quarta-feira, 7 de julho de 2010

Salvador Negro Rancor - O Conto


Salvador Negro Rancor

Uma cabeçada. Quando eu terminei o meu rabo-de-arraia, o gringo me pegou na cabeçada: fingiu que ia soltar outro rabo-de-arraia por cima do meu, e retornou com a cabeçada. O não-esperado, a surpresa, o de repente do movimento, me jogou no chão com os meus anos todos de Capoeira. Ele ainda soltou uma chapa de costas raspando meu rosto, pra mostrar que podia ter me matado. Saí de lado no rolê, não caí de bunda no chão, mas de todo jeito, o sujeito tinha me desmoralizado, e tinham bem uns três mestres antigos tocando os berimbaus, sorrindo, brincando, debochando de minha falha.
Levantei, sacudi a poeira e dei a volta de aú. O escroto do gringo abria os dentes, como se estivesse brincando também, como se fosse só um jogo, um brinquedo exótico, uma reunião entre amigos, e ele pudesse me tratar com toda a intimidade. Tentei buscá-lo numa rasteira, ele saltou na bananeira, ágil como um gato, e caminhou de cabeça pra baixo, num equilíbrio impecável, me olhando. Ensaiei uma cabeçada, ele se fechou, marquei um rabo-de-arraia, ele esquivou sem dificuldade. Lembrei do meu Mestre. A volta do mundo, a paciência, a diplomacia. Fosse pra ser, eu encontrava ele em outra roda, num dia, num ano qualquer, fosse pra ser, e descontava minha cabeçada. Não podia era me afobar, perder a elegância, isso ele não tolerava. Pois baixei no pé do berimbau, respirei fundo, pedi calma a Oxalá, marquei um ponto no chão e chamei o rapaz de volta pro jogo, como se nada tivesse acontecido. Os golpes se sucediam, lentos e sincronizados, bonitos, ritmados pela languidez do toque do berimbau, a luz opaca que descia do teto enchia a sala de nostalgia, e eu pratiquei quase que em transe , aquela magia secular de resistência, como se corpo não tivesse, e fosse somente movimento. O Velho Mestre abaixou o berimbau, chamando o final do jogo. Fechei minha oração, apertei a mão do americano e fui tocar o atabaque, e fiquei lá até a roda terminar, já pelas tantas da noite, admirando o jogo dos coroas, cheio da malícia ingênua e perigosa, que nos ajuda a vencer os dias.
No ônibus vinha pensando, de que maneiras podia ter escapado do bote. Um movimento simples, na verdade. Se fechasse o corpo com o joelho, ou mesmo se retornasse o peso com o cotovelo no seu rosto, tinha facilmente desfeito a situação. Foi a distração, minha inimiga, talvez por confiança demais, só um segundo de distração, e pronto, no momento seguinte era o chão. As pessoas voltavam pra suas casas, muitas vindas do Pelourinho, onde o Olodum tinha ensaiado. Noite de domingo, amanhã era dia de branco, o pessoal gastava tudo de véspera, pra não sobrar nada no outro dia, e agora juntavam-se bêbados, torcedores de futebol, crentes e alguns ladrões de ocasião, como num poema de Limeira. O cara dirigia como se tivesse levando uma carga de galinhas pro abate, jogando velha por cima de menino, crente por cima de ebózeiro. Uns gritavam, outros não estavam nem aí, querendo mais chegar logo, pra longe daquela intimidade forçada, nosso barco ia.
Era a coisa do aprendizado, segundo o meu Mestre, de aprender com os erros, de aprender na roda pequena da Capoeira, o que me serviria para me fundamentar na roda grande da vida. E entre os erros, a distração era um dos piores, ali mesmo em nosso comboio, distrair era suicídio, podia custar ou a vida ou a morte, um mal entendido, uma resposta mal dada, um olhar mal trocado, um vacilo com a carteira, um flagrante na mochila e bum, ia tudo no chão, rápido demais pra que eu pudesse resistir. Então a atenção de capoeira era assim, do início no pé do berimbau, até o final da roda, tudo iria acontecer a qualquer minuto, e eu tinha de estar atento o tempo todo. Na real, minha mágoa era essa: falhar num fundamento tão elementar! O gringo soube levar. Evadiu o jogo, escapou bem nos meus ataques, não procurou mais apertar o jogo, nem deu sopa pra que eu o pegasse em erro. Certo então, um a zero pra ele, e vamos seguindo, sendo sempre o que Deus quiser.
Nisso aí, fui chegar em Cajazeira quase meia-noite, suado, cansado, mais pela hora e meia de viagem do que por trabalho ou exercício. Dei um toque no celular da preta, eu queria te ver. Ô nego, eu to tão cansada – ela disse – amanhã saio cinco horas pra o serviço, não descansei nada no final de semana, fazendo docinho de festa, Tô acabadinha. Mas chegue na porta -eu falei- e ela saiu pra me ver. Ô nega morrendo de saudade. Tava nada, se tivesse tinha ficado aqui e não tinha ido pra nenhuma Capoeira. Ô preta, a Capoeira fica fora disso, vamo dar uma volta, vamo? Que volta menino, cê não ouviu o que eu falei? Eu tenho um nada pra dormir antes de ir trabalhar. Meu patrão tá indignado por causa da sexta-feira. Mas sexta-feira foi bom demais num foi? Ela sorriu, se encostou me encostou no muro: Foi sim, bom demais, mas trepar não dá salário e você não tem dinheiro pra me sustentar né? Não tenho ainda princesa, eu to estudando pra isso, hoje eu sou pobre amanhã sou doutor. Lá vem você com Capoeira. Foi mal, é vício mesmo, mas vamos andar um pouco vamo, abriu um hotel maneiro na Rótula, vamo lá conhecer? Hotel de alta rotatividade? Altíssima rotatividade, vamos lá pra eu te fazer rodar, vamo? Você é horrível nego, assim você me leva derretida numa vasilha, e foi quando a velha botou a cabeçona pra fora da porta e perguntou se não já estava na hora dela entrar pra dormir cedo pra ir trabalhar amanhã. Ta sim mãe, já tô indo!

Levantei às seis, a porta de aço da padaria. Pão já todo feito, chão passado pano, tudo cheirando a novo. A Ladeira do Pelô tinha sempre movimento, fossem gringos, funcionários públicos, viciados em crack, sempre alguém subia e descia, sempre alguém cantava, sempre alguém gritava, ou cantava gritando, pra ser mais que a confusão toda do início do dia. O sol já tava forte às seis da manhã e eu sempre achava bonito aquele céu do pelourinho, completamente azul sem uma nuvem branca, só o azul maciço, pleno, e o bando de pessoas fazendo suas vidas mais uma jornada, tentando a sorte na corrida dos ratos, é isso. Desde manhã cedo o pessoal do velho sindicato corre na padaria pra comprar bombinha de pinga. Um real, um e cinqüenta, a bebida garante a lucidez necessária, pra arrastar mais um dia pastoreando os carros dos funcionários, vencendo moedinha que nem criança aceita mais. O espanhol brinca, dá risada, fala com o sotaque espalhado, começou cedo hoje hã? Pro coroa que conta as pratinhas no balcão. O pessoal diz sempre, que eram artesãos, sapateiros, escultores, que viviam aí no Pelô e foram retirados de suas casa pela reforma. Outros somente perderam seus ofícios pra a modernidade, como os tipógrafos, os enceradores de pisos e móveis, os fotógrafos de rua. Agora batendo ponto no velho sindicato, se atracam na rua pelos pontos de vigia dos carros, e agente se diverte vendo eles brigarem, com uns socos cegos que às vezes os fazem girar em torno deles mesmos, sem acertar nada nem ninguém. É assim, esse cheiro de pão fresco costumava me nostalgiar com lembrança de infância, me deixar numa alegria melancólica. Hoje em dia é só mais um detalhe de minha mais-valia de oito horas de segunda a sábado com duas horas pro almoço que eu divido com o colega que faz os lanches na chapa e que é um maluco que estuda filosofia e que faz dos mais diversos efeitos das substâncias alucinógenas que estejam ao seu alcance, o tema de suas pesquisas. Tito é um negão maneiro, sabe de tudo mais prefere não se envolver em nada. Um tipo novo de bon-vivant, malandro até o osso, impressionante, eu acho que até dormindo esse rapaz arranja mulher e não se atrapalha. Trabalha pra caramba, faz sua faculdade, dá força pra a mãe véa, malha, o que não quer é se envolver em política. O mundo é vontade de potência nego velho- ele dizia despachando um cheeseburguer- como é que esse pessoal cheio de doença e mania vai libertar ninguém? Cozinha é o juízo dos outros em reunião, pra vencer na teoria, dominar sem força, só na mediocridade de suas éticas de escravo. Eu sorria, duas varas de pão pra Dona Lurdes, vinte pãezinhos pra Márcia, Márcia tava ficando uma coisa louca. Duas caixas de leite pro Juarez do gás. Ele não desistia. Esse pessoal, meu irmão, se fizer revolução, se fosse quilombo, não conseguia nem subir a Serra da Barriga, de tão gordos e cheios de comida e conforto, eles já não tem o direito animal de falar sobre a vida, porque eles são escravos do conforto, ta ligado? Eu sorria. Dona Vera queria um pacote de Cream Cracker, Seu Ivan queria meio quilo de queijo fatiado bem fininho, que só eu conseguia tirar, a maluca que pedia na frente do Rosário queria uma caixa de fósforo e o guardinha da Set uma carteira de cigarro. Eu era cheio de braços e mãos e de pernas, atendendo a todos, enquanto o espanhol sentava lá no caixa e não saía de junto do dinheiro. Ele ficava invocado quando agente conversava coisas que ele não conseguia entender. Acho desconfiava que mais dia menos dia agente ia matar ele e tocar fogo na empresa da família, fazer o quê?
Tito que apontou, lá vai o seu gringo subindo pro Santo Antônio. O filho de vaca vai treinar lá com o Mestre Naval e fotografar os Mestres velhos que estão lá no Forte essa hora. É nego, o cara dá dois de você, você precisa malhar,você ta muito fraquinho. Vou ficar igual a você robocop? Ficar forte igual a mim vacilão, criar sustança pra num ta tomando rasteira de gringo. Eu não tomei nenhuma rasteira de gringo não cumpadi, foi uma cabeçada e isso aí em você é músculo burro, duro, sem flexibilidade, não serve pra Capoeira Angola, que o corpo tem que agir na velocidade do pensamento. Conversa nego, conversa, ce tá precisando pelo menos de um complemento alimentar. Trabalhar Tito, vai trabalhar, a freguesa ali pedindo lanche faz meia hora e você jogando conversa fora, eu quero ver você fazer um treino comigo, do início ao fim, aí agente vai ver quem é que está fraquinho.
Durante o dia, o almoço com Tito era o único momento em que eu me sentia vivo. O resto era a escuridão da morte, um limbo de movimentos automáticos e palavras repetidas sem propósito, como se um parasita cósmico sacana pilotasse meu cérebro e me soltasse somente na hora em que eu saía dali.
Diante do prato de moqueca, ele continuava, derramando sua filosofia. Que Nietzsche e Foulcault eram o caminho, a verdade e a vida e que ninguém iria a lugar nenhum senão através deles. Eu gostava. Era bom que ele pensava e falava por mim e por ele, e eu podia ficar em silêncio me fazendo de sério e só refletindo em cima das idéias dele, sem esforço quase nenhum. Jogava um monte de molho de pimenta no prato e desenvolvia. Que esses europeus eram o reflexo da merda de sociedade cancerígena que eles mesmos criaram, que a merda da filosofia deles não alcançava os povos fora da Europa porque agente vinha de um outro berço cultural. As meninas vinham na mesa, pediam um real pra comprar crack e saíam, com os seus cachimbos na mão, atrás de mais outro otário. O ideal coletivo é uma mentira-ele dizia- o mundo é a luta por domínio de uns sobre os outros, e vença o mais forte, o melhor, e na lei de Muricy, cada um cuide de si. Eu pensava que o indivíduo não-europeu só tinha sua individualidade integral no sentido da comunidade, só se completava em meio aos seus, e que a vontade de dominar os outros, era um vontade de potência doente, a verdadeira potência estava em se dominar, em se conhecer, em se expandir, e isso só se costurava em coletivo, de forma clânica (e o Zé Bim perguntava na tela ao menino negro acusado de furto: Sua casa caiu?) Tito era uma metralhadora, e dizia que o que ele via nos movimentos era a dominação mais mesquinha, daqueles que tinham o mínimo de conhecimento sobre aqueles que eram de tudo ignorantes, e que precisavam de uma liderança pra morrer por eles. Nego Tito, o que você vê hoje não é medida pra nada, é conseqüência da escravidão, você tá confundindo capitão do mato com quilombola, tá se embaralhando todo. Que nada, fique aí com seu romantismo dando sangue pra esses fuleiros enquanto eles dão voltinha com carro do governo e comem suas amiguinhas afro- feministas. Saúde era na África, eu finalizava, saúde era na África e África é nossa medida. Olhe seu gringo subindo o Pelourinho, e já tá com outra camisa de Capoeira. É rapaz, ele tá indo treinar com o Mestre Pedra Preta, e fazendo uma pesquisa lá sobre as músicas antigas de Capoeira. Voltávamos com nossas caras de conspiradores, olhando calados e firmes a cara vermelha do espanhol na caixa registradora cheia de bambá.
Às seis, mochila nas costas a caminho da academia, era que minha vida recomeçava, e sentia meu sangue voltar a pulsar nas veias, o ar voltar pros meus pulmões, as coisas a fazer sentido. O gringo também estava lá, treinando com o meu Mestre que ele conheceu numa viagem que o Mestre fez lá pro outro lado. Eu silenciei por dentro, não me importava. Queria viver integralmente minha cultura, queria encontrar a Ioga da Capoeira, sua meditação, seu equilíbrio, nadar até a profundidade da sabedoria que ela guardava, século após século, e trazer isso comigo por cada segundo de minha vida, não como uma atividade física, nem como uma distração. Eu queria ser um Capoeira o tempo todo, respirar isso, ver correr no sangue, pensar capoeiristicamente, ser uma espécie de monge capoeirano, um devoto, um iniciado, um samurai.
Após nos alongarmos, começamos a gingar lentamente. Meu brinquedo era tornar consciente cada mínimo movimento, as menores flexões do corpo, os músculos se estirando e contraindo. Um berimbau tocava um lamento. Desci na negativa, movimento de resistência, contraindo os músculos na medida necessária para desviar dos golpes possíveis. Então a força, pra subir do chão, retornar pra a ginga, descer de novo, treinando repetidas vezes da mesma forma, sem deixar, no entanto, nada mecânico, percebendo tudo, atento pra qualquer reação, pronto pra sair, escapar, mudar tudo a qualquer momento e atacar, quando houvesse espaço. Eu passei tanto tempo sem saber, sem compreender que cada pequena coisa fazia uma diferença tremenda. Às vezes simplesmente o lugar onde se colocava a mão, para iniciar um golpe de ataque, modificava toda a sua seqüência, dificultando ou facilitando as possibilidades posteriores de defesa. Ou o lugar onde se retornava de um movimento, onde se punha o pé, centímetros mais à frente ou atrás, nos tornava presas fáceis pro parceiro, em caso contrário, inatingíveis. Nego Hélio que dizia, que de nada adiantar fazer grandes coisas, as partes mais difíceis, e esquecer dos pequenos detalhes. Subia e descia, virava de cabeça pra baixo, trocava a mão pelo pé, o pé pela mão. Em minha frente, um amigo de muitos anos, muitas festas, muitas barcas. Um amigo que podia tornar-se de repente, tão letal quanto o meu pior inimigo, e eu subia e descia, mas sem perdê-lo de vista, ser humano, falível, traiçoeiro, o que vem trazendo, o que vende aí? Vai saber. Eu me preparava pra tudo. A Capoeira é dialética em seu fundamento. Um pequeno número de ataques e defesas, que se combinam e se multiplicam infinitamente, criando variadas formas de responder ou desviar das perguntas lançadas pelos parceiros, de apresentar perguntas cujas respostas eles não possam solucionar, ou mesmo, trancá-los em seu próprio jogo, até o momento certo de empunhar o golpe certeiro, infalível: o cheque-mate.
Mãe que diz sobre o Candomblé, que o que se aprende no terreiro serve pra qualquer situação no mundão, mas que nem tudo que serve no mundão serve pra dentro do terreiro, e meu Mestre ia na mesma linha, repetindo o Mestre Pastinha, que a Capoeira Angola é tudo o que a boca come, que educa pra vida. Daquela pequena roda, rodava-se o mundo todo sem paradas, sem dificuldades, com a mente ágil e bem treinada, o corpo potente e sempre pronto, pra bom entendedor, porque tudo é sim, sim, sim , mas também é não, não não. O Mestre castigava, forçava até o limite dos nossos corpos, arrancava o que de preguiça tivesse na planta da bananeira, no salto da queda de rim, na ponte, escorriam no suor o espanhol, o dinheiro que não tinha, a falta de ver a nega, as três horas diárias dentro do coletivo lotado, a conder querendo derrubar meu barraco, a coelba, a embasa, e todos os diabos que trabalham contra o que é sagrado, no suor grosso que escorria por meu corpo todo. Depois da ducha no banheiro da academia mesmo, eu era outro homem. Leve, feliz, pleno, íntegro e pronto pra vencer o que de batalha fosse, como vinha vencendo dia após dia, desde que no mundo me jogaram. Entrava no ônibus quase dançando com a cobradora, leve mesmo, fone de ouvido escutando Felá Kuti: “I ´m not getleman like those. I´m african Man original...” me sentindo, me sentindo.

Às doze horas ela amarrava um pouquinho: ô nego olha a hora, tem de trabalhar amanhã, ô nego, minha mãe tá puta da vida comigo. Quando eu arrancava sua calcinha no dente era que começava a se entregar, e apertava os olhos e esticava o rosto pra cima. O povo diz assim, com as mãos na cabeça pra não perder o juízo.
À uma da manhã ela era toda egoísmo: calada, em cima do meu corpo deitado, subia e descia na medida do seu prazer. Exata, sabia o que queria, lentamente conquistava o seu gozo, que eu previa em suas mãos apertando mais e mais os meus braços estirados.
Às três estava louca, serpenteava grudada em meu sexo, arrancava os lábios de tanto morder. Estava quente, suada, delirava sandices e me pedia palavras obscenas. Eu era seu rei, seu macho, seu nego. Ela se derretia, saltava, eu empurrava com força, ou metia bem devagar, pra lhe ver ficar mais doida, chamava de puta, minha puta, e ela oferecia o rosto pra uma bofetada. Aí arrancava minha pele com as unhas, trazia nas mãos meus cabelos, se soltava de mim chorando, soluçando, o corpo levemente estremecido por descargas elétricas.
Às cinco era pura ironia: Cadê o nego, cadê? Se num guenta pra que veio, menino? Os pássaros, vagabundos, já cantavam no quintal, os galos da vizinhança, os ônibus, os radinhos de pilha já anunciavam o dia novo querendo trabalhar. Eu me internava lá dentro da nega, me acabava, me perdia, me encontrava, e tomava um banho todo duvidoso, que eu gostava era de ir trabalhar com seu cheiro grudado em meu corpo.
Às sete, já no ônibus, encostava a mão no meu pau, e percebendo a latência, sorria discreta e me chamava no ouvido, de cachorro.
Tocava no fone de ouvido: “and if it´s all night, got to be all right”

Meio de semana, eu na lida dura e lá vai o gringo subindo a Ladeira do Pelô com sua mochila cáqui, cheia de calças cáquis e camisetas brancas. Vai viajar pra Cachoeira, por todo o recôncavo, gravando, fotografando, tomando nota, entrevistando as pessoas mais velhas, os senhores contadores de história, as velhas parteiras, as tias cozinheiras e as feiticeiras velhas. Leva seus livrinhos de antropologia, certo, leva seus livrinhos de sociologia, certo, leva seus livrinhos de geopolítica, certo. Ontem o Mestre tinha mandado que todos os alunos, e os demais que estavam fazendo o treino, nos dividíssemos em duplas e jogássemos uns com os outros, como simulação de roda. Isso já no final do treino, depois de ter arrancado o nosso couro e também as nossas vísceras, era o teste maior de resistência, de bom preparo e de resultado. Eu mandinguei, não vou mentir. Primeira oportunidade que eu tive, fiz sinal pro meu parceiro e parei pra olhar o jogo do gringo com um menino da Sussuarana. Jogava direito mesmo, o loirão, concentrado, ágil, extremamente flexível. Técnico como uma máquina, reproduzia perfeitamente cada novo movimento ensinado pelo Mestre na aula. Não demonstrava nenhum cansaço ao repetir cada uma das saídas e cada uma das entradas treinadas durante a semana. Eu procurava o detalhe, o lapso, o defeito, mas ele não vinha. Percebi que o Mestre me olhava já a alguns minutos, e quando nossos olhos se cruzaram, fez sinal pra que eu adiantasse meu treino. Saí pra rua ainda refletindo nas vias de acesso pra o seu coração, quando a nega me ligou, eufórica, que tinha saído o negócio da bolsa da faculdade, e que me amava, e que agora agente tinha de vender os cabelos da bunda pra conseguir quitar os débitos anteriores, pra poder receber o benefício. Me alegrei com ela, mandei amor via ondas telefônicas, que linda a tecnologia então. Que isso merecia uma garrafa de vinho e mais uma noite de amor, que até a velha ia se alegrar.

A desintoxicação, em todos os casos, é uma atitude mental. Um dia eu deixei de acreditar, e essa opção me libertou. Não é livre o homem que, sob escravidão, trabalha durante toda a vida, guardando moedas, para que no fim dos seus dias, possa comprar alforria, e viver alguns minutos que seja, sem o jugo legal do seu amo? É escravo o quilombola, o que ainda com os ferros nos braços foge em desespero mata adentro, ainda que morra estupidamente, por acidente, por picada de cobra, pelo capitão do mato? O fato é que ele não crê, não admite, a estrutura mental que justifica sua subjugação. Como a água, que entre as barreiras de pedra, segue brusca ou lentamente o seu curso, todo o seu ser está direcionado para o não-escravo, o não submetido, o revolto, e a escravidão deixa imediatamente de existir.
Eu vinha numa loucura pra lá de patológica, já há muito tempo, nessa de não acreditar. No momento vivia em minha onda de recuperar os meus direitos animais, que os direitos humanos já não pareciam me bastar. Me sentia um leão, de volta ao poder animal, de comer, de dormir, de trepar, de celebrar, de matar, de gostar do gosto do sangue, de destruir qualquer um que se metesse em meu caminho pra me parar. Era assim como a água durante o dia, um conspirador, um infiltrado, um terrorista, um mandingueiro ladino, tentando de leve corroer e corromper a estrutura enquanto sugava dela o que de bom tinha pra mim, deixando é claro, a cota do meu suor, cumprindo o meu que fosse de compromisso, que nada aqui vem de graça. De noite, fora do trabalho então, eu era o próprio fogo queimando, todo brasa, preguiça em mim não existia, fosse pra treinar três horas de Capoeira depois de um dia de trabalho, ou pra traçar concreto e fazer laje em casa de minha tia, pensando claro, organizando o pensamento, compondo, criando, estudando, aprendendo e ensinando, meu corpo forte e afiado, leve e permanentemente pronto, o sexo ativo, a percepção desconfiada pro que fosse de movimento de matéria, e ágil também pra perceber o que fosse de intuição, de recado, de mensagem, dos Deuses ali colados comigo, um do lado do outro e Eles sempre acima. Era Eu, burnin’ .

-Esse pessoal nem no Pelourinho passava, que era brega e que só tinha puta, traficante e trombadinha – disse o Mestre Antigo, virando uma dose de canela na garganta – Agora taí, morador antigo é quase nenhum, que foi tudo pra Fazenda Grande 3, Alto de Coutos, pra onde o governo mandou. Tem uns dormindo na Baixa dos Sapateiros também – complementei concordando. É, tem um bocado de morador antigo do mangue que agora é indigente na Barroquinha, dorme no albergue e o resto do tempo é pedindo dinheiro na rua. Eu vi essa semana, menino, um Manoel, que era tanoeiro, o melhor tanoeiro que tinha em Salvador, ali do Maciel de Baixo, guardando carro no Tabuão, sujo, fedido, me pediu um real pra comprar pinga e nem me reconheceu. Eu que reconheci ele. É Mestre, é triste, o Pelourinho tá acabado. È porquê, menino, o que faz um bairro, são os moradores, é todo mundo conhecer todo mundo, um mais velho que conhece você por que você é filho de num sei quem do 40, um que toma conta do outro e até se mete na vida, mas sem nenhuma maldade grande. Mas o bicho já pegava aqui, né Mestre? Pegava o quê menino, era bom! Isso aqui nunca dormia, tinha sempre movimento, gente sentada nas portas conversando, os meninos jogando bola no Largo, vários capoeiristas bons andavam por aqui, nos castelos, nos bares, nas serestas, qualquer festa era motivo de roda de bamba. Polícia era que chegava aqui barbarizando, querendo massacrar os outros, querendo dinheiro, prendendo pai de família. Traficante. Cada um vive do que pode meu querido, o importante era que todo mundo se respeitava, se tratava bem, era comunidade, hoje em dia, olhe pra isso: um monte de loja, tudo falida, as ruas sem vida, os meninos tudo viciado na pedra, zanzando de madrugada que nem Zumbi, e os Mestres grandes, os bons mermo, a maioria tudo já se foi. Dei um gole na canelinha. A bicha desceu rasgando minha garganta, dilatando tudo o que é poro, como uma bola de gude no estômago, bom, forte. O Senhor tá enfeitando demais Mestre, com todo o respeito, mas eu alcancei a época do Pelourinho Mangue e não era nenhum paraíso não. Olhe meu filho, a vida é o que ela é. Me entenda: todo lugar tem otário, tem vacilão, tem caguete, tem gente enxerida, e essas pessoas, você sabe, não vivem bem em lugar nenhum, e sempre fazem confusão nos lugares. Então é isso né Mestre? É isso sim menino, acredite nesse Mestre velho que você não perde nada e ninguém te bole. Disse sorrindo um sorriso ao mesmo tempo ingênuo e malicioso, traçando de rugas o rosto forte e cheio de vida. Firmeza Mestre, já vai, eu vou descer por aqui Mestre, ver se vejo a nega, ou uma roda de Capoeira. O que achar primeiro? É, o que achar primeiro me leva. Cuidado que se a nega tiver na roda você pega embaixo!
Desci a Alfredo de Brito, bambeando, todo serelepe, não era tarde, mas as ruas já estavam vazias, somente os garçons e donos dos bares esperavam nas portas a chance de interpelar algum estrangeiro perdido, e vender alguma coisa que fizesse a noite valer. Segui o caminho das pedras pretas, cabeça-de-nego, usa-se chamar, pois eram trazidas nas cabeças dos africanos, que vinham desde a rampa do cais, subindo ladeira até chegar aqui. Os casarios antigos me cobriam, deixavam um pedaço só de céu noturno pra ser apreciado. Não descuidava do passo, que as pedras engorduradas te derrubam e você só fica sabendo que caiu quando a bunda encontra o chão. Desci o Largo do Pelô, palco grande de batalhas e festas, até as pedras ali cresciam, regadas de tanto sangue. Uma baiana de acarajé solitária espalhava na praça fumaça de dendê, fritando no azeite a passarinha. Já vi muitas vezes os meninos armarem campo nessa praça enladeirada, e jogarem bola até o amanhecer, enquanto os mais velhos sentados nas escadas do Museu, conversavam sobre o futebol e sobre os casos de polícia. Em lugar disso, só os sacizeiros dançando em frente à Praça do Reggae, suas danças estranhas e robóticas. Subi o Carmo, também ali a maior parte dos casarões está fechada, lacrados, esperando que a especulação imobiliária dê mais valor ao patrimônio do outros. Assim a má iluminação e a neblina de churrasquinho e cigarros deixa um tom fantasmagórico pra quem passa depois das poucas mesas onde bebuns e artistas tentam salvar ou destruir o mundo. Passei pelo Pascoal, cruzei o Santo Antônio, onde as casinhas térreas de telhas de barro e cores singelas se sucedem infinitamente, me fazendo lembrar a Ribeira, ou qualquer cidadezinha do interior, e velhas mais velhas que a república brasileira ainda botam a cara nas janelas pra olhar a vida dos outros, algumas mais ousadas ainda fumam sedutoras seus cigarros longos, relembrando vedetes derrubadas em suas camisolas de dormir. No Largo do Santo Antônio já se escuta o som dos Berimbaus, provenientes das várias Capoeiras que sobrevivem lá dentro do Forte, antiga Cadeia, onde os mais velhos Mestres de Capoeira Angola ainda brincam seus brinquedos, extasiando toda uma multidão de amantes antigos e neófitos, que falando todas as línguas possíveis e cantando em todos os sotaques, repetem aplicados as cantigas ingênuas que os pretos cantavam por essas mesmas ladeiras e ruelas, no tempo em que tudo isso era perigoso, em que tudo isso parecia que ia dar em um beco sem saída e vazio de sentido, se todos esquecessem como essa brincadeira ainda poderia ser feita com vontade e vigor e alegria, pra não somente alegrar os velhos em seu segredo manhoso, mas também alegrar e motivar as crianças, as meninas, os meninos, soprando-lhes vida em suas cabecinhas ocas. Aí está.
A capoeira crescia na roda. Me benzi ao entrar: toquei com o dedo no chão, e com os dedos a cabeça, pedindo a graça da proteção do Orixás. De dentro já se ouvia: “ê,ê,ê ê, eu venci a batalha de camungerê...”. Andei mais uns passos antes de chegar na roda, e deixei no caminho todos os pensamentos que não fossem concentração e atenção. Já os mandingueiros lá de dentro, quando eu entrei, mudaram a cantiga só pra me saudar: “ Camungerê, como vai, como está? Como vai vosmecê?...” Eu cumprimentei a todos, beijei a mão do Mestre e me desculpei por só estar chegando na roda do meio pro fim. Ele fez com a mão um gesto de não ligue e vá jogar, e em silêncio, fui sentar no banco de aguarde.

Eu quando entro assim na roda, me entrego à Capoeira. Acreditando que sua sabedoria pode me conduzir ao que é certo, seja esse certo bom ou ruim, a depender do tipo de energia com o qual eu esteja, a depender do grau de atenção com o qual eu esteja sintonizado. È um pouco como não ter medo da morte, como não poder se fugir do destino, sendo melhor então, encará-lo com firmeza e comportamento digno, estando preparado pro que vier pela frente. Mais uma vez, o que for humano, que eu tenha forças pra dar conta, pra lutar sem medo, e vencer, de acordo com o que de meu é meritoso. O que for de maldade então, mas o que for escondido, o que for de traição e de covardia, que o povo do Orún esteja a postos, pra me proteger e não deixar cair em armadilha nem tocaia.
Baixei no pé do berimbau, e o gringo desceu pra apertar minha mão. Não pedi, não previ, não desejei, mas ele veio. Todo se bulindo, todo expansivo, fazendo pantomimas e símbolos de umbanda no chão antes mesmo de começar o jogo. Esse daí é mais macumbeiro do que eu - pensei. Tomei a benção dos instrumentos, do Mestre, dos músicos, cantador puxou um corrido, e eu desci em queda de rim, pra dar saída ao jogo. O abusado nem esperou eu retornar o jogo com rabo-de-arraia, e já tentava entrar com a cabeça por debaixo do meu corpo. Falta de educação, tava se achando porque me derrubou na outra roda. Evitei seu golpe com o joelho, girei outro rabo-de-arraia e abri o jogo na roda, dando mais espaço pra ele se espalhar em toda sua nova confiança. Ele pulava, subia, descia, soltava os movimentos rápidos em seqüência e remarcava o chão com as mãos, como se tivesse fazendo algum feitiço antigo. Eu nem lhe via. Girava e girava no salão apenas pressentindo seus movimentos e soltando movimentos básicos, deixando ele gastar à vontade. Abri uma tesoura, ele pulou no aú, saiu no rolê e soltou uma chapa pra acertar minha barriga, saí tranqüilamente do seu alcance, quebrei o corpo numa perna-pela-frente bem devagar, o que fez seus olhos brilharem pela oportunidade de me pegar em cheio novamente. Ele resistiu, não tentou entrar, mas se alterou visivelmente, empolgado com a possível repetição da cena da roda anterior.
Eu já trazia há uma semana a minha estratégia. Vi ainda no treino, corujando seu jogo, que ele tinha muita confiança, mas nem tanta Capoeira, e que aí era que eu podia lhe encontrar em erro: ele não esperava que suas entradas fossem devolvidas à mesma altura, nem com a mesma rapidez. Deixei ele jogar mais um pouco, espalhado. Depois encostei, colei em cima dele como se fosse sua sombra. Rabo-de-arraia encontrando suas costelas, forcei o cara a descer. Em cima, entrei com uma chapa de frente em sua saída de aú, marquei uma rasteira em seu rabo-de-arraia obrigando-o a saltar com a cabeça no chão e joguei um giro de calcanhar por cima pra faze-lo rodar num rolê rápido, sem o qual o solado do meu tênis alcançaria seu rosto em cheio. Sua feição mudara. Eu não apertara pra valer, estava apenas exigindo sua melhor Capoeira, levando o gringo a seu limite, e ele estava claramente irritado por isso. Então me retraí e esperei, o momento em que sua vaidade iria leva-lo como a um ladrão, a retornar ao lugar do seu crime, ou melhor, a tentar me pegar novamente no mesmo erro, no mesmo golpe, me desmoralizando outra vez. Mas como diz meu Mestre, o homem nervoso, afobado, tende a ser previsível em seus atos, e isso não é bom, pra um Capoeira. Abri o jogo, agora era ele que me buscava em cada canto da roda. E eu, se continuava sério, sentia por dentro um certo prazer, em conscientemente, controlar a situação. Não precisei esperar muito, e lá veio o menino botar açúcar em minha boca: Pulei num aú demorado, que eu quebrei ainda em cima, antes de voltar no chão, soltei um rabo-de-arraia bem colado nele, e voltei pra a base com o corpo bem alto, na posição ideal pra que ele me pegasse de novo, do mesmo jeito. Ele fez o mesmo, muito rápido. Para mim, em câmera-lenta. Seu rabo-de-arraia veio com tudo, pra arrancar toco de massaranduba que no chão tivesse, pra me fazer descer. Eu desci, quebrei a negativa bem no ponto em que ele me queria, abri um pouco o tórax, e ele veio doido, veloz como uma bala, com aquela cabeça loira sem noção das coisas. Ele veio doido, se soltou demais, na certeza de me encontrar indefeso e me derrubar novamente. Eu me fechei, pra sua surpresa, trazendo o joelho pra frente do corpo, com velocidade e força pra afastar sua cabeça do caminho. Passei o pé em seu rosto. Caso ele insistisse com a cabeçada, ia pé em cheio na cara, pra mandar nariz, se eu soltasse o pé, pro Ivo Pitanguy. Ele recuou, saiu rápido num rolê pra trás, pois sabia que tinha de sair do meu alcance, que o serviço tava todo dado. Ele conseguiu se livrar da minha chapa bem a tempo de ela não lhe alcançar, mas não esperava que o mesmo pé da chapa ia finalizar o movimento já dentro dele, e que eu ia subir de vez, buscando o seu rosto numa cabeçada. Ele tesou o pé, eu subi, ele protegeu a cabeça, eu puxei o pé que ele descuidara. Ele caiu que nem uma jaca em meio à roda, de bunda no chão e tudo o mais. A moçada delirou, sorriu e deu vivas. Eu levantei, circulei a roda enquanto ele se recompunha do inesperado, e quando ele começou a levantar, baixei no pé do berimbau, esperando ele voltar. Fiquei pensando pra onde fora o seu sorriso, sua animação, e rezei, de olhos abertos, pedindo a Xangô pra me guiar até o final daquele jogo.
Jogamos mais um pouco, ele se acalmou, então o berimbau chamou, apertamos as mãos e terminamos o jogo, sem maiores rancores ou confusões, somente as coisas nos seus devidos lugares e minha alma então um pouco mais leve, minha fera um pouco mais satisfeita. No brinquedo, só um dia depois do outro dia, um do caçador, outro de outro caçador, e não muda nada. A canoa virou, marinheiro e só nos resta saber o que há de se fazer no fundo do mar. Acabada a roda, uma mensagem de minha nega no celular, me intimando a encontra-la em nosso hotel de alta rotatividade, afinal, ela ganhara uma bolsa na faculdade!
Essa é um história da Bahia, a que eu acabei de contar, quando os malês, do blade runner, encontraram os replicantes em plena Praça da Sé, e o que se seguiu foi uma novela de amor e ódio pelas ruas antigas do Pelourinho, com direito a moqueca de siri catado e batida de mangaba. E tudo sem que os jornais virtuais virtualmente percebessem.
Mandingo – 10 de Dezembro de 2008

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