segunda-feira, 19 de julho de 2010

A Capoeiragem Carioca no Século XIX


Artigo : Cenário Urbano do Rio Imperial

As Maltas de Capoeira.


Fábio Nascimento


Palavras-Chave : Brasil Império, História do Rio de Janeiro, Capoeira Carioca.


Resumo : O presente artigo visa possibilitar uma percepção do cenário urbano do Rio de Janeiro, Capital do Brasil durante o período imperial, tendo como foco, o fenômeno da capoeragem carioca e os seus personagens principais, ocupando-se do seu desenvolvimento e do seu impacto na sociedade local.


O período imperial brasileiro, que se inicia com a vinda da família imperial portuguesa para o Brasil em 1808 e perdura até a proclamação da república, em 1882, foi entre outros, um dos períodos mais conturbados da história brasileira, marcado por dezenas de convulsões sociais, disseminadas por todo o território nacional. Nos interstícios dessas crises, revoltas e revoluções, a população das cidades brasileiras, principalmente das cidades portuárias, vivenciavam as transformações sociais advindas de uma urbanização incipiente, de um cosmopolitismo novo, oriundo da abertura dos portos e das medidas urbanizantes implementadas já pelo próprio Dom João VI, intensificadas após a independência.

No Pará, a Cabanagem, no Maranhão, a Balaiada, em Pernambuco, a Revolução Praieira, na Bahia, os levantes dos africanos, a Revolta dos Malês, a Sabinada, no Sul, a Revolução Farroupilha, os próprios conflitos decorrentes do processo da independência, a onda xenófoba que se espalhou por todo o país, bem como as escaramuças entre liberais e conservadores posteriores à independência, as lutas pelo poder entre as oligarquias agrícolas e comerciais formam o quadro convulsivo da política brasileira no período.

No Rio de Janeiro, maior cidade portuária do país ( e uma das maiores do mundo), esse contexto urbano adquiriu contornos específicos. Com a mudança da Real família portuguesa com toda a sua corte para a cidade, agora capital brasileira, esse processo de urbanização é mais acentuado, até porque os seus portos eram escoadouro de toda produção agrícola e mineral dos sertões do sudoeste e nela estavam instalados a maioria dos comerciantes e empresários responsáveis por essas atividades exportadoras.

Quando a partir das primeiras décadas do século XIX, a Inglaterra interrompe suas atividades mercantes voltadas para o tráfico escravista, passando a exercer pressão sobre os demais países ( principalmente aqueles com quem mantinha relações comerciais, como no caso do Brasil) para que seguissem o seu exemplo, a diminuição do fluxo do tráfico transatlântico gera o crescimento notável do fluxo do tráfico inter-regional, e nesse contexto, o Rio de Janeiro passa a ser o principal pólo receptor de africanos escravizados vindos de outras regiões, principalmente do Nordeste.

Conquanto o Rio de Janeiro imperial não agregue um histórico relevante de revoltas sociais, é esse contexto urbano específico, e suas expressões específicas típicas do seu cosmopolitismo, que vai gerar o fenômeno de desordem popular e desobediência civil que alcançaria proporções notáveis de constrangimento social: a capoeiragem carioca do Rio imperial.

Ainda a história não tem hoje estamentada, uma conclusão a respeito da origem da capoeira, segundo Líbano Soares, em uma das mais razoáveis probabilidades “ capoeira seria um mosaico formado por diversas danças africanas ancestrais que se teriam amalgamado em definitivo na terra brasileira.” (Soares, Carlos Líbano; Golpes de Mestres in Revista Nossa História, Ano I nº 5, pág. 16). Essa arte, dança-luta, desenvolveu-se no Brasil, sendo percebida principalmente nos ambientes urbanos portuários, de Belém, Recife, Salvador. Pernanbuco e Rio de Janeiro. Nesta última cidade, a capoeira se destaca enquanto fenômeno urbano relevante a partir do século XIX, sendo retratada por diversos artistas estrangeiros de passagem pelo Brasil, como Earce (1822), Rugendas (1835), Harning (1840).

No Rio de Janeiro portuário, a capoeira floresceu entre as camadas mais baixas da população. Africanos, crioulos, mestiços, portugueses e imigrantes pobres se agregavam na sua prática, fossem eles estivadores, trapicheiros, carroceiros, cozinheiros, carregadores ou vagabundos, sobrevivendo com malícia no ambiente urbano, cenário brilhantemente retratado na obra “O Cortiço” de Álvares de Azevedo, e devidamente documentado, nos arquivos da polícia carioca, amplamente pesquisados por Carlos Líbano Soares na composição de sua obra “ Capoeira - A Negregada Instituição- os capoeiras nos tempos do império” .

Os capoeiras cariocas se organizavam em agrupamentos conhecidos como “maltas”, que variavam em número de membros. As maltas estavam dividas entre veteranos e aprendizes, e entre esses, os caxinguelês, que eram crianças em treinamento, que assumiam os postos de aviso e a linha de frente das batalhas, provocando os adversários. Antes que se notem semelhanças entre o Rio antigo e o Rio atual marcado pela violência dos morros e do trafico de drogas, acrescentamos que essas maltas estavam geograficamente localizadas em bairros que comandavam. As maltas tenham suas cores específicas, e o desavisado que transitasse em outro bairro, trajado com as cores de uma malta inimiga, corria sério risco de vida.

“Cadeira da Senhora”, era a malta que comandava a freguesia de Santana, a “Três Cachos”, comandava a freguesia de Santa Rita, os “Franciscanos”, eram de São Francisco de Assis, “Flor da Gente”, da freguesia da Glória, “Monturo”, da praia de Santa Luzia, a “Espada”, do Largo da Lapa. Dentre as maltas, duas se destacavam: os Nagôas, radicados na periferia da cidade, tinham tradição africana, os Gaiamuns do centro da cidade, agregavam mestiços, imigrantes pobres, homens livres e intelectuais. Se os Nagôas usavam o chapéu com uma cinta branca sobre o vermelho, os Gaiamuns usavam uma cinta vermelha sobre o branco.

As escaramuças entre as maltas se davam nas épocas de festas populares, quando uma dessas invadiam o território alheio. Algumas vezes no entanto, a ousadia dos capoeiras iam ao ponto dos combates serem divulgados em cartazes pregados aos postes. As gírias e expressões características das maltas, formavam glossários únicos, que escandalizavam a fina flor da sociedade carioca, que abarrotava as redações dos jornais e os gabinetes das autoridades exigindo providencias rígidas que dessem fim a barbárie publica dos capoeiras.

A Guerra do Paraguai (1865/1970), é um marco divisor na história dos capoeiras. Destacados por sua bravura e heroísmo no cenário da guerra, retornavam à cidade ainda mais ousados, depois de serem recrutados a força para lutar no Paraguai. Os capoeiras passaram a ser parte integrante das lutas políticas entre liberais e conservadores, monarquistas e republicanos, trabalhando como capangas, hora para um lado, hora para o outro, coagindo eleitores, dispersando comícios, espancando inimigos políticos. Os Nagôas se ligaram aos monarquistas do partido conservador, enquanto os Gaiamuns eram ligados aos republicanos do partido liberal, no entanto, a ligação entre os capoeiras e conservadores, tornou-se referência tão forte, que a vitória dos liberais e a proclamação da república em 1882, correspondeu à dura onda de repressão perpetrado por Sampaio Ferraz, o chefe da policia do Marechal Deodoro, que torturou, matou e prendeu capoeiras às centenas, degredados para apodrecerem na Ilha de Fernando de Noronha. Ferraz estava amparado pelo novo código penal de 1890, que criminalizava a capoeira e previa pena de prisão e degredo para reincidentes e membros de maltas.

Os capoeiras que aterrorizavam o império, foram praticamente extintos pela repressão republicana. Nomes como: Manduca da praia, Mamede, Aleixo Açougueiro, Pedro Cobra, Quebra Coco, Boca Queimada, Trinca Espinha, alem de membros de destacadas famílias das elites cariocas, como Duque-Estrada, Arauba Nogueira, Plácido de Abreu, que foram também exímios capoeiras, viram-se excluídos da história moderna, e a capoeragem carioca, de glória ofuscada pela capoeira baiana do século XX, somente agora vem sendo resgatada por pesquisadores como Jair Moura, Carlos Líbano Soares, Letícia Cardoso e Nestor Capoeira, percebida como fenômeno urbano popular característico do período imperial, no Rio de Janeiro capital do Brasil.



PEQUENO GLOSSARIO DA CAPOERAGEM CARIOCA:


CAMBAR - Passar de um partido para o outro.

SARDINHA - Navalha

MOQUETE - Soco

BANHO DE FUMAÇA – Tombo

PEGADA – Encontro de maltas

SARANDAJE – Pequenos capoeiras

BAIANA – Joelhada

CIFRADA – Cabeçada

MELADO – Sangue

CAVEIRA NO ESPELHO – Cabeçada na cara

LAMPARINA – Bofetada

RUJÃO – Batalhão

DESCANGALHAR – Fugir da policia

JANGADA – Xadrez de policia

PALACIO DE CRISTAL – Detenção

CHACARA – Casa de correção

FORTALEZA – Bar

URUBU-MALANDRO – Experiente

DANÇA DE VELHOS – Capoeragem


BIBLIOGRAFIA

*Soares, Carlos Eugenio Líbano

“ A Negrada Instituição, os capoeiras na corte imperial – 1850-1890”

Rio de Janeiro, Ed. Acces, 1998

“ Golpes de Mestres “ Revista Nossa Historia, Nº 5, Março de 2004

*Carvalho, Letícia Cardoso

“ As Maltas de Capoeira do Rio de Janeiro “

Revista Praticando Capoeira, Nº 07, 2000

*Capoeira, Nestor

“ Os fundamentos da Malicia “’’’, Ed. Record, Rio de Janeiro 1998

*Moura, Jair

“ Subsídios para uma visão retrospectiva da capoeragem no Rio de Janeiro”

5 comentários:

  1. Parabéns, Mandingo! Ótimo trabalho, de grande valia para quem quer estudar capoeira. Seu texto é simples e claro,mas sei que essa simplicidade dá um trabalho....

    Abraço!

    Guga (Campinas-Sp)

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  2. O trabalho mais fundamental para o resgate da capoeiragem carioca e sua continuidade é o de André Luiz Lacé Lopes. São também de importância maior os trabalhos de Luiz Sérgio Dias. Parabéns pela dedicação ao tópico!

    Carlos Eduardo (Brasília)

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  3. Para os interessados no excelnte tópico:

    http://www.facebook.com/pages/Capoeiragem-Carioca/179283338768725?v=photos#!/pages/Capoeiragem-Carioca/179283338768725?v=wall

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  4. A capoeiragem carioca tem que ser lembrada,ou vai ser esquecida historicamente.
    Engolida pela versão baiana da capoeira.

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  5. Parabéns mandingo,eu já tinha lido a respeito,mas é sempre bom recordar!

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