater no menino daqui, só porque ele é pequeno.
- Rapaz, eu num tava tirando onda não!!
Andar gingando era só pra valente. Agente chamava de “andar tirando onda”. Você passar na rua de alguém “tirando onda”, quer dizer, gingando os braços e o corpo junto, era como se tivesse desafiando todo mundo. Agente cansava de se testar desse jeito: Duvido que você atravesse o São Lourenço “tirando onda”. Ou se orgulhava de dizer: Eu desci o Gengibirra “tirando onda”.
Eu só podia dar o primeiro murro, que depois os mais velhos tomavam a frente. Gostava de bater. Dei um chute na barriga, ele retrocedeu. Valnei era nosso herói, saiu rebocando o cara todo, até a Rua A e aí ele desceu correndo pela Rua D.
- Você nem bateu!
-Bati sim, dei um chute na costela!
-Deu porra nenhuma.
-Bati sim, porra
Aí agente ia fazer a ronda, pra ver como estava nosso bairro, pra ver se via alguma menina, e pra ver se os meninos do Estica iam subir pra cobrar o cara que agente tinha comediado.
Saía filinha de bandidinho cantando: “ Ô Muzenza me diz o que é que eu sou: mensageiro do amor..., Ô Muzenza me diz o que é que eu sou...” e os outros nas palmas,clap, clap, clap – clapclap!! E no ritmo das palmas fazíamos a volta pelo Gengibirra até o São Lourenço pra cercar o Estica. Do São Lourenço dava pra ver a Cidade Baixa cravejada de luzes brilhantes. O Trem passando com seu barulho de lata-velha. Agente ficava calado olhando as luzes, com cabos de vassouras nas mãos, hipnotizados pela beleza de nossa cidade.



Quando eu vejo Marina no São Miguel, oferecendo o corpo em troca de crack, magrela, cara manchada, eu passo e digo: quando é que vai engrossar essas pernas de novo senhora? Ela sorri: não demora eu saio disso aqui, fique tranqüilo.
Marina de vestidinho, oito aninhos de idade e eu apaixonadinho. Olhos pretos redondos, cabelos pretos com os cachos cobrindo a orelha. Mas eu to namorando com Luciano.
O Pai de Luciano tinha uma caçamba que levava os meninos pra a praia, pra jogar bola no Largo do Papagaio, vixe, era o sucesso do Bairro Guarani. Também era mais bonito que eu, ela dizia, e toda as vezes que agente saiu na mão ele me bateu.
Mas ela me beijou e virou minha nega. Lógico que a caguetagem levou pra Luciano, que subiu lá na rua e me bateu de novo. Mas depois ele disse – Eu que não quero mais ela!
- Agente vai jogar na Ladeira do Abacate, no sábado.
- Já sabe que os caras vão querer aprontar agente né?
- Agente apronta eles também quando eles vierem pra cá.
Deu primeiro tempo e agente ganhando de um a zero. Jogando na parte de baixo da ladeira. Agente jogava contra o Fluminense e jogava contra a gravidade.
- Pára a bola.
- A Mãe de Cacau vai passar.
-Essa fudiona não pode passar logo não?
- Respeite a mãe dos outros.
- Não meta minha mãe no meio, que eu meto no meio da sua!!!
Cada chute dado lá de cima era um foguete pra as mãos do Goleiro Papel. Agente chegava lá em cima já sem força nas pernas e o chute saía miado. Os caras batiam muito, me deram uma pegada na canela que até hoje eu tenho ela marcada. Um cotovelada em Jean. Os ônibus passavam lá em cima, os coroas no buteco paravam pra prestar atenção no jogo e algumas vezes gritavam: Sai daí seu grosso!!
Mas terminou o primeiro tempo e agente tava ganhando.
- Rapaz, tem uma má notícia...
- Fala logo.
- Os caras disseram que não vão trocar de lado não.
- Porra e agente vai ter que jogar os dois tempos embaixo da ladeira?
-É, vc vai lá dizer que não?
Era uma coisa a se pensar. Dessa vez o jogo era só dos menores, os grandes não tinham jogo, então agente tava sozinho.
- Bota as sandálias nossas todas do lado do gol aqui embaixo, quando o jogo acabar agente quebra todo mundo e sai correndo.
- Tem que se ligar se não vai ficar nenhum menino maior lá embaixo na crocodilagem.
- Quero saber não, terminar essa porra eu jogo no primeiro que tiver na minha frente.
-Corre pelo Estica, se os meninos do Estica juntar com os da Ladeira do Abacate pra aprontar agente, agente tá fudido!
- Porra nenhuma, bate , sai correndo, importante é ganhar a porra do jogo.

Acho que foi a raiva mesmo, agente segurou o um a zero até acabar o jogo, mesmo os caras vindo de cima e agente sem guentar subir. Os caras eram do nosso tamanho, só tinha um maiorzinho no time, mas esse era mais seco do que eu. Lógico que os caras iam tentar bater na gente se agente ganhasse o jogo. Então, como porrada dada não se tira, a estratégia era bater primeiro.
Assim que o cara marcou o uma zero na tabela eu dei um murro na cara do pirralho na minha frente, só deu pra ver Jean chutando as costas do grande e seco. Zum, calcei a sandália e disparei ladeira abaixo, só ouvia a gritaria atrás de mim: pega, pega! Alguns dos meninos que vinham subindo a ladeira ainda tentavam nos agarrar. Tomei um tapão que minha orelha ficou zumbindo. Desci o Estica, na curva a sandália partiu e eu continuei correndo e tentando enfiar a tira da sandália de volta na sola. Corre, corre, subi o beco de terra da casa de Tonho, subiu todo mundo, só Loguita tinha a camisa rasgada.
- Vai tomar no cú, não apanhei dos meninos pra apanhar de minha mãe em casa.
-Aquela cachaceira já ta é dormindo essa hora!
- A camisa de sair.
- Se fudeu seu lerdo!
- Pega pedra aí, vamo ficar na crocó, pra ver se os caras vem atrás.
Acabou de falar e os meninos apareceram na subida do beco. Chuva de pedras. Eles voltaram:
- Você vai ver!!!! Vocês não passam mais aqui na rua!!!
- Vai viado, bote a cara aí!!!!





Ficamos em terceiro, e quatro times ficaram pra disputar a semifinal. Rapaz, no sufoco agente ficou pra jogar contra o São Lourenço. O Estica pra jogar contra o Gengibirra. Eu estava empolgado, de todo jeito, agente tinha ganhado várias partidas, apanhamos menos que os outros, ninguém se machucou seriamente, só Loguita, quando a mãe dele descobriu que ele tinha rasgado a camisa de sair.
Fomos em embaixada no Estica. Eu, Jean, Loguita. Os meninos tavam sentados na escadaria que sobre pra o Pero Vaz. Papa Capim tava segurando um irmão menor descalço e de fralda:
- Agente quer poder passar aqui pra poder jogar no São Lourenço...
- Passar? Agente devia aprontar vocês era agora, disse Bau, tomando a frente da galera dele.
- Se vocês aprontarem agente aqui, agente apronta vocês quando vocês forem jogar no Gengibirra
Bau olhou pros outros. Fizeram sinal de positivo, Bau disse:
- Só até a final, viu?
Saímos andando sem tirar a atenção deles e nem dos meninos maiores que estavam perto. Quando agente já tava saindo do Estica, pegamos os sacos de lixo que estavam na frente de uma casa e jogamos pela janela que tava aberta. E saímos correndo e gritando.



Brasil ganhou um jogo e um vagabundo de um candidato mandou botar trio no Curuzu, pra tocar Muzenza. Tem que ir né. Mamamama África, Mamamama África ié ié. Agente era a galera do mal. Tomei banho, passei meio pote de neutrox no cabelo. Botei um jeans velho e escondi um faquinha no bolso. A senhora minha mãe devia estar no Pelourinho enchendo o rabo de cachaça. Foi eu, Messinho, Neguinho e mais quatro. Sete meninos.
Muzenza ô, ô,ô, guerrilheiros, ô,ô,ô,ô,ô Agente adorava, tinha um bloco no São Lourenço chamado Forroxé que era o preferido, mas o Muzenza tocava no rádio, todo mundo sabia as músicas, todo mundo sabia a dancinha, todo mundo sabia a versão: “ Ô Muzenza me diz o que é que eu sou?” E o coro: “ Ladrão Maconheiro, estuprador!!!”
Nem deu nada, colei na parede, a mão no bolso segurando a faquinha. Os meninos dançando atrás do trio. Vi os meninos do Estica, os meninos do Gengibirra.Os da Ladeira do Abacate não podiam entrar ali. Em um momento senti uma mão forte prendendo e torcendo meu braço.
- Tem o quê aí no bolso?
Era um homem branco e barbudo, com hálito de cigarro. Puxou minha mão. Tomou a faca, me empurrou até o outro lado da rua por dentro da multidão.
- Fique aí encostado que você vai pro juizado.
Noites e mais noites que nossa resenha era só contando as histórias que agente ouvia do juizado de menores. Meu Deus, isso era ditadura militar ainda. Unhas arrancadas, meninos com os olhos queimados de cigarro, estupros coletivos, cicatrizes permanentes, semanas sozinho em quartos escuros. Só de pensar nisso senti asma. Vixe, o filho da puta conversando, sorrindo com um amigo e eu ali capturado. Na veia tilintando na têmpora, desci uma escadaria como uma bala, como um trem-bala!! Passei por trás do Abrigo do Povo, subi a Ladeira de São Cristóvão, desci outra escadaria que ia até o Largo do Tanque, subi o São Lourenço, atravessei correndo a casa de Dona Pepê que era uma passagem secreta do Gengibirra atá a Rua C, perto de onde Missinho e o Chiclete com Banana faziam os primeiros ensaios. Tava livre. Nem sei se o cara era mesmo do juizado ou se tava somente me botando medo. Mas nunca tinha me sentido tão bem voltando pra casa.



Eu sei que passamos pra a final. Na véspera do jogo, Bau foi lá na rua:
- Quero jogar no time de vocês!
- Porquê? Você é do Estica!
- Eu briguei com Papa-Capim...
Pode vir amanhã, disse o Goleiro Papel, atuando de cartola.
Galícia e Flamengo. Ninguém sabe o duro que eu dei. Na verdade ninguém sabe mesmo. Agente era uns mosquitinhos invisíveis e as senhoras passavam pela rua com sacos de compras e o pai de Beto consertava a moto no pátio, enquanto nossa grande final se desenrolava. Sem bandeirolas, sem torcida, sem câmeras, mas era a grande final do campeonato dos meninos menores de dez anos.
O Goleiro Papel tirou Jean do time e colocou Bau no lugar. Nosso time estava invencível. Os meninos do gengibirra também eram bons. Acho que foi por isso que Bau saiu do Estica, deve ter culpado os colegas pela derrota.
Nosso time acostumou a sair perdendo e virar o placar no segundo tempo. O Jogo era na Rua C, que era também um pouco enladeirada. Não foi diferente, começamos tomando um gol, bola rasteira, no cantinho. Mas antes de terminar o tempo, eu fiz um gol. Bonitinho, no cantinho. Na verdade, como as traves eram pedras e sandálias, a única forma de fazer o outro time aceitar a validade do gol, era que o chute fosse rasteiro. Senão já sabe: Foi por cima!!!, ou Foi por fora!!!! E aí a pancadaria começava.
Viramos o primeiro tempo empatados, o Goleiro Papel tinha trazido até água gelada pra agente tomar. Segundo tempo.
Jogo truncado, Bau chutou duas bolas assassinas, mas o goleiro foi buscar. Ele estava impossível, onde agente chutava ele ia buscar. Agente segurava na defesa e os caras não conseguiam chegar.
Mas...
Junto pra terminar o jogo, falta pra eles, o Goleiro Papel arrumou a barreira, eu fiquei do lado olhando.
Vou dizer, não tenho problema em perder, mas perder sendo melhor... não tem coisa que me doa mais.
Minha mãe uma vez fez doze pontos na Loteria Esportiva. O único jogo que impediu ela de ficar milionária foi Vitória e Leônico. O Vitória perdeu da miséria do Leônico em plena Fonte Nova.
E,
Minha mãe também me falou uma vez: quem torce pro Vitória, meu filho, é porquê gosta de sofrer!
A bola veio rasteira, fraca, passou pela barreira. O Goleiro Papel foi fazer pose de Leão do Palmeiras, a bola passou no meio das pernas dele. O jogo acabou, 2X1 pro Gengibirra.
Chorei. Senti o pé ferido, o cotovelo rasgado, mertiolate, asma.
- Seu Waldir Peres filho da puta, não fale comigo nunca mais!!!
E saí sem olhar pra trás, enxugando as lágrimas com a mão suja.

Mandingo 26/01/12

quinta-feira, 7 de julho de 2011


segunda-feira, 07 de julho de 2011
Laroiê!

Está no ar, lançado. Laroiê Exú, que todos os caminhos sejam abertos. Kawô Kabiecilê, Salve meu pai Xangô, seguimos sempre na justiça e na humildade. E tudo vai sempre dar certo!


Salvador Negro Rancor

Os Contos do livro lançado e repercutido, Salvador Negro Rancor - São pedaços da afrovivência nas ruas do Pelô. A idéia surgiu quando o professor Maka me convidou pra participar de uma coletânea com contos sobre o Pelô. A coletânea não saiu ainda e eu percebi que tinha muitas outras coisas pra contar sobre o dia a dia do centro de Salvador. Pois vai aí( É só copiar e colar):

- Kaska

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/kaska.html

- Salvador Negro Rancor:

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/salvador-negro-rancor-o-conto.html

- Pipoca:

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/pipoca.html


- Por Acaso:

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/por-acaso.html

- Cisco:

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/cisco-em-homenagem-musica-do-dmn.html


Apresento também alguns trabalhos de pesquisa,
Sobre as vidas, obras , intersecções e antagonismos entre os líderes afro-americanos Booker T. Washington, W.E. Dubois e Marcus Garvey:

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/marcus-garvey-booker-t-wahington-e.html

Um trabalho que propõe uma reflexão profunda sobre três diferentes projetos de posicionamento nacional para o povo negro nos Estados Undos, que penso poder servir de base pra a nossa reflexão aqui no Brasil.

Dois artigos que fiz durante a graduação, bem bibliográfico, sebre assuntos referentes à prática e à história da Capoeira Angola:

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/capoeiragem-carioca-no-seculo-xix.html

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/musicalidade-da-capoeira.html

O trabalho seguinte é a minha monografia, para a conclusão do curso de história da UCsal, tratando de uma história recente e que diz respeito a todos os que se importam com o futuro das manifestações da nossa afrocultura e de que forma estamos nós lidando com essa modernidade neoliberal:

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/capoeira-angola-do-ostracismo.html

E um conto não publicado que fala sobre um período muito louco que vivi em Belo Horizonte, misturando fatos reais com ficção, mas que foi muito importante pra mim, rsrsr, sempre sobrevivente, espero que o Paulista ainda esteja vivo e bem, espalhando sua sabedira pelas ruas do mundão:

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/paulista-inedito.html

TEM CONTO NOVO NO BLOG!!!!!!:

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2011/06/mara-ao-mesmo-tempo-em-que-ele-dirigia.html

Firmeza, por enquanto é só isso ( não me atrevo a colocar as poesias, não são muito boas, na minha opinião), quando aprender a colocar os endereços dos textos como link, faço isso, pra lhes poupar o trabalho de copiar e colar, by now, é copiando e colando mesmo, tem canseira maior na vida... Enviem seus comentários, isso é muito importante pra mim. Axé!!!!

Postado por Mandingo às 06:5

terça-feira, 21 de junho de 2011

MARA

Ao mesmo tempo em que ele dirigia louco pela estrada, ela sangrava uma vida entre as pernas no casebre à beira da maré.
Na pista, somente as luzes altas dos faróis, as carretas que passavam carregadas, apressadas levando tudo pela frente, deslocando ar no vácuo de seu peso. Nem o brilho mínimo dos barracos que ladeiam o asfalto. Só o vazio, os carros. Suas pupilas dilatadas de droga como faróis de milha.
Escorreu direto n’água, uma massa quente e ensangüentada pelo buraco entre as tábuas que usavam como latrina. Ensangüentada e quente. Comida de peixe, de siri. Dor imensa, cabeça estourando, sangue ainda descendo misturado à diarréia. De cócoras na escuridão infinita da palafita, não via nada. Se segurava nas ripas folgadas da parede, inalando a fedentina daquela parte onde a água salgada estagnava, entre fetos e corpos de cachorros, sacos de lixo, garrafas vazias, fezes. Dor na vagina, parecia estar parindo cacos de vidro.
Ele sentia o tilintar das têmporas, os sobressaltos das batidas do coração, o descontrole do pulso, os flashes de enxaqueca. Rangia os dentes, acelerava ao máximo.
Ao mesmo tempo em que ela, despida, lavava-se com a água da lata e, sentindo alma, mente, pernas, braços, pescoço desfalecendo, buscou o colchão estirado no chão, ele estacionava o carro novo silenciosamente, tenso sob a luz amarela do poste, grilos e sapos o atormentavam.
Dentro do carro mesmo, sem sentir a noite fria, apagou.

Ele buscava salvação, ela só queria uma morte indolor.



Pois nasce o sol após todas as noites e mesmo sobre as mais longas a claridade de sua luz rompe miasmas e esconjura os fantasmas. Ali então, uma frágil neblina cobria a baixada, quase uma ilhazinha de casas, rodeada de mangue, de mata e de mar. Quem descesse o morro a essa hora, de carro ou a pé, sempre se encantaria pelo brilho espalhado do orvalho, pequenos arco-íris em cada quintal loucura dos pássaros, gritos de crianças, vozes de rádio e cheiro de pão e café.
Quase uma ilha fechada pelo morro, entre o morro, a mata e o mar. Além dos poucos franceses que vez por outra se hospedavam na fazenda dos padres, só o que se via era gente preta de todos matizes, mas em sua maioria, preta como hoje só se vê na África ou no Curuzú.
Sentado em frente à pequena padaria na esquina da rua principal, um antropólogo qualquer anotaria em sua caderneta amassada, homens quimbundos saindo com sacos de pão, mulheres yorubanas esperando a torrefação do café, meninos zulus com fardinhas infantis caminhando de mãos dadas em direção da escola, velhas haussás comprando fumo de corda para os seus cachimbos de barro. Registraria teiús e tatus e raposas e cobras com mais de dois metros que atacam as pessoas no tempo de choca. E cardeais e papa-capins e tiés e sanhaços. E manga e jaca e banana e pitanga e jambo e caju e fruta pão e inhame e aipim e banana da terra. Andasse um pouco mais até o morro no final do distrito, onde a Mata Atlântica original se não era mais virgem, mantinha-se ao menos moça de pouca experiência, encontraria um pequeno vilarejo de casas de sapé e telhados de piaçava, onde os meninos falam uma língua antiga e misteriosa que quase não se entende pelo povo cá de cima.
Ficava, no entanto, a pouco mais de meia hora de Salvador, e menos tempo ainda das empresas petroquímicas de Camaçari. Pela rodovia, carros e caminhões de todo lugar transitavam levando cargas para Candeias, São Francisco, Feira, Vitória, Minas ou São Paulo. Mesmo olhando-se pro mar, a menos de cem metros se divisavam várias ilhas para onde os negros nadavam fugindo da escravidão. Os brancos ,que eram donos de tudo aquilo, deixaram apenas o nome do lugar, sobrenome da família, além de um engenho e um sobrado em ruínas.


O tio veio, logo foram avisar ao velho que o sobrinho tava dormindo no carro e todo mundo que passava metia a cara pra olhar. Carro como aquele por ali, somente a Mãe de Santo tinha, presente de uns italianos que ela ajudou a fechar uma transação comercial. O dela ficava o tempo todo estacionado, coberto de folhas embaixo de uma mangueira. Só usava quando ia pra Salvador, ou fazer Candomblé em algum distrito próximo.
O velho teve de bater por uns cinco minutos até que ele abrisse os olhos. Sorriu, por dentro do mal-estar. Já uma ruma de meninos estava ao redor observando o que acontecia. Baixou o vidro e acenou pro tio. Fosse um vampiro e a luz do sol não incomodaria tanto. Saiu tampando os olhos com a mão, bateu a porta do carro, o velho fez um resmungo, um muchôcho de desaprovação e acenou com a cabeça pra que ele o seguisse.
A casa era a mesma, na esquina da rua que ia para a prainha, arrodeada de gramado, cercada de graxeiras, comigo-ninguém-pode, cidreira, capim santo, violetas e um jasmim enorme sobre a cerca do quintal. Novidade somente os azulejos da fachada, o piso de cerâmica no chão, os sofás, a tv de plasma que ele mesmo mandara de Salvador, sem atinar pro desacerto daquela telona, com a salinha tímida de suas lembranças.
- Ressaca? Indagou o tio, na força dos seus sessenta. Porte de atleta de subúrbio, pescador, bom nadador, o cabelo agora branqueando. Forte, seco e musculoso, com seu bigodinho de canalha eternizado no rosto. O velho que lhe criou quando a irmã foi tentar a sorte na cidade, e criou como pai.
-É...
-Dirigiu bêbado pela BR?
- Foi...
- Quer ver a desgraça de sua tia Não é Enoque?
- Sossegue tio, o importante é que eu tô vivo...
- Hum, ás vezes é...
- Com saúde...
- Ah, você ta descansado então, vamo lá em cima comigo que eu vou comprar umas iscas pra hoje de noite. Sua tia ta lá nas roupas, vá falar com ela e venha.
- Acho melhor não, meu tio, quero uma roupa branca e um chinelo pra ir lá em minha Mãe Carminha toma a benção e buscar um banho de folha pesado que eu to carregado.
- Naquele inferno você não pisa, meu filho – a velha vinha da cozinha enxugando as mãos no saião florido que a cobria dos peitos até debaixo dos joelhos – essa família já se libertou do diabo.
- Benção minha Tia – ele tentou tomar pé da situação.
- Jesus te abençoe, meu filho, que ele é o caminho, a verdade e a vida.
Macumbeira véa, pensou, o cheiro de cuscuz exalando da cozinha lhe jogava em viagens no tempo. A mãe, a mãe da mãe da mãe da tia, tudo macumbeira desde que Odudwa fundou Ilê Ifé, e agora isso. A velha continuava forte embaixo do saião, tudo protuberava. De subir e descer morro, de mexer massa de acará, de ajudar o coroa na roça, e agora isso. Ele macumbeiro desde a barriga da mãe, foi nos aguidavis de araçá que aprendeu os toques que lhe abriram os aeroportos do mundo. O batuque que virava a madrugada que encheu sua conta de Euro, que pagou seu carro e ele tava mesmo certo de que a razão profunda de sua vida estar toda desandada eram os dois anos sem fazer suas obrigações e nem dar comida à sua cabeça, e agora isso.
Olhou intrigado pro Tio e viu, pela primeira vez na vida o velho virar o rosto desviando pra porta da rua o olhar.
- Gal, o menino vai subir comigo.
- Louvado seja Deus Enoque, ele vai tomar banho trocar de roupa e comer alguma coisa, olha a cara desse abençoado.!
O velho ciscou, olhou pra a rua, olhou pro chão, olhou pra a velha, pra as duas telhas que precisava trocar, olhou pro sobrinho, resmungou, e antes de olhar pro chão de novo falou:
- Ele disse que ta descansado...quando voltar toma banho. Bom que ele me ajuda com o peso e eu não preciso pagar pros meninos lá de cima, vumbora...
- Que peso homem? Cê num disse que ia só buscar isca?
- Eu me lembrei que o Chico ia trazer um cacho de banana da Caroba pra mim.
E saíram da casa antes que a velha pudesse pensar. O sol já estava mais forte, mas incomodava menos, parecia que o suor ia limpando, limpando. O velho andava mais rápido que ele, subindo a estrada asfaltada interminável entre o matagal. Velho forte da porra, pensou, quase meio metro menos que ele, mas subia a ladeira num fôlego só, dando três passos pra cada um dele. No meio do caminho, viu o velho quebrar pra a esquerda, numa picada que descia pelo mato. Seguiu em silêncio por um minuto.
- Ta indo pra onde, meu Tio?
- Pra casa de Mãe Carminha – respondeu sem precisar se virar – você ta precisando de um banho de folha!
- Hum...
-Quer uma banana?
- To sem fome... – e achou sua voz com um tom meio infantil.

Após as onze, quase nada se via por ali. De dentro das casas, o piscar das tvs, alguns carros que chegavam de Candeias ou Salvador e tinha um ônibus com os operários que voltavam de Madre de Deus às quinze pras doze. Então algumas mulheres iam na pracinha esperar seus maridos. De resto, na última semana o velho Totonho encontrou dezesseis de suas galinhas mortas com o pescoço aberto e sem sangue nenhum mais. Aí nem os meninos que às vezes dormiam mais tarde tentando vencer as meninas no escuro resistiam ao medo.
Nessa hora era nítida a pequenez do lugar, que a escuridão imensa da mata e do mar emoldurava. Silencioso, tudo, até os cachorros respeitavam. Pronto para todo tipo de assombração atuar anônima e fugir sem deixar nenhuma prova. Agora que os crentes tinham trazido o Diabo prali, a vila se calava e deixava a madrugada passar, madrugada de brumas e névoa, madrugada de longos ventos frios que varriam os trilhos da Leste, cobertos pelo mato antigo.
Somente o Futica virava a madrugada empunhando aquela lâmpada acesa na beira da maré e fazendo barulho em sua vitrolinha miserável tocando seresta. Da casa construída sobre um barranquinho baixo na beirada da água, puxou uma palafita pequena, uma sala de madeira coberta com telhas de zinco, sem mais conforto que umas mesas e cadeiras e um sinuca que trabalhava firme até as dez, quando o silêncio era imperativo pros pescadores que ali esperavam a hora de entrar no mar.
Havia sempre uns seis ou sete a essa hora, sentados em silêncio puxando cigarros de fumo, calados, fixando o negrume da água, escolhendo de cabeça um bom pesqueiro, fazendo rezas, contando a quantidade de iscas. Sempre um desandava na melancolia da música e viajava num passado de juventude e força, quando os navios da Baiana atracavam ali perto pra pegar carvão e telhas e tijolos das pequenas fábricas locais. Aquele era um lugar abandonado, isolado. No tempo bom vinha até gente de Santo Amaro pra trabalhar no atracadouro ou nas olarias, o trem cortava o recôncavo todo, cheio de frutas, de carne, de cerâmica. A Festa da Padroeira era uma multidão, com fogos, danças, brincadeiras, fanfarras e muita nega bonita. Hoje em dia, só o que vem de fora é bandido, fugindo dos policiais de Salvador.
Ele fumava um cigarro e bebia um conhaque, pra cortar o gelo da noite. Tudo nele parecia se reanimar, na medida e que a droga ia deixando o corpo. Alternava momentos de semi-euforia e dormência, cansaço, mas nada da paranóia ou depressão que ele achou que se instalariam assim que ele quebrasse o círculo do vício. Só passou o dia todo seguindo o tio e prestando atenção em suas ordens, andando pra cima e pra baixo vendo e falando com gente que não encontrava há anos, carregando cacho de banana nas costas, preparando linha, anzol, chumbada, isca, consertando os remos velhos de guerra, parecia que essa vida tranqüila e sem maiores nadas ia lhe tomando os poros e já estava por um fio de esquecer qualquer coisa acontecida antes de ontem.
- Meu tio, aquela não é a Mara, sentada ali no canto?
- A filha de Neidinha, ela mesma, não sei que inferno essa menina ta fazendo aqui uma hora dessas. Só dá desgosto pra a mãe, essa daí. Problema puro, É melhor você nem chegar perto.
Ele já tava do lado dela, puxando a cadeira. Curvada, ela não viu o rapaz se aproximar:
- E aí cainana véa, que é que há com você moça?
- Não vou bem como você, mas vou levando, neguinho.
Também fumava, mas cigarro de filtro. No copo, uma rodela de limão temperando o conhaque. Jeans surrado, uma blusa preta virada pelo avesso, furos no lábio inferior, na narina esquerda e na cartilagem das orelhas indicavam o gosto por brincos. O cabelo alisado cortado à altura do queixo tinha mechas aloiradas nas laterais e movia-se com a brisa leve que soprava. Suspendeu a cabeça num gesto suave, jogou pro alto a fumaça, sorriu:
- Tem já três anos que não te vejo Enoque?
- Três e meio Mara, se lembre, foi logo depois que o ginásio pegou fogo...
- Sei, que disseram que foram os meninos das Laranjeiras, lembro, o tempo fechou por uns meses aqui, ninguém subia nem descia.
- Isso! E agente ficava bebendo vinho fuleiro nos degraus da igreja, se perguntando porque ninguém teve a idéia de queimar a diretora junto.
- Aquela ali era cainana com jararaca...

Sorriram juntos, ele bebeu o resto do conhaque, ela bicou sua dose, deu mais uma tragada e arremessou com um pitoque o resto do cigarro na maré. Uma atmosfera de afeto os envolveu. Se conheciam desde as fraldas, iam juntos à igreja e ao terreiro, freqüentaram juntos o ginásio e também brigaram várias vezes com os meninos das Laranjeiras. Chegaram a namorar um tempo, ela tinha 16, ele tinha 19.
-Foi nessa época que os italianos me viram tocando o Rum na casa de Dona Carminha e me levaram pra me apresentar na Europa e eu acabei ficando por lá, tocando, dando aula, tentando fazer dinheiro.
- E eu só fiquei sabendo depois que você viajou – ela disse olhando pra o copo em sua mão, sem nada de uma sorriso nos lábios.
- Anda Enoque, é nossa hora!!!- Parecia adivinhar o sobrinho em situação embaraçosa. Eles se despediram com um aperto de mão, ela sorriu novamente e ficaram de se encontrar em outro momento. Ele foi até o balcão e pegou com Futica uma mão cheia de balas de canela.

Desceram as escadinhas de madeira que davam pra um pequeno atracadouro onde a luz pouca do boteco não iluminava. O velho que caminhava com o braço erguido trazendo o candeeiro, mostrando o caminho.
Remou por uns quinze minutos. Apesar do frio da madrugada, o suor brotou fácil da testa. O corpo limpando, pensou. O ar gelado invadiu seus pulmões, o coração acelerava. Toda a musculatura dos braços se reanimava, fazia tempo que ele não consegui nem tocar tambor, do jeito que a paranóia da droga estava.
Pararam no meio do mar. Engolidos pela escuridão, não conseguiam discernir o que ao longe, era água ou vegetação. Mas o velho, cego que fosse, sabia de cor o Caboto a sua esquerda, a Ilha de Maré em suas costas, O Distrito em sua frente, Mapele e a saída da baía à sua direita. Poucas lâmpadas ponteavam a escuridão, era o céu estrelado que os garantia a visão mínima de seus vultos, do nylon, das iscas e do isopor pra guardar os peixes.
- Pronto – disse o Tio – nem fale, nem se mecha, nem peide Enem respire, amanhã quero comer pirão de xaréu!
Logo que baixou a linha n’água, seus pensamentos retornaram a Mara. Como estava magra, os ossos se mostravam nos braços, nas mãos, na base do pescoço e do rosto. Os olhos tinham a expressão cansada. Um bagaço, carcaça daquela moça viva e contagiante. Um pouco de conversa no entanto, e essa primeira impressa se apagava. Sua pele era mais preta que qualquer pele preta do mundo, reluzia igual o mar dessa noite sem lua. Seu sorriso perfeito mostrava os dentes teimosamente bancos engolidos pelos lábios grossos e definidos, o nariz largo se juntava com os olhos profundos e as sobrancelhas cheias, pra lhe dar um ar de permanente desafio. Era a Mara, mesmo magra que um vento derrubava, cada gesto tinha uma graça desleixada que destacavam sua figura em qualquer lugar.
Um puxão na linha lhe trouxe de volta à pescaria. O fuleiro do peixe tinha roubado a isca. Canalha. Podia vê-lo lá embaixo, a mais de quinze metros, comendo sardinha e curtindo com sua cara.
Pois retornou a linha e colocou outro peixe. Desceu. O velho fez um muxoxo de desaprovação. Tinham as duas linhas nas mãos, mais duas cheias de anzóis com camarão pra pegar peixe de cardume. O tio puxou um Xaréu grande, de uns dez quilos, que ele ajudou a subir no barco. O pirão já tava garantido. Ele puxou um carrapatinho bom, de uns quatro quilos, e depois os dois pegaram uma sequência de vermelho que fez já a noite valer. Puxaram nas outras linhas mais vermelhos, tainhas, barracudas e até um polvo vacilão entrou na lambança.
Manhã começou a clarear por trás do morro e logo o sol se anunciou cortando com seus raios a manhã gelada. O velho tava contente, enrolou um cigarro de palha e fez sinal pra que ele remasse de volta. Tirou um cochilo rápido, dormir mesmo só depois do almoço. A tia já o esperava com um belo cuscuz feito com o caldo do polvo.
- Vem comer na mesa menino!
-Aqui ta bom minha tia, deixe eu matar saudade do quintal da senhora.
Sorriu, ela lhe devolveu o sorriso. Isso já fora seu mundo, era agora um quintalzinho de nada, com uma ruma de galinhas ciscando dum lado pro outro, os gatos já deviam estar na sétima geração e o cachorro era certamente, mais velho que a tia e o tio juntos, agora passava o tempo todo deitado, tentando perceber o mundo através dos olhos cegos.
Sorriu sozinho, comendo de mão o cuscuz umedecido com o caldo forte do polvo. Que isso tudo era real, que isso tudo ainda existia, que a terra sob os seus pés, que o sol quente sobre as bananeiras, que as bananeiras que eram a própria cerca viva desse quintalzinho ainda estivessem lá, cheia de abelhas enfeitiçadas pelo mel de sua flor, que as galinhas seguisse zanzando botando ovos de gema quase vermelha que o velho quebrava no caneco e bebia todos os dias de manhã, que o araçazeiro onde ele vivia se pendurando e caindo e se detonando todo agora estivesse maior do que a casa e que os músculos do seu antebraço e do seu peito estivessem agora latejando, lhe parecia a luz paradisíaca no fim do túnel de um pesadelo interminável de sexo branco entre paredes brancas, sobre lençóis brancos e a mesa branca com o prato branco e pequenos filetes de morte branca escravizando sua vontade e lhe matando pouco a pouco.
Sorriu.Foda-se,pensou. Jogou na boca outra mão de comida. Arrotou, peidou, levantou-se com o prato na mão e se viu um homem grande e forte e o mundo era mesmo aquela terra preta sob os seus pés, e o plano do dia era encontrar Mara pra ver qual era mermo a dela.
Sandália de borracha, bermuda de jeans, camiseta dobrada pendurada no ombro, boné jogado pra trás. Lá pras quatro da tarde foi descendo a rua do ginásio até o campão de barro. Todos o cumprimentavam. Quem não era seu primo, era tio, ou primo de algum primo ou tio de algum tio. O sol batia no rosto, ele andava gingando. Os meninos gritavam no pátio da creche, os adolescentes xingavam no pátio do ginásio. Pensou que poderia jogar um pouco de bola pra distrair e suar, rever os amigos, mas o campo estava vazio. Tudo bem que o sol tava rachando concreto, mas isso nunca foi impedimento pra ele e os de sua idade. Nessa hora de luz absoluta, estavam correndo atrás da bola descalços, sem camisa. O campo era um grande clarão aberto ao lado do Ginásio. Dali se via no alto a bandeira branca do terreiro e um pedaço do barracão cercado por um sem número de árvores frutíferas que escondiam as outras casas dos Orixás.
Cá embaixo as casinhas se sucediam miúdas com roupas coloridas estendidas nos varais balançando ao vento, suaves como canções de conforto. Lá perto dos trilhos, mulheres sentadas conversavam, riam alto e ralavam aipim pra fazer massa puba, enquanto pirralhos nus brincavam no meio desviando dos tapas e sorrindo das reclamações. De algum lugar vinha o cheiro característico de castanhas de caju sendo assadas, o que o fez relembrar por quantas vezes em lugares muito distantes, a solidão da ressaca da droga lhe corroera de saudades de qualquer coisa que lhe fosse um pouco familiar, qualquer apelo aos sentidos que lhe mandasse uma lembrança mínima de afeto, segurança conhecida.
Mas até mesmo a italianinha com quem saíra do país numa paixão frenética, com promessas de contratos e shows, mudou completamente o tom, quando chegaram por lá.
- Acho que meus pais não vão gostar de me ver com você – ela disse, logo no primeiro dia – Se souberem que estamos namorando, é capaz de minha mãe ter um choque!
Menina, devia ter uns 20, 21 anos, propôs lhe pagar uma pensão, e que quando viesse encontrá-la, entrasse pelos fundos pra que os pais e vizinhos não vissem. Vivia em Milão, a dona, num bairro arborizado e de ruas largas com grandes casas separadas por quintais floridos e de grama baixa. Ele foi pro bairro dos imigrantes, carregando sua humanidade na mala.
Aquele primeiro dia foi o pior de sua vida. Queda dura que o deixou estatelado no chão. Levantou, mas quando se viu de pé sentiu ter perdido alguma coisa que lhe era muito cara. Agora percebia que essa coisa era mesmo, essa certeza de ser no mundo, essa sensação inconsciente de pertencimento que sentia nesse momento.
De todo jeito, foi no bairro dos sin papiel, que reencontrou a música. Trabalho, dinheiro, mulheres e droga. Viajou por ali, tocando, acompanhando bandas de música latina. Juntou uma grana, juntou mais grana, mandou grana pros tios, aprendeu a falar espanhol, italiano e francês, e quando a loucura da droga estava prestes a lhe deixar louco, viajou de volta pro hemisfério sul. Tentou ainda Rio-São Paulo, arranjou trabalho fácil e até uma turma de alunos de percussão. Mas ali também a droga era cultura e, ainda por cima, de péssima qualidade.
- Sinho, cadê os meninos? Perguntou prum neguinho que passava. De short, camisa regata. Carregando numa sacola um galo enorme que olhava o mundo com o pescoção pra fora. Dava pra ver que era galo de briga, pelo pescoço depenado e as esporas afiadas, denunciando a contravenção.
-Os menino tão tudo na casa de Xandinho jogando Playstation – e seguiu em seu passinho apressado, descendo a beirada do campo.
-Vai botar pra brigar que horas?
- Lá em Didôlo, mas tarde, se quiser chegue lá pra botar cinco conto nesse aqui que ele é matador.
Olhou outra vez o campo vazio. Era uma tarde linda de céu sem nuvem, vacas e cavalos iam tranqüilos mastigando o restinho de grama dentro da pequena área. Desceu até a casa da prima do outro lado dos trilhos. Ainda passava um vagãozinho miserável que fazia uma zoada danada, levando sacos de aniagem de Mapele pra Candeias. A prima não estava, mas mei dúzia de meninos sem camisa se apinhavam no chão da sala, no sofá, nos braços do sofá, imóveis e com os olhos vidrados na tela, onde o cano de uma pistola ia assassinando inimigos por entre os corredores de uma fábrica abandonada.
-Que porra é essa aí? Gritou da janela tentando dar um susto nos pirralhos.
-Counter Strike – um deles respondeu, sem virar o rosto pra olhar.
- Eu quero saber é porque vocês estão aqui no videogame ao invés de estar no campo jogando bola?
- Peraí Tio – respondeu o sobrinho sem olhar.
- Vumbora suas pragas, eu trouxe uma bola oficial da Copa pra agente jogar.
- Peraí Tio!!!!
Naquela sala somente os dedos dos dois jogadores se moviam. Lembrou do e-mail: “ nega, o dinheiro é pra comprar o viedeogame do Xande, presente de natal do Tio...” e em seguida o número de transferência da Western Union. Agora isso aí. O baba da tarde boicotado pelo Playstation. Sorriu de si mesmo, chateado porque os meninos não queriam brincar com ele. Melhor ajudar a velha a tirar as roupas da corda, limpar a casa e ver se o tio tava precisando de qualquer coisa. A maré vazia não dava nem pra tentar um mergulho antes do sol cair, que tinha bem uns vinte metros de lama até chegar na água, e caranguejo ele não era.
-Tchau Alexandre, depois eu passo aí!!
-Tchau tio...



- A vadia á morando lá na maré, que o pai dela botou pra fora de casa.
- Porque vadia? – perguntou embaraçado, o outro puxou o cigarro com força, olhando direto em seus olhos:
-Toda mulher é vadia, mano, tirando Dona Tica, minha mãe, é o que todas elas são!!
Estavam no Barão, no alto do morro que separava o Distrito da rodovia. Ali os meninos tinham limpado o mato do terreno e improvisado uma pracinha, com bancos de madeira, mesas feitas com antigos carretéis de fios de alta tensão. À noite os jovens subiam pra conversar, beber e namorar de frente pra a baía que se estendia margeada pelas luzes da refinaria. O céu tava limpo, estrelado, o ar frio da noite somente refrescava, após um dia longo de muito sol.
Os quatro em sua frente não tinham mais que 23 anos. Todos criados com ele, meninos de família, como se dizia por ali de qualquer um que tivesse casa, pai, mãe, cachorro, avô, fogão e tios. Somente o mais novinho entre eles que os meninos chamavam de Dajega devido às suas preferências zoófilas, tinha atravessado um drama familiar pesado, quando o pai abandonou Dona Joana Grande. A velha não contou conversa e se mandou de volta pro Maranhão, deixando ele e o irmão mas novo dormindo no casebre lá perto do Gongo.
Cresceram da ajuda dos pais dos outros três. Um almoço, um tênis usado dão pelos professores do ginásio, e mais tudo o que as árvores e a maré e as jegas pudessem lhe oferecer. Pra além da dor profunda, eram somente mais dois meninos que subiam a rua da escola, correndo, xingando e desagradando a Deus.
Debruçados sobre o mar escuro, fumavam, bebiam vinho e ouviam rap no aparelho do Cidinho ligado no poste de luz. Tênis Nike, bermuda XXL, camisas do Santos, Boné da Bad Boy jogado pra trás, correntes grossas prateadas descendo no peito, anéis nos dedos.
Enoque bebeu do vinho. Deviam beber vinho branco e champagne, pensou, pra completar o clichê.
- O sistema desrespeira nós, Noquinho, agente não tem que respeitar Zé Povinho nenhum, ta ligado? Nossa cara é acumular as notas de cem e comer as cachorras todas daqui ta ligado? Mas nóis vai sair daqui desse buraco, sangue bom, daqui pro mundão!!
Bebeu mais vinho, o George parecia que tava armado, dando pala de cano por debaixo da camiseta da NBA. Deviam estar vestindo mais de 500 conto cada um, ele sorriu:
- E a história de um terreno no mato só seu, pegar fruta no cacho, cercado de criança? Vocês tem tudo aqui, bando de viadinho chieiro, e ficam tirando amarrado.
- Respeito Noquinho, respeite seus manos que respeito é a base, ta ligado?
Despreocupado, Dajega derramava umas pedrinhas de crack num cigarro de maconha e o fechava com habilidade.
- Vão se lascar, bando de vacilão, da próxima vez comprem um vinho bom pra poder manter essa pose toda, seus paga-pau de paulista, e olhe que meu Vitória ainda vai arregaçar o santos de vocês e eu subo aqui pra tirar onda, bando de passa-fome...
- Vá lá viadão, comer a vadia da Mara e ficar com o pau podre. Depois venha me pedir dinheiro pra te levar no HGE...

Apressou o passo, quase correu, a visão das pedras certamente despertaram os neurônios receptores. Trouxeram de volta a fissura e pensou que o suor poderia acalmar o corpo com um pouco de serotonina. Correu que nem maluco ladeira abaixo, lembrando do argelino que lhe vendia pó em Marselha, quando um dia apareceu com as pedrinhas cor de caramelo, presente pela sua fidelidade.
- Não, isso aí é veneno!! Me espere eu chegar lá no fundo do poço, que até lá eu vou com minha boliviana, enquanto grana não me faltar...
Nunca faltou.
Mas depois daquele encontro três surreal, a porra da pedra lhe mandara um beijo e ele quase lhe jogava um de volta, não fosse a chateação que sentiu pelos primos. Nessa merda de lugar, o pessoal das antigas que puxava um fumo era visto como os próprios cavaleiros de Baal-Zebuth, agora os meninos tinha descoberto a máquina do tempo e ido direto pra a idade da pedra, visitar os flinstones ao som do Facção central.
Descobriu que o barraco onde Mara estava era outra palafita quase do lado da birosca de Futica, mas imperceptível em noite sem lua. Um claridade mínima, no entanto, denunciava o casebre essa noite, provavelmente um lampião a gás. Chamou, como não teve resposta, subiu por sobre a ponte estropiada de madeira que rangeu e balançou a cada passo seu, divisando a lama, o lixo, os cacos de vidro lá embaixo lhe esperando. Era uma cabana, um quadrado sem divisões coberto com telhas de amianto e com paredes feitas com pedaços de folha de flandres e compensado. O próprio piso era incerto, cheio de falhas por onde o mau cheiro da maré invadia.

A moça estava sentada sobre um colchonete no chão, o lampião ao seu lado lhe fazia a silhueta escura e seus braços moviam-se lentamente levando o cigarro até a boca. Até mesmo a fumaça que expirava assumia toda a sua materialidade, condensando-se no ar frio e espalhando-se pela sal.
- Enoque?
- Oi Mara... sentou-se ao seu lado.
- Oi nego, ela sorriu, e a carcaça que se tornara retornou à vida, plena de uma beleza constrangedora.
- Que diabo você ta fazendo aqui nega?
Calou-se, os olhos foram acostumando-se ao negrume e pôde divisar a mesinha sobre a qual haviam pequenos objetos, pentes, prendedores de cabelo, batom. Um lata de óleo, aparentemente pra depositar água, uma sacola aberta com roupas desarrumadas, alguma louça sobre o muro da janela que emoldurava a escuridão e só.
- Fala Mara, que porra você ta fazendo aqui?
Ela puxou o cigarro até quase o filtro, soltou a fumaça num jato, pra cima.
- Tô morrendo neguinho, eu to morrendo!
Silenciou por alguns minutos, deleitado com o dilatar das pupilas e a nova visão que traziam, os olhos acostumados à falta de luz. Também tentou em vão decifrar algum sentido no gosto metálico das palavras que a menina tinha dito. Antes que pudesse perguntar, a amiga foi direto ao assunto:
- Eu tava voltando de um show em Salvador, uns quatro meses atrás, sozinha. Quando vinha descendo a rua do açougue, cinco homens me pegaram, me jogaram dentro da casa que Madimbu ta construindo, me bateram muito, me moeram de pancada, depois me estupraram, os cinco, de todo jeito.
- Merda, que merda, e você conhece os caras?
- Reconhecer? Eu tava meio descordada Noque, das porradas, da vergonha, da dor, mas era tudo cara conhecida daqui, Vado, Neno, o Seu Zé da carroça, o BR e o Madimbu também.
- Porra Mara, esses caras são todos pais de família, que porra é essa???
- Raiva nego... esse povo daqui sempre me tratou como se eu fosse uma vagabunda. Você saiu daqui tem o quê? Três anos? Eu passeia dar umas voltas em Salvador, ir nas festas de rock, me vestir diferente, pintar o cabelo...
- Virou roqueira doida...
- Doidinha só, nem parei de estudar, nem de trabalhar na lojinha de Gueu, dava banca pros meninos do ginásio. Mas pro pessoal daqui, eu virei uma ameaça, uma ofensa ambulante, entendeu, como se eu fosse uma puta, uma pervertida, eu guardando o cabaço pra algum príncipe encantado, velho, e eles dizendo que eu vivia em Sodoma e Gomorra, que eu fumava, bebia, fodia com todo mundo, cultuava o diabo...
- Mas tem tanta menina que faz tudo isso aqui Mara...
- Que fuma, bebe, que fode, que cheira, mulher que corneia o marido, marido que dá a bunda pra amigo, pai que estupra as filhas , filha que tem filho do pai, mulher que faz feitiço pra matar a outra, crente que bota ebó na encruzilhada. Tem de tudo aqui nesse buraco, meu irmão, mas tudo é na boca de siri, todo mundo sabe, mas ninguém fala nada.
- Aí aparece uma maluca vestida de preto, com um cigarro na mão e uma garrafa na outra, fica fácil pra todo mundo jogar pedra.
- Você entendeu a merda toda, mas...
Chorou, ele pôde ver na luz da brasa do cigarro, as lágrimas rolando em seu rosto. Reviu os olhos firmes, o nariz largo e perfeito, a boca linda e grossa. Reviu a marca dos ossos na face, a marca dos ossos nos ombros, na clave, os seios tesos sob o pano fino da blusa. Puxou-a pra si, beijou suas lágrimas e deu um abraço forte. Sentia que um pouco mais de força podia quebrá-la, tão magra que Mara estava. Então deitou a moça no colo e ficou olhando a fumaça sair pela janela.
- E seu pai, o que fez?
- Há, há, o filho da puta deve ter ficado com inveja, se perguntando porque não fez isso antes. Me botou pra fora de casa, depois de me dar uma surra. Esse barraco aqui foi a Carol que arranjou, onde os irmãos dela preparavam pra pescar, isso antes de viajarem. Eu ainda tinha uma grana, tava guardando pra bancar um cursinho, só pensava em estudar. Agora to aqui contando os dias...
Ele já fora doido por essa preta, fizeram juras de amor, promessas de casamento sob a luz da lua cheia lá em cima no Barão. Se viajou sem nem mesmo avisar, foi no olho grande das promessas com que a cobra de olho verde lhe enfeitiçou. Empolgado com o futuro de plástico que a italianinha lhe apresentou. Viajou todo cheio de si, íntegro dum egoísmo juvenil. Percebeu-se fascinado por essa Mara firme e madura, segura em seus comentários ácidos e que sustentava um porte majestoso ainda que a tragédia estivesse estampada em sua face. Já não era mais a menina que conheceu. Mara fizera-se mulher pela dor, e essa mulher lhe parecia de um poder enorme.
- Você vai ficar bem, Mara!
- Um mês atrás – disse ela sem considerar seu comentário – eu descobri que tava grávida, prenha de um dos sacanas que me estupraram. Nego, eu to comendo minha própria carne de tanta dor por cima de dor, mas não, disse, vamos, a Carol trouxe o remédio na semana passada, comprou na Feira de São Joaquim. O feto saiu, saiu anteontem, mas eu sinto que essa porra ainda ta dentro de mim, ainda ta me matando...
-Mara véa, você vai ficar bem, confie em mim, eu vou te pegar amanhã pra te levar em Salvador e fazer a curetagem. Isso é muito comum nega, nada de mais. Fique tranqüila que amanhã eu te pego.
Suspendeu o rosto da moça, beijou-a, nem o gosto amargo de nicotina conseguiu mascara o visgo doce de sua saliva. Fechou os olhos, como se tornando cúmplice da escuridão. Suas mãos foram nos seios fortes, percorrer o quadril que a blusa fina e saia fina e a calcinha fina quase não guardava e percebeu que, mesmo magra, a nega permanecia com os contornos exatos, dura que nem galinha velha. Percorreu a fenda, o mistério, já estava ficando doido.
- Pára nego, disse a menina se levantando, eu tô toda arrombada, toda fodida, só esperando a febre OUA hemorragia que vai me matar. Não deixe despertar o desejo que eu não sirvo mais pra isso. Não sirvo, não quero e não posso. Vai embora daqui, me deixe morrer, merda, sozinha como eu sempre fui.
Ele levantou de um salto, assustado com a rispidez com que Mara lhe falara. Tomou pé de si mesmo na porta, o mundo agora se clareava aos olhos acostumados ao breu.
- Vou nega, mas volto,e você vai ficar bem!

Manhã voltou com o mesmo sol de ontem. Sol queimando o cabelo curto, queimando as costas, queimando os pés descalços na terra quente. Tudo era a mesma algazarra de cores e de sons, as pessoas eram as mesmas, as casinhas coloridas com as roupas tremulando no varal, as velhas carcomidas descendo o morro carregando na cabeça os balaios de cajus, castanhas torradas e massa puba, a mesma bandeira branca de Tempo balançando na casa da Velha Carminha, no sopé do morro que parecia abençoar o campo de terra, onde agora estava.
Viu tanta gente enlouquecendo de frio e de solidão. Gente que podia reagir a qualquer porrada, a qualquer derrota, mas que ficava indefesa quando confrontada com a negação. Tanto neguinho músico, percussionista, artesão, que subia e descia o Pelourinho atrás das gringas, e tava agora falando bobagem na Europa, andando sujo, doente, drogado, porque não se adaptaram à experiência do não ser. Nem mesmo marginal, nem mesmo criminoso, nem mesmo inimigo, apenas um nada ambulante. Sem família, sem lugar, sem língua, comendo resto, sofrendo contrações nervosas nos músculos, tremendo as mãos, exalando o mau cheiro comum aos loucos.

Suou a putinha italiana com quem viajou pra Milão. Numa arrancada pra a grande área, suou o policial de Marselha que lhe roubou quase dois mil euros. Cobrando um escanteio, suou os olhares de medo, os silêncios, as indiferenças em uma cobrança de falta, o menino moçambicano que vira morrer em Lisboa sem ninguém ajudar. O guarda da imigração não lhe respondia nada, doze horas trancado no aeroporto de Madri. Sem água, sem comida, explicação, sequer um olhar. O dia já virara em noite, quando saiu e, talvez tivesse passado uns vinte anos ali dentro, contando os azulejos da parede. Ninguém pra abraçar, ninguém a quem se queixar, ninguém era ele mesmo e suou em um golaço de cabeça depois de um cruzamento de esquerda o primeiro dia em que cheirou o veneno branco que parecia lhe dar superpoderes e torná-lo alguém, um personagem patético de sua inexistência.
Suava pelos cabelos, pelo peito, pelas axilas, pelo púbis, pela perna, acreditou ali na libertação pelo suor e se sentiu livre, certo e tranqüilo em seu sorriso, quando os outros vieram abraçá-lo pelo gol que decidia a partida e o destino dos engradados de cerveja que estavam em jogo.
No bar de Dona Joanita, parecia haver uma festa, com os pescadores que tinha pescado mais de cem quilos de peixe, coisa rara hoje em dia que a maré ta suja e aparece sempre peixe boiando morto na beira da areia. Todos sem camisa, os coroas, pareciam tão duros quanto os mais jovens. Alguns mais secos, mas todos musculosos e pretos das mais diversas matizes. Tirando o peixe reservado pra vender no outro dia lá em São Joaquim, Dona Joanita cozinhava uma moqueca das grandes que seria comida por todos os presentes. Quando se cruzaram os pratos de peixe com as cervejas do jogo de bola, a coisa ficou ainda mais alegre . Moças dançando os últimos pagodes que tocavam no rádio do bar, meninos descalços pedindo doces aos que eram pais e tios. Até quem estava saindo agora do colégio, tiravam as camisas azuis do governo e entravam na farra.
Enoque se sentiu constrangido quando percebeu que um dos pescadores sentado na mesa era o pai de Mara. Brindando com os amigos, bebendo cerveja, brincando com os meninos que se aproximavam. Ele próprio também o chamavam de “tio”,quando era mais novo. Era um dos pescadores mais experientes do lugar e por isso todos no bar lhe festejavam com cervejas e gozações.
- Os peixe deve ser tudo viado pra gostar de você Totonho...
- Peixe é igual a você peão, eu arranco a cabeça e como o rabo...
- Que nada BR, num vi nada dessa valentia quando a véa Joana pequena tava lhe caçando...
- Deus é mais, peão, quem gosta de assombração é cemitério...
- Que nada fuleiro, Cê tá comendo até bunda de cachorro doente...
Todos riam, ele também, já alterados na pequena euforia da cerveja , que para a maioria dos que estavam ali, nem era bebida, acostumados ao travo forte da cachaça. Foi pelo nome do outro que percebeu, parceiros de mesa, o pai e o estuprador da filha, celebrando a fartura da pescaria. Preferiu expulsar a filha do que procurar briga grande com os caras. Ele mesmo experimentava a onda de simpatia mútua que parecia unir a todos naquele momento. Dizia uma piada, fazia uma graça com as meninas, tirava um sarro com o time perdedor, desfrutava da naturalidade do seu lugar, dos seus amigos.

Covarde, pensou entre sorrisos, renegou a filha, largou a menina pra morrer na maré, e ficava ali rindo com um dos que tinha desgraçado ela. Que porra que tinha ali de covardia, de inveja nos olhares, de maledicência nas brincadeiras, crueldade escondida nos abraços dos amigos e que somente se mostrava quando as portas se fechavam e a privacidade dos lares justificava o silêncio de tudo. Não fantasiava. Era também sua miséria, sua covardia, sua inveja, sua pequenez de alma que ele compartilhava com todos os que ali estavam. A menina desafiou, quis ser diferente, parece que incomodou alguma coisa encravada no peito desse povo todo que cantava e bebia, cúmplices de um crime coletivizado pela omissão de todos.
Mas como violaram a menina que todos viram crescer? Mara foi sempre tão bonita, toda desembaraçada, falante, boa aluna. Os meninos brigavam por ela nas festas de fim de ano. Mara... Como foi ingênua. Eles podiam desculpar tudo, menos seu esforço por ser diferente. Era como quebrar uma espécie de lealdade que abraçava os bêbados, os viados, os crentes, os macumbeiros, as putas, as corneadoras, os vagabundos, mas relegava a um tipo ativo de ostracismo, àqueles que se soltassem da matilha. Aquela merda ia ser soterrada pelo crack, pelo pagode, pelo apocalipse dos crentes, pela obesidade, pela fumaça química das refinarias, mas não podia suportar o desafio de uma menina linda, ainda que um pouco desnorteada.
Sorriu.
- Não, Dona Joanita, pra mim já ta bom de cerveja... vou subir.
Ia vê-la, fisicamente, achava que podia matá-lo com facilidade, o pai, era forte, o outro também, mas cortava no zinco, os dois, e ia se sentir bem por isso.Deixou o copo sobre o balcão, ia buscar Mara, levar no hospital, cuidar, engordar a nega, fazer a piveta florescer de novo, esquecer a merda que fizeram com ela e ela ia ser sua mulher e ninguém ia mexer com sua mulher. Subiu até a igreja, pegou a rua que descia até as palafitas. O sol estava bem em cima da sua cabeça, quase ninguém se aventurava pra fora da sombra das casas e dos bares. A maré brilhava refletindo a claridade, a lama seca partia sob os seus pés. Atravessou a ponte de madeira do lugar onde Mara estava. Carol estava sentada com a outra deitada em seu colo. Raios do sol desciam pesados entre as frestas do telhado. A beleza da imagem, no entanto, não o impediu de perceber as lágrimas que desciam no rosto de Carol. Ao lado de Mara, uma poça enorme de sangue já ressecado.
- Não dá mais tempo... Eu quis te chamar, mas não quis deixar o corpo. Pelos bichos, né? Ela queria te ver...
Enoque sentou-se ao seu lado, tocou seus cabelos, beijou sua testa. Sentiu-se enjoado e o vômito quase vem na boca. Nada mais havia pra ser feito. Ele ia embora dali hoje mesmo.