A idéia deste blog, é colocar na rua material escrito por mim, Mandingo, e por pessoas/autores que eu admiro, compartilhando um pouco das nossas afrovivências literárias, entre outras coisas, aproveitando o espaço virtual, aprendendo e trocando experiências. Axé!
segunda-feira, 26 de julho de 2010
Laroiê!
Está no ar, lançado. Laroiê Exú, que todos os caminhos sejam abertos. Kawô Kabiecilê, Salve meu pai Xangô, seguimos sempre na justiça e na humildade. E tudo vai sempre dar certo!
Salvador Negro Rancor
Os Contos do livro lançado e repercutido, Salvador Negro Rancor - São pedaços da afrovivência nas ruas do Pelô. A idéia surgiu quando o professor Maka me convidou pra participar de uma coletânea com contos sobre o Pelô. A coletânea não saiu ainda e eu percebi que tinha muitas outras coisas pra contar sobre o dia a dia do centro de Salvador. Pois vai aí( É só copiar e colar):
- Kaska
http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/kaska.html
- Salvador Negro Rancor:
http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/salvador-negro-rancor-o-conto.html
- Pipoca:
http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/pipoca.html
- Por Acaso:
http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/por-acaso.html
- Cisco:
http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/cisco-em-homenagem-musica-do-dmn.html
Apresento também alguns trabalhos de pesquisa,
Sobre as vidas, obras , intersecções e antagonismos entre os líderes afro-americanos Booker T. Washington, W.E. Dubois e Marcus Garvey:
http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/marcus-garvey-booker-t-wahington-e.html
Um trabalho que propõe uma reflexão profunda sobre três diferentes projetos de posicionamento nacional para o povo negro nos Estados Undos, que penso poder servir de base pra a nossa reflexão aqui no Brasil.
Dois artigos que fiz durante a graduação, bem bibliográfico, sebre assuntos referentes à prática e à história da Capoeira Angola:
http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/capoeiragem-carioca-no-seculo-xix.html
http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/musicalidade-da-capoeira.html
O trabalho seguinte é a minha monografia, para a conclusão do curso de história da UCsal, tratando de uma história recente e que diz respeito a todos os que se importam com o futuro das manifestações da nossa afrocultura e de que forma estamos nós lidando com essa modernidade neoliberal:
http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/capoeira-angola-do-ostracismo.html
E um conto não publicado que fala sobre um período muito louco que vivi em Belo Horizonte, misturando fatos reais com ficção, mas que foi muito importante pra mim, rsrsr, sempre sobrevivente, espero que o Paulista ainda esteja vivo e bem, espalhando sua sabedira pelas ruas do mundão:
http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/paulista-inedito.html
Firmeza, por enquanto é só isso ( não me atrevo a colocar as poesias, não são muito boas, na minha opinião), quando aprender a colocar os endereços dos textos como link, faço isso, pra lhes poupar o trabalho de copiar e colar, by now, é copiando e colando mesmo, tem canseira maior na vida... Enviem seus comentários, isso é muito importante pra mim. Axé!!!!
segunda-feira, 19 de julho de 2010
A Capoeiragem Carioca no Século XIX
Artigo : Cenário Urbano do Rio Imperial
As Maltas de Capoeira.
Fábio Nascimento
Palavras-Chave : Brasil Império, História do Rio de Janeiro, Capoeira Carioca.
Resumo : O presente artigo visa possibilitar uma percepção do cenário urbano do Rio de Janeiro, Capital do Brasil durante o período imperial, tendo como foco, o fenômeno da capoeragem carioca e os seus personagens principais, ocupando-se do seu desenvolvimento e do seu impacto na sociedade local.
O período imperial brasileiro, que se inicia com a vinda da família imperial portuguesa para o Brasil em 1808 e perdura até a proclamação da república, em 1882, foi entre outros, um dos períodos mais conturbados da história brasileira, marcado por dezenas de convulsões sociais, disseminadas por todo o território nacional. Nos interstícios dessas crises, revoltas e revoluções, a população das cidades brasileiras, principalmente das cidades portuárias, vivenciavam as transformações sociais advindas de uma urbanização incipiente, de um cosmopolitismo novo, oriundo da abertura dos portos e das medidas urbanizantes implementadas já pelo próprio Dom João VI, intensificadas após a independência.
No Pará, a Cabanagem, no Maranhão, a Balaiada, em Pernambuco, a Revolução Praieira, na Bahia, os levantes dos africanos, a Revolta dos Malês, a Sabinada, no Sul, a Revolução Farroupilha, os próprios conflitos decorrentes do processo da independência, a onda xenófoba que se espalhou por todo o país, bem como as escaramuças entre liberais e conservadores posteriores à independência, as lutas pelo poder entre as oligarquias agrícolas e comerciais formam o quadro convulsivo da política brasileira no período.
No Rio de Janeiro, maior cidade portuária do país ( e uma das maiores do mundo), esse contexto urbano adquiriu contornos específicos. Com a mudança da Real família portuguesa com toda a sua corte para a cidade, agora capital brasileira, esse processo de urbanização é mais acentuado, até porque os seus portos eram escoadouro de toda produção agrícola e mineral dos sertões do sudoeste e nela estavam instalados a maioria dos comerciantes e empresários responsáveis por essas atividades exportadoras.
Quando a partir das primeiras décadas do século XIX, a Inglaterra interrompe suas atividades mercantes voltadas para o tráfico escravista, passando a exercer pressão sobre os demais países ( principalmente aqueles com quem mantinha relações comerciais, como no caso do Brasil) para que seguissem o seu exemplo, a diminuição do fluxo do tráfico transatlântico gera o crescimento notável do fluxo do tráfico inter-regional, e nesse contexto, o Rio de Janeiro passa a ser o principal pólo receptor de africanos escravizados vindos de outras regiões, principalmente do Nordeste.
Conquanto o Rio de Janeiro imperial não agregue um histórico relevante de revoltas sociais, é esse contexto urbano específico, e suas expressões específicas típicas do seu cosmopolitismo, que vai gerar o fenômeno de desordem popular e desobediência civil que alcançaria proporções notáveis de constrangimento social: a capoeiragem carioca do Rio imperial.
Ainda a história não tem hoje estamentada, uma conclusão a respeito da origem da capoeira, segundo Líbano Soares, em uma das mais razoáveis probabilidades “ capoeira seria um mosaico formado por diversas danças africanas ancestrais que se teriam amalgamado em definitivo na terra brasileira.” (Soares, Carlos Líbano; Golpes de Mestres in Revista Nossa História, Ano I nº 5, pág. 16). Essa arte, dança-luta, desenvolveu-se no Brasil, sendo percebida principalmente nos ambientes urbanos portuários, de Belém, Recife, Salvador. Pernanbuco e Rio de Janeiro. Nesta última cidade, a capoeira se destaca enquanto fenômeno urbano relevante a partir do século XIX, sendo retratada por diversos artistas estrangeiros de passagem pelo Brasil, como Earce (1822), Rugendas (1835), Harning (1840).
No Rio de Janeiro portuário, a capoeira floresceu entre as camadas mais baixas da população. Africanos, crioulos, mestiços, portugueses e imigrantes pobres se agregavam na sua prática, fossem eles estivadores, trapicheiros, carroceiros, cozinheiros, carregadores ou vagabundos, sobrevivendo com malícia no ambiente urbano, cenário brilhantemente retratado na obra “O Cortiço” de Álvares de Azevedo, e devidamente documentado, nos arquivos da polícia carioca, amplamente pesquisados por Carlos Líbano Soares na composição de sua obra “ Capoeira - A Negregada Instituição- os capoeiras nos tempos do império” .
Os capoeiras cariocas se organizavam em agrupamentos conhecidos como “maltas”, que variavam em número de membros. As maltas estavam dividas entre veteranos e aprendizes, e entre esses, os caxinguelês, que eram crianças em treinamento, que assumiam os postos de aviso e a linha de frente das batalhas, provocando os adversários. Antes que se notem semelhanças entre o Rio antigo e o Rio atual marcado pela violência dos morros e do trafico de drogas, acrescentamos que essas maltas estavam geograficamente localizadas em bairros que comandavam. As maltas tenham suas cores específicas, e o desavisado que transitasse em outro bairro, trajado com as cores de uma malta inimiga, corria sério risco de vida.
“Cadeira da Senhora”, era a malta que comandava a freguesia de Santana, a “Três Cachos”, comandava a freguesia de Santa Rita, os “Franciscanos”, eram de São Francisco de Assis, “Flor da Gente”, da freguesia da Glória, “Monturo”, da praia de Santa Luzia, a “Espada”, do Largo da Lapa. Dentre as maltas, duas se destacavam: os Nagôas, radicados na periferia da cidade, tinham tradição africana, os Gaiamuns do centro da cidade, agregavam mestiços, imigrantes pobres, homens livres e intelectuais. Se os Nagôas usavam o chapéu com uma cinta branca sobre o vermelho, os Gaiamuns usavam uma cinta vermelha sobre o branco.
As escaramuças entre as maltas se davam nas épocas de festas populares, quando uma dessas invadiam o território alheio. Algumas vezes no entanto, a ousadia dos capoeiras iam ao ponto dos combates serem divulgados em cartazes pregados aos postes. As gírias e expressões características das maltas, formavam glossários únicos, que escandalizavam a fina flor da sociedade carioca, que abarrotava as redações dos jornais e os gabinetes das autoridades exigindo providencias rígidas que dessem fim a barbárie publica dos capoeiras.
A Guerra do Paraguai (1865/1970), é um marco divisor na história dos capoeiras. Destacados por sua bravura e heroísmo no cenário da guerra, retornavam à cidade ainda mais ousados, depois de serem recrutados a força para lutar no Paraguai. Os capoeiras passaram a ser parte integrante das lutas políticas entre liberais e conservadores, monarquistas e republicanos, trabalhando como capangas, hora para um lado, hora para o outro, coagindo eleitores, dispersando comícios, espancando inimigos políticos. Os Nagôas se ligaram aos monarquistas do partido conservador, enquanto os Gaiamuns eram ligados aos republicanos do partido liberal, no entanto, a ligação entre os capoeiras e conservadores, tornou-se referência tão forte, que a vitória dos liberais e a proclamação da república em 1882, correspondeu à dura onda de repressão perpetrado por Sampaio Ferraz, o chefe da policia do Marechal Deodoro, que torturou, matou e prendeu capoeiras às centenas, degredados para apodrecerem na Ilha de Fernando de Noronha. Ferraz estava amparado pelo novo código penal de 1890, que criminalizava a capoeira e previa pena de prisão e degredo para reincidentes e membros de maltas.
Os capoeiras que aterrorizavam o império, foram praticamente extintos pela repressão republicana. Nomes como: Manduca da praia, Mamede, Aleixo Açougueiro, Pedro Cobra, Quebra Coco, Boca Queimada, Trinca Espinha, alem de membros de destacadas famílias das elites cariocas, como Duque-Estrada, Arauba Nogueira, Plácido de Abreu, que foram também exímios capoeiras, viram-se excluídos da história moderna, e a capoeragem carioca, de glória ofuscada pela capoeira baiana do século XX, somente agora vem sendo resgatada por pesquisadores como Jair Moura, Carlos Líbano Soares, Letícia Cardoso e Nestor Capoeira, percebida como fenômeno urbano popular característico do período imperial, no Rio de Janeiro capital do Brasil.
PEQUENO GLOSSARIO DA CAPOERAGEM CARIOCA:
CAMBAR - Passar de um partido para o outro.
SARDINHA - Navalha
MOQUETE - Soco
BANHO DE FUMAÇA – Tombo
PEGADA – Encontro de maltas
SARANDAJE – Pequenos capoeiras
BAIANA – Joelhada
CIFRADA – Cabeçada
MELADO – Sangue
CAVEIRA NO ESPELHO – Cabeçada na cara
LAMPARINA – Bofetada
RUJÃO – Batalhão
DESCANGALHAR – Fugir da policia
JANGADA – Xadrez de policia
PALACIO DE CRISTAL – Detenção
CHACARA – Casa de correção
FORTALEZA – Bar
URUBU-MALANDRO – Experiente
DANÇA DE VELHOS – Capoeragem
BIBLIOGRAFIA
*Soares, Carlos Eugenio Líbano
“ A Negrada Instituição, os capoeiras na corte imperial – 1850-1890”
Rio de Janeiro, Ed. Acces, 1998
“ Golpes de Mestres “ Revista Nossa Historia, Nº 5, Março de 2004
*Carvalho, Letícia Cardoso
“ As Maltas de Capoeira do Rio de Janeiro “
Revista Praticando Capoeira, Nº 07, 2000
*Capoeira, Nestor
“ Os fundamentos da Malicia “’’’, Ed. Record, Rio de Janeiro 1998
*Moura, Jair
“ Subsídios para uma visão retrospectiva da capoeragem no Rio de Janeiro”
A Musicalidade da Capoeira
Música e Capoeira – Elementos para a compreensão da importância da musicalidade na Capoeira Angola
Fábio Nascimento-Mandingo
Palavras-chave: Música, Capoeira, cultura africana, instrumentos africanos, musicalidade.
Resumo: O texto trata da importância da música para a prática da Capoeira Angola, contextualizando essa importância no ambiente material-ritualístico da roda de Capoeira, conforme sua prática atual, traçando ainda um pequeno histórico da Capoeira.
O tratar de qualquer assunto relativo a aspectos contidos no universo da capoeira, ou da Capoeiragem, como preferem autores como Frederico Abreu, nos obriga a traçarmos ao menos, um breve histórico referente à nobre arte da Capoeira, essa dança – luta, que vem, ao longo dos anos, se espalhando por todos os cantos do planeta, envolvendo cada vez mais praticantes das mais diversas origens nacionais, culturais e étnicas.
Muito se tem discutido no âmbito acadêmico, em relação às origens da Capoeira, no entanto, a escassez de fontes documentais que possam nos oferecer uma percepção mais próxima do mundo do negro escravizado no Brasil nos primeiros séculos da colonização, dificulta tal tarefa, mais ainda se atentarmos para o fato de que, a pouca documentação existente, foi escrita do branco “sobre” o negro, e não partindo deste para outro receptor. Mais ainda, faz-se necessário ressaltar, que no próprio contexto filosófico da Capoeira, o “esconder”, “fingir”, “ludibriar” e “ disfarçar” a sua prática, são objetivos previstos em suas metodologias comunitárias. Portanto, as primeiras informações que temos sobre a Capoeira, são oriundas do momento em que o branco começa a “perceber” a sua existência, enquanto expressão diferenciada. Desse modo, a maior parte das obras parecem tender para a indefinição, referendando sem dúvida, a sua matriz africana, e discordando em graus variados, quanto à importância das contribuições indígenas portuguesas. Mesmo quanto à palavra Capoeira, encontramos discordância se a sua origem vem do Tupi “ KAA-Pu-Ê-Ra, que significa mato rasteiro recém cortado, ou da sacola de carregar galos, que segundo alguns autores, teria o nome português de capoeira, referente à sua utilidade de carregar os capões.
Como entendemos a escrita da história em sua dimensão política, e a política em sua dimensão racial, não podemos deixar de perceber, a presença de sutis antagonismos ideológicos presentes nesta discussão, e assim, não nos excusamos ideologicamente de apresentar a nossa opinião, de que, como o Candomblé, da forma em que hoje é cultuado, é o resultado da integração, no Brasil, de diversos modelos de cultos religiosos africanos, aproximados artificialmente no contexto da escravidão, a Capoeira seria também uma fusão dinâmica e interétnica de diversas lutas marciais rituais africanas, integradas no mundo diaspórico brasileiro. A presença de lutas como a Ladja, da Martinica, e do Moringue, da Ilha de Reunion, Madagascar, entre outras expressões marciais que possuem alguns golpes similares aos da Capoeira, e que são também realizados tendo a música como base, parece confirmar a nossa percepção, de que a Capoeira, é uma expressão Africana, mas do contexto exclusivo do Brasil ( em que não negamos a influência Indígena e mesmo portuguesa).
A partir do século XIX, entretanto, a documentação que dispomos sobre a Capoeira, é majoritariamente, advinda de registros policiais referentes à perseguição da sua prática, principalmente a partir da segunda metade deste século, quando a sua penalização é prevista no Código Penal (1890), com punições que vão de seis meses a seis anos, com degredo para Fernando de Noronha. Nesse sentido, destaca-se a farta documentação carioca, que deve-se ao fato de no Rio de Janeiro, a prática da Capoeiragem e consequentemente a sua perseguição, terem tomado proporções de grande polêmica social, com prisões em massa, artigos de jornais, determinações oficiais, entre outras coisas. Na Capital do Império e da República, a Capoeira se organizava nas famigeradas Maltas, grupos formados por dezenas de capoeiristas de bairros determinados, que entravam periodicamente em conflito corporal com as maltas inimigas, gerando o pânico da população e principalmente da aristocracia local, que se escandalizava com a petulância dos arruaceiros que chegavam mesmo a marcar antecipadamente, com panfletagem pública, data, local e horário do próximo embate.
As Maltas mais importantes, os Nagôas e os Gaiamuns, eram notáveis por suas vestimentas características, com cores definidas e territórios demarcados com sangue, de modo muito parecido aos atuais embates cariocas entre morros e facções rivais.
Foi na Bahia, no entanto, que a Capoeira se delineou enquanto prática ritualizada, contextualizada no ambiente determinado da “roda de Capoeira”, e embora, como podemos ver na Gravura de Rugendas ( danse de la guerre, 1835) , os primeiros registros pictóricos desta, já se dão associando-a à música, foi somente na Bahia do século XX, que essa associação se consolidou enquanto forma, e esse ritual se estabeleceu como tradição, dando conformidade aos modelos ulteriores da prática da Capoeira.
Em 1930, o Mestre Bimba, exímio Capoeirista baiano, filho de um negro campeão de Batuque, cria a Luta Física Regional Baiana, que posteriormente seria Conhecida como a Capoeira Regional. Incorporando golpes de outras lutas na Capoeira, tornando-a mais objetiva, o Mestre Bimba buscava a ampliação do apelo da Capoeira para as classes médias e posteriormente, com o apoio do então Governador Juracy Magalhães, consegue a autorização para que a Capoeira pudesse ser praticada, conquanto que em recinto fechado e devidamente registrada na delegacia de jogos e costumes do município.
A Criação da Regional pelo mestre Bimba, marca a divisão da Capoeira, entre a sua Capoeira Regional, e a Capoeira Angola, ou Capoeira Tradicional, termo que passou a ser usado para referir-se á capoeira antiga, praticada pelas camadas populares da Bahia, que teve no Mestre Pastinha, o seu Mestre mais destacado. Poeta, pintor, filósofo popular, o Mestre Pastinha foi, historicamente, um dos principais responsáveis pela permanência da Capoeira Angola até os dias atuais, no antagonismo da proeminência comercial da Capoeira Regional, e do refortalecimento da Angola, a partir dos anos oitenta. É no contexto dessa divisão, que partimos com a nossa análise sobre a musicalidade e a importância da música na Capoeira Angola.
-A Roda da Capoeira: Ambiente Musical
Conquanto não pretendamos aqui, nos aprofundar nas diferenças existentes entre a Capoeira Regional e a Angola, devemos citar, para um melhor entendimento do tema aqui trabalhado, uma concepção básica dessa diferença: enquanto a Capoeira regional, se pretende esportiva(no contexto competitivo-desportivo), objetiva, e (a partir dos anos 70, influenciada pela Capoeira Regional adaptada no Rio de Janeiro), acrobática, a Capoeira Angola se pretende Expressão Cultural, jogo, e nesse sentido, lúdica, dialógica, envolvente e não competitiva, e essas diferenças são as que permeiam ambos os discursos sociais, seja dos assim chamados angoleiros, ou dos regionais.
Na Capoeira Angola, o espaço de sua execução, é a Roda. É na roda em que se pratica a Capoeira treinada nas academias de Capoeira Angola, é na roda que se vivencia essa Capoeira, como prática vívida da cultura, como experiência coletiva e interativa, e a música, é o elo principal de ligação entre todos os presentes na Roda. E o que é a roda, senão o círculo de pessoas que se forma ao redor dos jogadores que pelejam ao som e ao ritmo dos instrumentos? Na Capoeira Angola, é a Música quem inicia o jogo. Temos a Bateria da capoeira Angola: Três Berimbaus, um ou dois pandeiros, um reco-reco, um agogô, um Atabaque.
O Berimbau, é instrumento trazido pelos negros angolanos ao Brasil, utilizado tradicionalmente em rituais religiosos, na África, por vendedores ambulantes como forma de chamar clientes e incorporado à Capoeira no Brasil, “m´birimbau”, do Quimbundo, instrumento percussivo formado por uma vara de Biriba à qual está amarrada uma Cabaça que atua como caixa de reverberação, presa a um arame de aço na qual uma baqueta é percutida. São três os berimbaus: o Gunga, que tem a sonoridade mais grave, uma espécie de contra-baixo da Capoeira, que pontua e comanda a Roda, dando o seu ritmo. È o Gunga quem abre a Roda e quem a termina, seguido pelo berimbau Médio, de som menos grave e que reforça o Gunga, e finalmente o Viola, ou Violinha, que é o Berimbau solo, que faz as viradas e os improvisos característicos. Cada berimbau toca um toque diferente, que se interpenetram e se complementam, formando um quadro harmônico perfeito. O Gunga toca o Toque de Angola, o Médio toca o São bento pequeno, o Viola toca o São Bento Grande, estando, no entanto, livre para os improvisos possíveis e infinitamente variados.
Os pandeiros marcam o ritmo do Ijexá, podendo realizar algumas viradas e improvisos, sem no entanto poder ultrapassar a altura ou destaque dos berimbaus. Reputasse ao pandeiro uma origem árabe, a partir da qual teria sido trazido ao Brasil pelos Portugueses. No entanto, se considerarmos que eram africanos do norte, os muçulmanos que ocuparam por vários séculos a península Ibérica, fundamentando uma inestimável contribuição científica e cultural aos povos latinos, podemos questionar essa origem, que no entanto, não pode ainda ser determinada. O Reco-Reco, e o agogô, assim como o atabaque, são instrumentos posteriormente incorporados à Capoeira, já no contexto das academias, e têm todos origens africanas claramente reconhecidas, por sua importância e presença em praticamente todas as manifestações musicais do continente. Na Capoeira, entretanto, estão sujeitos à predominância do berimbau, que exerce a mesma função sonora, que o atabaque exerce no Candomblé.
A Música começa antes que o jogo. A roda é aberta pelo Gunga, seguido sucessivamente pelos demais instrumentos. A Roda de capoeira é um pequeno mundo, no qual se reflete o mundo grande, nela se aprende a viver, se apreendem os códigos da comunidade e se pratica uma vivência que é antes de tudo, conflituosa, mas também flexível, passível de ser flexibilizada, pelo exercício do Axé, que é a força vital, fluente na Roda, dos instrumentos pra os jogadores, dos jogadores para o público, do público para a roda, fechando-se um círculo energético conduzido pela música.
Segue-se o ritual: com os instrumentos tocando lentamente, o Tocador do Gunga, ao grito de Iê!, começa uma Ladainha, que é como uma pequena história, uma oração, uma fábula, uma lenda, ou mesmo um desafio, seja de auto-promoção, ou de escárnio aos demais ou a alguém especificamente:
“ Iê!,
Maior é Deus,
Pequeno Sou Eu,
O que Eu tenho,
Foi Deus quem me deu,
Na roda da Capoeira,
Grande e pequeno sou Eu,
Camaradinho...”
( Do Mestre Pastinha, devoção e reconhecimento)
Ou fato Histórico, como a chegada de um navio Carioca no cais da Bahia na década de 10 do século XX, narrando as confusões conseqüentes:
“Iê!
Torpedeiro encouraçado,
Novidade na Bahia,
Marinheiro absoluto, chegou pintando arrelia,
Prenderam Pedro Mineiro,
Dentro da Secretaria,
Para dar depoimento, daquilo que não sabia,
Se eu fosse governador, manobrasse a Bahia,
Isso que tu ta fazendo, comigo tu não fazia,
Camaradinho...”
Ou maldizer de amor:
“ Iê!
Ela tem dente de ouro, fui eu quem mandei botar,
Vou jogar nela uma praga,
Pra esse dente se quebrar...”
Ou de rebeldia:
“ A Marinha é de guerra,
O exército é de campanha,
O bombeiro apaga o fogo,
E a polícia é quem apanha,
Camaradinho...”
Entre outras ladainhas, exprimem o cotidiano dos capoeiristas, homens negros empregados da estiva, trapicheiros, marceneiros, guardas-civis, carroceiros, calafates, entre tantas outras sub-profissões que proliferavam na Bahia da época.
Prosseguindo a roda, entram as louvações, que é a série de vivas dadas pelo cantador, respondido em coro pelo público e pelos jogadores, que nesse momento se benzem, marcam no chão os seus símbolos de proteção, fazem suas rezas e se preparam para o jogo, sempre de olho no outro Capoeirista que está à sua frente.:
“Iê, viva meu Deus!
Iê viva meu Mestre,
Iê, viva a Bahia,
Iê, faca de Ponta,
Iê, água de lavar,
Ìê, vamos embora,
Iê, Volta do mundo,
Iê, é hora é hora...”
Posteriormente, o cantador inicia o canto de um corrido, que são as músicas de repetição coral, na qual, ele canta um trecho referencial, ou um improviso, e a platéia responde o mesmo monótono coro, dando a estrutura musical da roda, e somente então, é que os jogadores começam a jogar, com toda a roda integrada, e o jogo corporal de perguntas e respostas dos capoeiristas, é como o jogo do cantador e do público:
“ Camungerê, como vai como está? ( Cantador)
Camungerê! (Público)
Eu Vou bem de saúde!
Camungerê!
Para mim é um prazer!
Camungerê!
Como vai Como está?”
Que é um corrido de boas vindas, boa recepção para os amigos, ou para alguém que há muito não se via. Canta-se ainda ao se chegar em roda de outros Capoeiristas que não se é de costume visitar.
Os corridos carregam significados excusos, dúbios, avisos, provocações e armadilhas, os quais somente o iniciado pode subentender, corridos aparentemente inocentes, podem significar o apelo do tocador à agressão física:
“ A Canoa virou, marinheiro, no fundo do mar, tem dinheiro, (cantador)
A Canoa virou, a canoa virou, marinheiro ( Público)
A Canoa virou, marinheiro, no fundo do mar o angoleiro,
A Canoa Virou, a canoa virou, marinheiro...”
Outros podem mesmo trazer referências históricas da violência:
“ quebra micomugê! ( Cantador)
Ê Macá! ( Público)
Quebra gêcomumi,
Ê Macá,
Quebra micomugê!”
Canção de trabalho dos antigos escravos, que ao pilar o milho para o cuzcuz, disfarçavam na música, o ódio aos opressores: ( quebra gente como milho, macaco, quebra milho como gente!). Outras, não tão disfarçadas, podem no entanto confundir os desavisados:
“ Meu facão bateu embaixo!(Cantador)
A Bananeira Caiu! (Público)
Meu facão bateu embaixo!
A Bananeira Caiu!
Cai, cai, cai bananeira,
A Bananeira Caiu!”
Os corridos podem trazer em seus improvisos também, provocações, como frases soltas aparentemente insignificantes, como: “quando eu saio você entra, quando eu entro você sai!”, ou: “ vou dizer pra sua mulher, Capoeira te venceu, Paraná!”.
O fato, é que nada na música da roda da capoeira, pode passar despercebido ao jogador, e têm-se por bom Capoeirista, aquele que consegue realizar um bom jogo, ao mesmo tempo em que percebe todas as mensagens e ordens contidas nas músicas, o Capoeirista que joga no ritmo proposto pelo berimbau, sem se acelerar demasiadamente ou precipitar-se. Alguns toques do berimbau, podem também representar mensagens, como toque chamado: “ apanha laranja no chão tico-tico”, que propõe um jogo mais baixo, no chão, no qual os dois jogadores disputam o dinheiro jogado pelo público, que, enrolado em um lenço, somente pode ser pego com a boca, sem a utilização das mãos, e sem que o jogo se interrompa, o Jogo de Dentro, que propõe um jogo mais próximo, onde os capoeiristas quase se encostam, ou o toque de cavalaria, que era o toque usado nos tempos das perseguições à capoeira, onde o berimbau avisava aos capoeristas da aproximação da polícia, ou de inimigos.
Conclusão- música integral, o paradigma capoeirístico.
A leveza do jogo da Capoeira Angola, o seu não tocar constante, sua circularidade contínua, o jogo incessante de perguntas e respostas, que nos remete à idéia de homens e mulheres sem ossos e sem articulações, de tão flexíveis, o riso, a brincadeira, a molecagem, que parecem nos remeter a um mundo puramente lúdico, onde as regras não existem, escondem, como podemos ver, todo um mundo de disciplina e de significados latentes, que somente ao capoeirista bem treinado compete perceber. À leveza e à liberdade, precede a disciplina do treino, o amor pela técnica, ou no mínimo, a sistematização da brincadeira, estando sempre presente nesse contexto, o fundo etno-social do qual a Capoeira é oriunda, o contexto afro-brasileiro-escravagista-quilombola.
Desse contexto, o nosso artigo se propôs a traduzir, de forma introdutória, alguns elementos para a compreensão da importância da música na Roda de Capoeira Angola, enquanto expressão integral e interartística, que agrega expressões e capacidades diversas, que não podem ser apreendidos, quando desambientalizadas, e cuja percepção, em nome de uma verdade artística e cultural eurocêntrica monolítica, são despercebidos de sua importância e de sua complexidade, bem como do seu potencial educativo e formativo.
Por fim, é claro, uma ladainha:
Iê!
Não estudei pra ser jurista,
Não estudei pra ser doutor,
Estudei a Capoeira,
Pra bater no inspetor, camaradinha
Viva, meu Deus...
Bibliografia
• Galo já cantou
Autor: Nestor Capoeira Arte hoje editora -1985
• Capoeira Angola
Autor: Mestre Pastinha Fundação Cultural da Bahia -1998
• Capoeira - Angola - Ensaio Sócio - Etno Gráfico
Autor: Waldoloir Rego Editora Itapuã - Coleção Baiana -1968
• A negrada instituição - Os capoeira no Rio de Janeiro
Autor: Carlos Eugênio Líbano Soares Editora: Access -1994
• Bimba é Bamba (A capoeira no ringue)
Autor: Frederico José de Abreu P e A Gráfica e Editora Salvador / Bahia -1999 Instituto Jair Moura
Fábio Nascimento-Mandingo
Palavras-chave: Música, Capoeira, cultura africana, instrumentos africanos, musicalidade.
Resumo: O texto trata da importância da música para a prática da Capoeira Angola, contextualizando essa importância no ambiente material-ritualístico da roda de Capoeira, conforme sua prática atual, traçando ainda um pequeno histórico da Capoeira.
O tratar de qualquer assunto relativo a aspectos contidos no universo da capoeira, ou da Capoeiragem, como preferem autores como Frederico Abreu, nos obriga a traçarmos ao menos, um breve histórico referente à nobre arte da Capoeira, essa dança – luta, que vem, ao longo dos anos, se espalhando por todos os cantos do planeta, envolvendo cada vez mais praticantes das mais diversas origens nacionais, culturais e étnicas.
Muito se tem discutido no âmbito acadêmico, em relação às origens da Capoeira, no entanto, a escassez de fontes documentais que possam nos oferecer uma percepção mais próxima do mundo do negro escravizado no Brasil nos primeiros séculos da colonização, dificulta tal tarefa, mais ainda se atentarmos para o fato de que, a pouca documentação existente, foi escrita do branco “sobre” o negro, e não partindo deste para outro receptor. Mais ainda, faz-se necessário ressaltar, que no próprio contexto filosófico da Capoeira, o “esconder”, “fingir”, “ludibriar” e “ disfarçar” a sua prática, são objetivos previstos em suas metodologias comunitárias. Portanto, as primeiras informações que temos sobre a Capoeira, são oriundas do momento em que o branco começa a “perceber” a sua existência, enquanto expressão diferenciada. Desse modo, a maior parte das obras parecem tender para a indefinição, referendando sem dúvida, a sua matriz africana, e discordando em graus variados, quanto à importância das contribuições indígenas portuguesas. Mesmo quanto à palavra Capoeira, encontramos discordância se a sua origem vem do Tupi “ KAA-Pu-Ê-Ra, que significa mato rasteiro recém cortado, ou da sacola de carregar galos, que segundo alguns autores, teria o nome português de capoeira, referente à sua utilidade de carregar os capões.
Como entendemos a escrita da história em sua dimensão política, e a política em sua dimensão racial, não podemos deixar de perceber, a presença de sutis antagonismos ideológicos presentes nesta discussão, e assim, não nos excusamos ideologicamente de apresentar a nossa opinião, de que, como o Candomblé, da forma em que hoje é cultuado, é o resultado da integração, no Brasil, de diversos modelos de cultos religiosos africanos, aproximados artificialmente no contexto da escravidão, a Capoeira seria também uma fusão dinâmica e interétnica de diversas lutas marciais rituais africanas, integradas no mundo diaspórico brasileiro. A presença de lutas como a Ladja, da Martinica, e do Moringue, da Ilha de Reunion, Madagascar, entre outras expressões marciais que possuem alguns golpes similares aos da Capoeira, e que são também realizados tendo a música como base, parece confirmar a nossa percepção, de que a Capoeira, é uma expressão Africana, mas do contexto exclusivo do Brasil ( em que não negamos a influência Indígena e mesmo portuguesa).
A partir do século XIX, entretanto, a documentação que dispomos sobre a Capoeira, é majoritariamente, advinda de registros policiais referentes à perseguição da sua prática, principalmente a partir da segunda metade deste século, quando a sua penalização é prevista no Código Penal (1890), com punições que vão de seis meses a seis anos, com degredo para Fernando de Noronha. Nesse sentido, destaca-se a farta documentação carioca, que deve-se ao fato de no Rio de Janeiro, a prática da Capoeiragem e consequentemente a sua perseguição, terem tomado proporções de grande polêmica social, com prisões em massa, artigos de jornais, determinações oficiais, entre outras coisas. Na Capital do Império e da República, a Capoeira se organizava nas famigeradas Maltas, grupos formados por dezenas de capoeiristas de bairros determinados, que entravam periodicamente em conflito corporal com as maltas inimigas, gerando o pânico da população e principalmente da aristocracia local, que se escandalizava com a petulância dos arruaceiros que chegavam mesmo a marcar antecipadamente, com panfletagem pública, data, local e horário do próximo embate.
As Maltas mais importantes, os Nagôas e os Gaiamuns, eram notáveis por suas vestimentas características, com cores definidas e territórios demarcados com sangue, de modo muito parecido aos atuais embates cariocas entre morros e facções rivais.
Foi na Bahia, no entanto, que a Capoeira se delineou enquanto prática ritualizada, contextualizada no ambiente determinado da “roda de Capoeira”, e embora, como podemos ver na Gravura de Rugendas ( danse de la guerre, 1835) , os primeiros registros pictóricos desta, já se dão associando-a à música, foi somente na Bahia do século XX, que essa associação se consolidou enquanto forma, e esse ritual se estabeleceu como tradição, dando conformidade aos modelos ulteriores da prática da Capoeira.
Em 1930, o Mestre Bimba, exímio Capoeirista baiano, filho de um negro campeão de Batuque, cria a Luta Física Regional Baiana, que posteriormente seria Conhecida como a Capoeira Regional. Incorporando golpes de outras lutas na Capoeira, tornando-a mais objetiva, o Mestre Bimba buscava a ampliação do apelo da Capoeira para as classes médias e posteriormente, com o apoio do então Governador Juracy Magalhães, consegue a autorização para que a Capoeira pudesse ser praticada, conquanto que em recinto fechado e devidamente registrada na delegacia de jogos e costumes do município.
A Criação da Regional pelo mestre Bimba, marca a divisão da Capoeira, entre a sua Capoeira Regional, e a Capoeira Angola, ou Capoeira Tradicional, termo que passou a ser usado para referir-se á capoeira antiga, praticada pelas camadas populares da Bahia, que teve no Mestre Pastinha, o seu Mestre mais destacado. Poeta, pintor, filósofo popular, o Mestre Pastinha foi, historicamente, um dos principais responsáveis pela permanência da Capoeira Angola até os dias atuais, no antagonismo da proeminência comercial da Capoeira Regional, e do refortalecimento da Angola, a partir dos anos oitenta. É no contexto dessa divisão, que partimos com a nossa análise sobre a musicalidade e a importância da música na Capoeira Angola.
-A Roda da Capoeira: Ambiente Musical
Conquanto não pretendamos aqui, nos aprofundar nas diferenças existentes entre a Capoeira Regional e a Angola, devemos citar, para um melhor entendimento do tema aqui trabalhado, uma concepção básica dessa diferença: enquanto a Capoeira regional, se pretende esportiva(no contexto competitivo-desportivo), objetiva, e (a partir dos anos 70, influenciada pela Capoeira Regional adaptada no Rio de Janeiro), acrobática, a Capoeira Angola se pretende Expressão Cultural, jogo, e nesse sentido, lúdica, dialógica, envolvente e não competitiva, e essas diferenças são as que permeiam ambos os discursos sociais, seja dos assim chamados angoleiros, ou dos regionais.
Na Capoeira Angola, o espaço de sua execução, é a Roda. É na roda em que se pratica a Capoeira treinada nas academias de Capoeira Angola, é na roda que se vivencia essa Capoeira, como prática vívida da cultura, como experiência coletiva e interativa, e a música, é o elo principal de ligação entre todos os presentes na Roda. E o que é a roda, senão o círculo de pessoas que se forma ao redor dos jogadores que pelejam ao som e ao ritmo dos instrumentos? Na Capoeira Angola, é a Música quem inicia o jogo. Temos a Bateria da capoeira Angola: Três Berimbaus, um ou dois pandeiros, um reco-reco, um agogô, um Atabaque.
O Berimbau, é instrumento trazido pelos negros angolanos ao Brasil, utilizado tradicionalmente em rituais religiosos, na África, por vendedores ambulantes como forma de chamar clientes e incorporado à Capoeira no Brasil, “m´birimbau”, do Quimbundo, instrumento percussivo formado por uma vara de Biriba à qual está amarrada uma Cabaça que atua como caixa de reverberação, presa a um arame de aço na qual uma baqueta é percutida. São três os berimbaus: o Gunga, que tem a sonoridade mais grave, uma espécie de contra-baixo da Capoeira, que pontua e comanda a Roda, dando o seu ritmo. È o Gunga quem abre a Roda e quem a termina, seguido pelo berimbau Médio, de som menos grave e que reforça o Gunga, e finalmente o Viola, ou Violinha, que é o Berimbau solo, que faz as viradas e os improvisos característicos. Cada berimbau toca um toque diferente, que se interpenetram e se complementam, formando um quadro harmônico perfeito. O Gunga toca o Toque de Angola, o Médio toca o São bento pequeno, o Viola toca o São Bento Grande, estando, no entanto, livre para os improvisos possíveis e infinitamente variados.
Os pandeiros marcam o ritmo do Ijexá, podendo realizar algumas viradas e improvisos, sem no entanto poder ultrapassar a altura ou destaque dos berimbaus. Reputasse ao pandeiro uma origem árabe, a partir da qual teria sido trazido ao Brasil pelos Portugueses. No entanto, se considerarmos que eram africanos do norte, os muçulmanos que ocuparam por vários séculos a península Ibérica, fundamentando uma inestimável contribuição científica e cultural aos povos latinos, podemos questionar essa origem, que no entanto, não pode ainda ser determinada. O Reco-Reco, e o agogô, assim como o atabaque, são instrumentos posteriormente incorporados à Capoeira, já no contexto das academias, e têm todos origens africanas claramente reconhecidas, por sua importância e presença em praticamente todas as manifestações musicais do continente. Na Capoeira, entretanto, estão sujeitos à predominância do berimbau, que exerce a mesma função sonora, que o atabaque exerce no Candomblé.
A Música começa antes que o jogo. A roda é aberta pelo Gunga, seguido sucessivamente pelos demais instrumentos. A Roda de capoeira é um pequeno mundo, no qual se reflete o mundo grande, nela se aprende a viver, se apreendem os códigos da comunidade e se pratica uma vivência que é antes de tudo, conflituosa, mas também flexível, passível de ser flexibilizada, pelo exercício do Axé, que é a força vital, fluente na Roda, dos instrumentos pra os jogadores, dos jogadores para o público, do público para a roda, fechando-se um círculo energético conduzido pela música.
Segue-se o ritual: com os instrumentos tocando lentamente, o Tocador do Gunga, ao grito de Iê!, começa uma Ladainha, que é como uma pequena história, uma oração, uma fábula, uma lenda, ou mesmo um desafio, seja de auto-promoção, ou de escárnio aos demais ou a alguém especificamente:
“ Iê!,
Maior é Deus,
Pequeno Sou Eu,
O que Eu tenho,
Foi Deus quem me deu,
Na roda da Capoeira,
Grande e pequeno sou Eu,
Camaradinho...”
( Do Mestre Pastinha, devoção e reconhecimento)
Ou fato Histórico, como a chegada de um navio Carioca no cais da Bahia na década de 10 do século XX, narrando as confusões conseqüentes:
“Iê!
Torpedeiro encouraçado,
Novidade na Bahia,
Marinheiro absoluto, chegou pintando arrelia,
Prenderam Pedro Mineiro,
Dentro da Secretaria,
Para dar depoimento, daquilo que não sabia,
Se eu fosse governador, manobrasse a Bahia,
Isso que tu ta fazendo, comigo tu não fazia,
Camaradinho...”
Ou maldizer de amor:
“ Iê!
Ela tem dente de ouro, fui eu quem mandei botar,
Vou jogar nela uma praga,
Pra esse dente se quebrar...”
Ou de rebeldia:
“ A Marinha é de guerra,
O exército é de campanha,
O bombeiro apaga o fogo,
E a polícia é quem apanha,
Camaradinho...”
Entre outras ladainhas, exprimem o cotidiano dos capoeiristas, homens negros empregados da estiva, trapicheiros, marceneiros, guardas-civis, carroceiros, calafates, entre tantas outras sub-profissões que proliferavam na Bahia da época.
Prosseguindo a roda, entram as louvações, que é a série de vivas dadas pelo cantador, respondido em coro pelo público e pelos jogadores, que nesse momento se benzem, marcam no chão os seus símbolos de proteção, fazem suas rezas e se preparam para o jogo, sempre de olho no outro Capoeirista que está à sua frente.:
“Iê, viva meu Deus!
Iê viva meu Mestre,
Iê, viva a Bahia,
Iê, faca de Ponta,
Iê, água de lavar,
Ìê, vamos embora,
Iê, Volta do mundo,
Iê, é hora é hora...”
Posteriormente, o cantador inicia o canto de um corrido, que são as músicas de repetição coral, na qual, ele canta um trecho referencial, ou um improviso, e a platéia responde o mesmo monótono coro, dando a estrutura musical da roda, e somente então, é que os jogadores começam a jogar, com toda a roda integrada, e o jogo corporal de perguntas e respostas dos capoeiristas, é como o jogo do cantador e do público:
“ Camungerê, como vai como está? ( Cantador)
Camungerê! (Público)
Eu Vou bem de saúde!
Camungerê!
Para mim é um prazer!
Camungerê!
Como vai Como está?”
Que é um corrido de boas vindas, boa recepção para os amigos, ou para alguém que há muito não se via. Canta-se ainda ao se chegar em roda de outros Capoeiristas que não se é de costume visitar.
Os corridos carregam significados excusos, dúbios, avisos, provocações e armadilhas, os quais somente o iniciado pode subentender, corridos aparentemente inocentes, podem significar o apelo do tocador à agressão física:
“ A Canoa virou, marinheiro, no fundo do mar, tem dinheiro, (cantador)
A Canoa virou, a canoa virou, marinheiro ( Público)
A Canoa virou, marinheiro, no fundo do mar o angoleiro,
A Canoa Virou, a canoa virou, marinheiro...”
Outros podem mesmo trazer referências históricas da violência:
“ quebra micomugê! ( Cantador)
Ê Macá! ( Público)
Quebra gêcomumi,
Ê Macá,
Quebra micomugê!”
Canção de trabalho dos antigos escravos, que ao pilar o milho para o cuzcuz, disfarçavam na música, o ódio aos opressores: ( quebra gente como milho, macaco, quebra milho como gente!). Outras, não tão disfarçadas, podem no entanto confundir os desavisados:
“ Meu facão bateu embaixo!(Cantador)
A Bananeira Caiu! (Público)
Meu facão bateu embaixo!
A Bananeira Caiu!
Cai, cai, cai bananeira,
A Bananeira Caiu!”
Os corridos podem trazer em seus improvisos também, provocações, como frases soltas aparentemente insignificantes, como: “quando eu saio você entra, quando eu entro você sai!”, ou: “ vou dizer pra sua mulher, Capoeira te venceu, Paraná!”.
O fato, é que nada na música da roda da capoeira, pode passar despercebido ao jogador, e têm-se por bom Capoeirista, aquele que consegue realizar um bom jogo, ao mesmo tempo em que percebe todas as mensagens e ordens contidas nas músicas, o Capoeirista que joga no ritmo proposto pelo berimbau, sem se acelerar demasiadamente ou precipitar-se. Alguns toques do berimbau, podem também representar mensagens, como toque chamado: “ apanha laranja no chão tico-tico”, que propõe um jogo mais baixo, no chão, no qual os dois jogadores disputam o dinheiro jogado pelo público, que, enrolado em um lenço, somente pode ser pego com a boca, sem a utilização das mãos, e sem que o jogo se interrompa, o Jogo de Dentro, que propõe um jogo mais próximo, onde os capoeiristas quase se encostam, ou o toque de cavalaria, que era o toque usado nos tempos das perseguições à capoeira, onde o berimbau avisava aos capoeristas da aproximação da polícia, ou de inimigos.
Conclusão- música integral, o paradigma capoeirístico.
A leveza do jogo da Capoeira Angola, o seu não tocar constante, sua circularidade contínua, o jogo incessante de perguntas e respostas, que nos remete à idéia de homens e mulheres sem ossos e sem articulações, de tão flexíveis, o riso, a brincadeira, a molecagem, que parecem nos remeter a um mundo puramente lúdico, onde as regras não existem, escondem, como podemos ver, todo um mundo de disciplina e de significados latentes, que somente ao capoeirista bem treinado compete perceber. À leveza e à liberdade, precede a disciplina do treino, o amor pela técnica, ou no mínimo, a sistematização da brincadeira, estando sempre presente nesse contexto, o fundo etno-social do qual a Capoeira é oriunda, o contexto afro-brasileiro-escravagista-quilombola.
Desse contexto, o nosso artigo se propôs a traduzir, de forma introdutória, alguns elementos para a compreensão da importância da música na Roda de Capoeira Angola, enquanto expressão integral e interartística, que agrega expressões e capacidades diversas, que não podem ser apreendidos, quando desambientalizadas, e cuja percepção, em nome de uma verdade artística e cultural eurocêntrica monolítica, são despercebidos de sua importância e de sua complexidade, bem como do seu potencial educativo e formativo.
Por fim, é claro, uma ladainha:
Iê!
Não estudei pra ser jurista,
Não estudei pra ser doutor,
Estudei a Capoeira,
Pra bater no inspetor, camaradinha
Viva, meu Deus...
Bibliografia
• Galo já cantou
Autor: Nestor Capoeira Arte hoje editora -1985
• Capoeira Angola
Autor: Mestre Pastinha Fundação Cultural da Bahia -1998
• Capoeira - Angola - Ensaio Sócio - Etno Gráfico
Autor: Waldoloir Rego Editora Itapuã - Coleção Baiana -1968
• A negrada instituição - Os capoeira no Rio de Janeiro
Autor: Carlos Eugênio Líbano Soares Editora: Access -1994
• Bimba é Bamba (A capoeira no ringue)
Autor: Frederico José de Abreu P e A Gráfica e Editora Salvador / Bahia -1999 Instituto Jair Moura
quarta-feira, 14 de julho de 2010
Marcus Garvey - Booker T Wahington e W.E.Dubois
Booker T. Washington, W.E. Dubois e Marcus Mosiah Garvey, Três paradigmas afro-americanos para uma análise afro-brasileira.
Por Fábio Mandingo
Apresentação
O presente momento vivido pela sociedade brasileira, no que diz respeito ao discurso e à prática oficiais e civis sobre a questão racial, assemelha-se em muitos aspectos, à situação experienciada nos Estados Unidos da América durante o período imediatamente posterior à Guerra Civil e à Abolição da Escravidão, e que se estende até os anos que se seguiram à 1ª Guerra Mundial, quando se consolidaram as leis referentes à segregação racial em grande parte do país, marcando a opção do estado americano por manter um regime político de discriminação e supremacismo branco oficialmente referendado, dando fim a uma época de efervescência política e cultural no qual o discurso igualitário reminiscente da guerra civil, possibilitou ao negro americano o vislumbre de uma sociedade onde os caminhos da comunidade pudesse ser determinado por sua competência e por seus próprios anseios.
Com pelo menos 130 anos de atraso, somente agora a sociedade e o estado brasileiro começam a discutir a implementação de políticas específicas voltadas para a integração do povo negro à sociedade, partindo da compreensão de um processo histórico marcado pelo prejuízo e desfavorecimento conseqüentes do passado colonial escravista, propondo-se a buscar meios para minorar os efeitos negativos dos 350 anos de exploração econômica escravocrata e da marginalização posterior a uma abolição desassistida.
De modo semelhante ao período americano citado, podemos atualmente assistir à florescência de diversos grupos e tendências de movimentos negros no Brasil, que se entendem aptos para atuarem enquanto condutores deste processo de transformação, de modo a garantir a compreensão do contingente populacional negro como portador de uma identidade histórica-cultural, ressaltando a importância de sua contribuição pra a formação do país. Homens e mulheres, jovens e velhos negros, unem-se no esforço de elaborar as políticas capazes de capitanear a construção de uma sociedade racialmente includente,fortalecida pelo respeito à diversidade étnica, atenta à riqueza das diferentes contribuições fornecidas pelos grupos raciais que formam a sua população.
Elaboração de um novo tempo, ou a intensificação de antagonismos que precedem as épocas totalitárias? Tendo em vista que toda a busca por reformas sérias e reais conduzem à explicitação das contradições imanentes à sociedade capitalista, demandando daqueles que são privilegiados por sua estrutura uma reação proporcional à força dos anseios populares, ficamos atentos aos ensinamentos da história, que nos mostra a tendência à manutenção das estruturas de dominação constituídas, e a busca por eliminação, adaptação e/ou estagnação das forças transformadoras surgidas no ventre desta sociedade.
Nesse sentido, o presente trabalho visa apresentar ( além de breves biografias coligidas a partir das obras referenciais) as proposições de três importantes líderes afro-americanos, Booker T. Washington, W.E. Dubois e Marcus Mosiah Garvey, elaboradas no contexto do período pós-abolição e concernentes a três diferentes vias de integração do povo negro na sociedade americana, examinar o contexto em que essas proposições foram colocadas, suas repercussões e conseqüências, bem como, abrir a possibilidade de uma análise comparativa à atual realidade racial brasileira.
Sonhos, Ilusões e Frustrações.
A Guerra Civil Norte-Americana, que durou de 1860 a 1865, colocou frente à frente no campo de batalha, duas concepções políticas antagônicas e aparentemente inconciliáveis. Para além do caráter puramente bélico e de disputa por hegemonia, próprios de qualquer guerra, a guerra civil americana pretendia encarnar o embate entre eras históricas opostas, representadas na estagnação conservadora do sul escravocrata, confrontada com a pressão industrializante do norte e suas tendências democratizantes, próprias das contradições intestinas de um capitalismo nacionalista forte, em processo de implementação.
A sociedade sulista se assentava na imutabilidade de um sistema agrário de grandes propriedades, no poder patriarcal extremo, e na mão-de-obra escrava. Os estados algodoeiros do sul, foram os que mais receberam africanos escravizados durante o período do tráfico, formando o que se chamou de o “ Cinturão Negro” , em referência ao grande contingente populacional africano. Essa peculiaridade étnica vai determinar todas as facetas dessa sociedade, preocupada em preservar o status quo de supremacismo branco inquestionável, que se reflete como pressão, através de todas as inter-relações sociais. A mão-de-obra negra foi a principal geradora da riqueza do sul, pilar sobre o qual as famílias brancas tradicionais mantiveram um padrão de vida senhorial, dedicado à política e ao ardor religioso, bem como, a reforçar todo o aparato ideológico, responsável pela justificação da hierarquia racial, além de introjetar a “normalização” dessa hierarquia. O discurso oficial sulista, referendava a perfeição de sua imobilidade e a segurança de uma sociedade na qual as coisas ” estavam em seus devidos lugares”.
A modernização industrial em desenvolvimento no norte ( e com pretensões de se estender por toda a União), representava o esboroamento desse contexto semi-feudal, por torná-lo obsoleto, incompatível com as imposições de um sistema capitalista incipiente, que previa a introdução do regime de trabalho assalariado, a formação de um mercado consumidor, o liberalismo econômico e a conseqüente mercantilização da esfera política, direcionada agora, mais por interesses financeiros que por princípios morais. O capitalismo nortista trazia ainda em seu bojo, os germes das reivindicações populares gestadas no seio de uma classe operária em formação e intensificadas dentro do contexto urbano, impensáveis e inaceitáveis para os aristocratas brancos do sul.1, Socialismo, direitos da mulher, sindicatos, igualdade racial, democracia, eram assuntos tabu, a respeito dos quais o sul idílico deveria ser protegido, posto que representariam a ruína da família tradicional protestante, de seus valores e de sua organização social.
Em outra frente, norte e sul travavam um embate político e econômico relativo à hegemonia sobre as novas terras conquistadas do México no Oeste, e o modelo de ocupação a ser implantado: O agrário escravocrata, ou o industrial capitalista. Além disso, os estados do norte tencionavam impor uma política protecionista responsável por pesadas tarifas alfandegárias contra os produtos industrializados ingleses, de modo a favorecer a indústria nacional. Para os produtores de algodão, no entanto, a relação comercial com a Inglaterra, era extremamente favorável, sendo que os ingleses representavam o seu maior mercado consumidor, e perdê-lo era um risco que não estavam interessados em correr.
Entre todos esses fatores, a abolição do trabalho escravo era o ponto em que esse antagonismo recrudescia mais criticamente. A escravidão era a base do sul agrário, mas sua extinção seria a base da implementação do capitalismo industrial, e nesse sentido, o discurso referente à abolição, tornou-se a principal bandeira dos estados do norte, respaldados pela atuação de intelectuais, artistas, humanistas e políticos abolicionistas. Os sulistas, por seu lado, acusavam os do norte de tentarem solapar as bases da sua sociedade e, sustentando o discurso sobre a necessidade da manutenção do supremacismo branco2, buscavam garantir politicamente a continuidade do regime de escravização negra. Calorosos debates eram travados no campo intelectual,numerosas obras foram escritas tendo na libertação dos escravizados o seu tema. Muitos foram também os negros alforriados que contribuíram ativamente com o movimento abolicionista.
Em 1860, a Guerra se inicia, quando os estados do sul se separam da União, e em 1862, o Presidente Abraham Lincoln assina o Abolition Act, a libertação dos cativos do sul. Essa medida teve como pano de fundo, a incorporação dos negros nos exércitos da União, que até então vinham sendo batidos pelas tropas confederadas. A entrada dos ex-cativos na guerra vai determinar a mudança nesse quadro, e a vitória do norte em 1865. Os sulistas sofreram derrotas esmagadoras e tiveram o sistema escravista desestruturado, além da imposição de aceitar a legislação nortista, relativa não somente às questões raciais, mas à organização política e à economia, agora abertas ao poder do capital.
A “Reconstrução”
“40 Acres de terra e uma mula”, era a promessa do governo para cada família negra do sul. O período imediatamente posterior à guerra, conhecido como “reconstrução americana”, que vai de 1865 a mais ou menos 1880, com o início do processo de reforma agrária e democratização política, e, no sentido contrário, de 1880 até 1920, quando as leis segregacionistas do sul, baseadas no conceito de “diferentes, mas iguais” são nacionalmente referendadas, jogando por terra o sonho dos dez milhões de americanos negros de construir uma nação sobre um projeto de igualdade real, de direitos e oportunidades, é o período concernente à nossa pesquisa. È durante esse período que os afro-americanos vão atuar de forma mais marcante, no que se refere a elaborar proposições e movimentos voltados para a integração do negro na sociedade americana, seja a partir de um ponto de vista de políticas públicas seja a partir da auto-determinação enquanto comunidade étnica específica.
Booker T. Washington, W.E Dubois e Marcus Mosiah Garvey, são três dos mais destacados nomes desse período turbulento, no qual a manipulação política e a ação terrorista de organizações racistas, como a Klu Klux Klan, boicotaram e minaram por dentro o projeto de “reconstrução”, consolidando o regime de segregação racial que perdurou no sul até meados dos anos sessenta do séc XX, quando os movimentos por direitos civis conseguiram derrubá-lo.
O Pioneirismo Americano
Um ponto fundamental no processo de “reconstrução” do sul, e que serve como objeto importante para reflexão, no quadro da problemática abordada, é o pioneirismo americano no tocante à discussão de projetos de políticas públicas oficiais direcionadas para a integração da população negra na sua sociedade, em se tratando de um país multirracial. Independendo de uma análise crítica aprofundada do teor dessa discussão, ou mesmo de um questionamento quanto a sua condução e tendências, o fato a ser ressaltado é o de que o recém formado estado americano viu-se na contingência de determinar políticas oficiais para a integração do povo negro americano, incluindo nessa discussão, pontos cruciais, como reforma agrária, emprego, educação e representação política. A admissão estatal, do contingente populacional negro enquanto organismo diferenciado política e historicamente no contexto nacional, a compreensão do processo de escravização enquanto fator de degradação econômica e social, reforçada pelo discurso democratizante e igualitário da recente constituição americana e da própria guerra civil em si, criaram o campo no qual projetos de discriminação positiva puderam ser vistos como veículos óbvios para a inserção social dos negros, e o fato de equipararem-se, em quantidade, tanto os projetos oficiais para essa inserção, quanto aqueles gerados pela própria comunidade ( refiro-me à criação de escolas, grupos de mulheres, iniciativas econômicas coletivas, etc.), remarca a postura assumida por essa comunidade, de não entender-se enquanto mero objeto social, mas sim sujeitos de seus próprios caminhos, postura essa que vai dar a tônica do povo afro-americano, mesmo nos momentos em que o aparato legal do estado volta-se com a determinação de Paralisar os seus movimentos.
Ainda durante a própria guerra civil3 o “ Freeman´s Bureau” , surge como via estatal para a integração dos negros recém libertados e seguindo o Freeman´s Bureau, diversas outras agências governamentais foram instituídas com esse objetivo, visando coordenar o processo de reconstrução, abertura de escolas, distribuição de terras, financiamento e crédito, bem como processos eleitorais e judiciais. Em 186* surge a primeira universidade para negros, em 186* os primeiros hospitais. As obras de Washington, Dubois e Garvey, vão se situar justamente no início, meio e fim, respectivamente, dessa era de explosão de perspectivas, de ilusões, de sonhos e de frustrações. São três modelos diferenciados para o posicionamento e conduta do povo negro perante a sociedade americana (e vice-versa), construídos por três homens negros imbuídos no compromisso/missão de guiar o seu povo desde os grilhões da escravização até o conforto de uma cidadania plena. Três projetos historicamente entrelaçados e complementares, mas ao mesmo tempo antagônicos e em permanente conflito, que através dos tempos e ainda hoje, nos oferecem subsídios para enriquecer e facilitar discussões referentes às políticas raciais.
Booker T. Washington
O homem que mais tarde viria a ser conhecido como “o grande conciliador”, nasceu em 1856 em uma plantação de tabaco situada na Virgínia, ainda sob o regime de escravidão. Era filho de uma cozinheira negra com um agregado branco de uma das fazendas da cercania. Washington começou a estudar, antes mesmo que a proclamação da emancipação tornasse legal a educação para negros, carregando livros dos filhos do fazendeiro. Após a guerra, sua família muda-se para West Virgínia, onde trabalha e estuda. Aos 16 anos, acorre ao Hampton Institute, uma nova escola para estudantes negros. Trabalhando para pagar os estudos, Booker T. torna-se instrutor do Hampton Institute e depois de alguns anos, funda o seu próprio instituto educacional, o Tuskgee Institute, no Alabama, sendo seu diretor e principal mentor, transformando-se em um dos mais notáveis homens negros do seu tempo, além de educador respeitado. Foi o primeiro homem negro convidado para tomar um chá na casa branca e a ser recebido por um presidente (Theodore Roosevelt). Por conta de um discurso conservador e acomodado relativo à questão racial, Washington recebeu substancial suporte de brancos ricos e do próprio governo para o seu instituto, visto como fórmula ideal de resolução para a problemática étnica latente no sul dos Estados Unidos. Falece em 1915, aos 59 anos, alguns meses após liderar uma campanha de boicote contra o filme de W. Griffti “O Nascimento de Uma Nação”4.
Entre os três paradigmas abordados, a proposição de Booker T. Washington para a inclusão social do negro, aparece como sendo a mais moderada, e diria-se mesmo, a mais retrógrada, tendo em vista o grau de apelo democrático contido no discurso político da época. De todo modo, a posição de Washington é marcante na sua objetividade e no seu pragmatismo, mostrando-se viável e eficaz enquanto solução para uma delicada situação de impasse político e racial, onde os atos necessariamente tinham que ser pesados de acordo com suas conseqüências.
Para Booker T. Washington, não havia sentido em uma luta do povo negro por questões como igualdade racial, direitos eleitorais e civis, ou educação superior. Seus esforços deveriam estar direcionados ao resgate moral, e à emancipação econômica através do trabalho duro e da educação técnica profissionalizante. Segundo Washington, a formação universitária superior era completamente inútil, em se tratando de uma comunidade recém saída da escravidão, afundada na miséria financeira, no ócio, na marginalidade, no alcoolismo e na prostituição. Direitos de votar e de ser votado tornavam-se ridículos quando relativo a uma população afundada mortalmente em dívidas nos armazéns de alimentos e agiotas em geral, que emprestavam dinheiro e vendiam aos negros baseados nos dividendos das colheitas futuras, criando uma nova relação de trabalho sem renda, similar ao escravismo. No que se refere à igualdade racial, acreditava que: “em todas as coisas meramente sociais, podemos ser tão separados como os dedos das mãos, ainda que unidos em todas as coisas essenciais para o progresso mútuo”5, como declarou no discurso de 1895 “ O Compromisso de Atlanta”, feito para uma audiência bi-racial, no qual expõe os estamentos filosóficos do seu projeto.
Obviamente, essas proposições foram aclamadas como sendo a solução ideal para o impasse sulista. Do ponto de vista da sociedade branca do sul, extremamente pressionada pelo liberalismo sócio-econômico nortista e interiormente pela intensa luta dos negros por igualdade de direitos, nem eles mesmos poderiam imaginar uma saída mais apropriada. O posicionamento de Washington, ao mesmo tempo em que se adequava às necessidades da industrialização incipiente, trazia um modelo de integração subalterna, que mantinha intocadas as estruturas da hierarquia racial sulista, abrindo as portas para o progresso sem, no entanto, esboçar questionamentos referentes ao supremacismo branco, enfim, mantendo as coisas em seus devidos lugares!
O Instituto Tuskgee foi o seu laboratório, onde colocou em prática suas propostas educacionais, obtendo resultados consideráveis e granjeando a admiração de muitos brancos nortistas, impressionados com sua política de distanciamento da questão racial, sendo que milionários como John Rockfeller e Andrew Carnegie eram doadores freqüentes do Instituto, que em 1905: “Era uma instituição com 8 mil estudantes vindos de 19 estados, com setenta e nove instrutores, 14 mil acres de terra e trinta edifícios, entre grande e pequenos, uma propriedade de U$ 280.000”6. Apesar da sua postura “conciliadora”, Washington não deixou de ser alvo de críticas dos movimentos negros, que o viam como uma espécie de traidor, por desviar a comunidade das lutas por direitos civis. Por outro lado, na medida em que os brancos recuperavam o controle das instituições sulistas, conquistando o respaldo legal para o recrudescimento das tendências segregacionistas, até mesmo um modelo “ conciliador” de integração, passava a ser desinteressante, posto que antagônico ao restabelecimento da linha racial no tocante às relações sociais, contrário a qualquer tipo de autonomia por parte dos negros. Além disso, a dependência de suporte financeiro para a manutenção do seu projeto, determinou a debilidade do mesmo, no momento em que muitos financiamentos foram suspensos, por conta dos re-arranjamentos políticos e econômicos entre o norte e a “nova aristocracia industrial sulista”. Em seus últimos anos, foi testemunha do sucateamento da sua instituição, o que no entanto, não foi capaz de obliterar a sua importância enquanto projeto de emancipação econômica para o povo negro, nem o seu alcance como modelo prático sua construção.
W.E.B.Dubois
Em 1903, Dubois compõe a abertura do seu livro, “ As Almas da Gente Negra”, afirmando que “ O problema crucial do séc XX, será o problema racial”. Se enquanto estudante, intelectual, educador e líder político, devotou todos os seus dias em prol do fortalecimento do povo negro, empenhando-se completamente na luta por seus direitos, na América e mesmo internacionalmente, ressaltando as raízes racialmente determinadas do quadro de prejuízo social em que se encontravam as populações de cor, Dubois foi, acima de tudo, um democrata, e nesse sentido, um racial democrata. O fio condutor e base da sua luta racial, não foi mais que uma luta por integração da população negra na sociedade americana, e todos os seus esforços foram direcionados para que essa integração se desse da forma mais equânime possível, alçando o homem negro à categoria de cidadão pleno, em igualdade de direitos e deveres com todos os demais componentes do organismo social norte-americano. De todo modo, Dubois não se privou, em sua obra, do exercício da teorização sobre mecanismos que pudessem conduzir o povo negro, desde a escravidão à cidadania, através de políticas públicas voltadas para a sua inclusão social, valendo-se ressaltar, a constância da idéia de cidadania plena7, presente mesmo na construção desses mecanismos de discriminação positiva.
Sua obra é um marco no que diz respeito à história e à sociologia do negro na América, tendo sido um dos primeiros autores a lançar um olhar científico e acadêmico sobre temáticas concernentes à própria história americana, como o tráfico negreiro, tema da sua monografia para Harvard, e a reconstrução do Sul, no pós-guerra. Foi um dos educadores mais respeitados do seu tempo, tendo alcançado reconhecimento internacional. Orador eloqüente, capaz de angariar as simpatias das multidões, articulador político, poeta e pensador, manteve por toda a vida a crença de que a absorção do povo negro na nação americana, tornaria-a definitivamente uma das mais poderosas do mundo.
W.E.Dubois, nasceu em uma pequena vila em Massachussets, no ano de 1868. Estudou na Fisk University, indo terminar sua graduação em Harvard, tendo sido o primeiro afro-americano a receber o título de PHD da respeitada universidade francesa. Tornou-se professor da Atlanta University em 1897, e em 1903 escreveu “As Almas da Gente Negra”, sua principal obra e um dos mais importantes livros já escritos sobre a realidade do negro na América. “Souls of Black Folks”, conduz o leitor a um mergulho profundo na psicologia de um povo, cuja própria personalidade encontrava-se cingida pelo choque entre a sua auto-percepção e a negação imposta pela escravidão e o supremacismo branco. História, sociologia, cultura, educação, política, cada um dos capítulos que compõem o livro, apresentam uma abordagem acadêmica e documental das facetas da experiência afro nos Estados Unidos, baseada principalmente, no entanto, na sua vivência enquanto educador. Analisa as políticas utilizadas para a reconstrução sulista desde o início da Guerra Civil, criticando ferrenhamente a política de acomodação e subalternidade de Booker T. Washington, ao mesmo tempo em que, no livro, expõe as premissas do seu projeto para o negro e sua inserção.
Como líder político, Dubois organizou o 1º Congresso Panafricanista Internacional em 1900, e em 1905 foi um dos fundadores do “Niagara Movement”, que mais tarde daria origem ao NAACP, um dos principais grupos representantes da comunidade negra americana durante todo o séc XX e até os dias de hoje. Depois de várias décadas de militância, Dubois mudou-se para o Gana, na áfrica, onde pretendia finalizar a sua obra magna, uma enciclopédia sobre a história da África. Dubois faleceu sobre o solo africano em 1963, no mesmo dia em que 250.000 pessoas marchavam sobre Washington D.C., com Martim Luther King JR., durante a luta por direitos civis.
W.E.Dubois, desejou abolir legalmente a linha racial enquanto determinante sócio-econômico nos Estados Unidos da América, e acreditava ser dever do próprio estado americano, criar os meios para que os afro-descendentes fossem integrados à sociedade sem nenhuma distinção ou estigma, a partir de políticas públicas com esse fim, baseando sua luta em três pontos sobre os quais era irredutível:o direito de voto, a igualdade civil e o direito de educação superior de acordo com as capacidades dos indivíduos. Discordou publicamente do posicionamento conciliador de Booker T. Washington, em propor uma educação industrial para os negros e em manter intacta a estrutura racista da sociedade do sul8. Segundo Dubois, essa postura condenaria o seu povo a uma eterna condição de inferioridade civil e alienação política, dando na mão dos brancos o papel de condutores dos seus destinos e responsáveis por tomarem decisões em seu lugar. Seu sonho era ver o negro integrado como legítimo cidadão americano, e o caminho através do qual vislumbrava esse objetivo, era a luta por poder político pelas vias democráticas da representação eletiva, do voto e do direito de legislar. Os jovens negros deveriam ser preparados para uma educação superior, para que pudessem disputar em pé de igualdade os postos governamentais e cargos de proeminência no cenário político nacional. Ainda em “As Almas da Gente Negra”, Dubois expõe sua teoria batizada de “Talented Tenth”, segundo a qual os povos em geral, possuem um décimo entre os seus indivíduos, que pelo seu talento nato, são capazes, a partir das condições apropriadas, de conduzir positivamente os seus demais concidadãos. Contextualizando, Dubois advoga que se a décima parte talentosa do povo negro pudesse ser plenamente preparada através da mais refinada educação erudita, nas mais variadas áreas do conhecimento humano, seria o suficiente para que, de volta à comunidade, guiassem todos os outros homens e mulheres negro(a)s pelos caminhos do conhecimento e da “civilização”, tornando-os aptos para conviver com plenitude em um regime democrático, somando as suas potencialidades `as dos demais povos que compunham a nação.
Lutador abnegado durante toda a sua vida, podemos entender, no entanto, um certo teor de decepção quanto à “democracia americana”, contido na sua opção de alinhar-se, já em idade avançada, às fileiras do Partido Comunista dos Estados Unidos. Do mesmo modo, o auto-exílio na terra dos seus antepassados, aonde veio a passar os últimos anos da sua vida, não deixam de representar a confissão de um homem consciente de ter cumprido o seu papel em uma batalha árdua e exaustiva, digno merecedor da paz e do descanso de uma terra maternal, a Gana Independente governada por Kwame N´Krumah.
W.E. Dubois, como veremos adiante, homem proeminente no cenário político americano, possuiu também, obviamente, sua cota de críticos e opositores. No nosso projeto de estudo, Dubois está situado em uma posição chave, posto que sua vida e obra se interrelacionam conflituosamente, tanto com as de Booker T., quanto, posteriormente, com a de Marcus Mosiah Garvey, e é justamente esse tríplice conflito que vai nos proporcionar o entendimento dialético das três obras visibilizadas em seus diversos aspectos. No entanto, independente de qualquer novo ângulo de análise que o explicitamento dessas discordâncias possa nos conduzir, encontraremos as marcas de um homem brilhante e devotado ao ideal de progresso do seu povo, inevitavelmente presente em qualquer trabalho ou estudo que se arvore em focalizar os mais brilhantes representantes do povo negro no Séc XX.
Marcus Garvey
Marcus Mosiah Garvey Jr., nasceu em St. Ann Bay, Jamaica, em 17 de Agosto de 1887. Seu pai era um Mestre marceneiro que apesar de não possuir educação formal, possuía uma ampla biblioteca o que lhe proporcionou o prematuro contato com as letras. Garvey estudou na Escola Anglicana de Gramática, ainda em St Ann Bay, graduando-se também no Ginásio da Igreja da Inglaterra. Aos catorze anos, a instabilidade financeira de sua família obrigou-o a deixar a escola e tornar-se aprendiz das artes gráficas com seu avô, Mr. Burrowes. Nesse período Garvey pode utilizar-se da grande biblioteca do avô, alem de adquirir os conhecimentos jornalísticos que posteriormente seriam necessários para a preparação de jornais e revistas.
Aos vinte anos Garvey já se tornara mestre gráfico, mas o seu envolvimento com as greves por melhores salários durante a crise que assolou a Jamaica na primeira década do séc XX, custou-lhe o emprego e a carreira na Benjamim Company, em Kingston. De todo modo, esse momento, marca o início do reconhecimento de Marcus enquanto líder para os trabalhadores de descendência africana, e através da fundação de dois jornais o “Garvey’s Watchman” ( Observatório de Garvey) e o “ Our Own” ( Nosso Mesmo), consegue fundos para devotar todo o seu tempo para o trabalho editorial e a organização da população negra da Jamaica. Durante os anos da década de 10, Garvey viaja para a Costa Rica, Panamá, Nicarágua, Honduras, Colômbia e Venezuela, trabalhando como peão em fazendas de banana e cana de açúcar. Nessas viagens, testemunha a realidade de exploração, humilhação e miséria em que se encontravam os trabalhadores negros e o povo negro em geral em todo o Caribe e parte norte da América do Sul. Alem disso, privou contato com diversos homens que haviam sido soldados nos exércitos europeus durante as guerras colonialistas, após a Conferência de Berlin em 1884, quando uma Europa faminta por matérias primas africanas, dividiu o controle do continente negro entre Inglaterra, Alemanha, França, Itália, Bélgica, Espanha e Portugal. Esses homens haviam sido recrutados pelos regimentos das Índias Ocidentais e utilizados para expulsar as populações nativas e roubar os seus territórios, e puderam relatar a Garvey a situação degradante vivenciada em África.
Em 1914, Garvey Funda a Universal Negro Improvement Association , UNIA ( Associação Universal para o Progresso Negro). Entidade que seria por toda a sua vida o carro chefe de suas atividades enquanto liderança negra. Durante os anos de 1912 e 1913, Garvey havia viajado para a Inglaterra, e durante essa estadia pôde aprofundar os seus conhecimentos sobre história da África Antiga, recursos naturais, política internacional e colonialismo, mantendo uma estreita relação com o intelectual egípcio Duse Mohamed Ali. Em 1915, a convite de Booker T. Washington, viaja para os Estados Unidos com o intuito de conhecer de perto o Instituto Tuskgee, fundado por Booker T., cujo modelo Garvey pensava em adaptar para a Jamaica. No entanto, Washington viria a falecer em Novembro de 1915 e Garvey somente consegue chegar aos Estados Unidos em Marco de 1916. Após alguns meses de contato, Garvey decepciona-se com as lideranças negras norte-americanas e começa a viajar por todos os estados, palestrando, discursando e fundando sedes da UNIA. Essas sedes, chamadas de “salas da Liberdade”, eram espaços pra encontros dominicais, aulas, reuniões políticas, shows, festas, distribuição de alimentos e caridade aos sem teto. Em 1919, a Unia funda a Black Star Line Company, uma frota de navios de transporte coletivo interamericano, em resposta às leis de segregação e aos maus tratos nos navios convencionais. Em 1920, organiza a convenção Internacional de Pessoas Negras no Mundo, realizada em Nova York, com o tema “África Para os Africanos”, contando com a participação de milhares de representantes do povo negro.
Entre outras coisas, a UNIA foi responsável pela fundação da “Corporação de Empresas Negras” em 1919, com o intuito de criar a semente de um capitalismo negro e garantir que empresas negras pudessem suprir todas as necessidades usuais da comunidade, como lanchonetes, lavanderias, rouparias, publicações, etc. A corporação foi fundadora da primeira fábrica de bonecas negras que se tem noticia. Em 1920, o conselho executivo da UNIA, debruçou-se também sobre a idéia de um projeto de repatriação de negros africanos para a África, projeto que não foi à frente devido a pressão exercida pelo estado americano sobre o governo da Libéria, no sentido de impedir sua realização.
Obviamente, o projeto da UNIA e de Garvey, em sua essência, o soerguimento da raça negra enquanto poder político e econômico autônomo, sobre as bases de uma unidade cultural etnocêntrica e um discurso de nacionalismo africano, tornara-se uma pedra no sapato, não somente do governo dos Estados Unidos9, mas também das próprias lideranças negras americanas democratas e mesmo de esquerda, comprometidas com o discurso de integração e acomodação da população negra enquanto cidadãos americanos. Ainda mais se considerarmos que por volta de 1926, a UNIA era representada por 725 sedes nos Estados Unidos e por 271 outras através do mundo, incluindo algumas em solo africano totalizando mais que sete milhões de afiliados, que gerenciavam um patrimônio de vários milhares de dólares.
Foram justamente essas lideranças negras norte-americanas, principais responsáveis pela incansável campanha conduzida contra Garvey e UNIA, que reforçada pelo Governo Federal, culminaria com a prisão de Marcus Garvey em 1925 sob a acusação de fraude postal, e sua deportação em 1927, após dois anos e nove meses de cárcere. Garvey continuou, no entanto, com o seu trabalho na Jamaica e em outros países, até que um derrame cerebral, paralisou todo o lado direito de seu corpo em 1940. Garvey veio a falecer um mês depois, no dia 10 de junho de 1940.
“ Perguntei: Onde esta o governante negro, onde esta o seu rei e o seu reino?” “ O seu presidente, seu pais e seu embaixador?” “ Sua marinha, seu exercito, seu líder?” “ Não pude achá-los e então eu declarei: Eu ajudarei a fazê-lo!!”10
Marcus Mosiah Garvey, não tinha nada a ver com o sonho americano, e sua chegada aos Estados Unidos teve o efeito atordoante de um terremoto. Muito desse impacto se deve diretamente a força da sua personalidade, era um homem de ação, imbuído na missão de fazer o seu tempo. Um preto forte, retinto, acostumado a assumir o papel de liderança desde os catorze anos de idade, quando coordenava o trabalho de dezenas de homens adultos nas oficinas gráficas do Sr Burrowes. Garvey estava impressionado com o que vira em suas viagens pelo Caribe e América do Sul, e mais ainda com os relatos que ouvira durante sua estadia na Inglaterra, sobre a realidade do massacre colonial em África. Havia um sentimento de urgência em sua mente, responsável pelo contato com Booker T. Washington, cujo livro “Up From Slavery” inspirara em Garvey o desejo de implementar na Jamaica algo semelhante ao Tuskgee Institute. Foi o próprio Washington quem o convidou e financiou para que visitasse Tuskgee, mas quando Garvey desembarca nos Estados Unidos em março de 1916, já faziam vários meses que Washington falecera no inverno de 1915.
Marcus, no que tange ao nosso estudo, não representava nem a postura conciliadora de Booker T. Washington sulista, e nem o negro democrata integracionista encarnado por W. E. Dubois e o NAACP. Era fundamentalmente um homem negro do hemisfério sul, posteriormente compreendido como 3º mundo, região sobre a qual os Estados Unidos já ensaiavam a sua política de hegemonia imperialista, tendo se apossado militarmente da região onde fora construído o Canal do Panamá, em 1913, um ano após intervir na Nicarágua, em 1912. Os Estados Unidos ainda ocuparam o Haiti em 1915 e Santo Domingo em 1916, e, além disso, o exército americano apoiara as forças sul-africanas, no controle das áreas do sudoeste do continente.
Garvey não alimentava ilusões de que tal projeto político pudesse incluir em suas entranhas, vias para que o povo negro alcançasse o status de cidadania ou uma posição de isonomia social, a partir da qual pudesse desenvolver livremente o seu potencial, com direito à condução do seu próprio destino. Para ele, o homem branco nunca abriria mão de sua posição de privilégio. Acreditava que o povo negro deveria optar por construir uma relação de respeito através da conquista de poder, e de um poder direcionado, não para o direito de tornar-se branco dos raciais-democratas, mas para o direito de construir suas próprias estruturas, suas próprias nações, se necessário fosse, devendo-se ressaltar ser a idéia de retorno à África uma das temáticas recorrentes do discurso de Garvey, o que não o afastou, no entanto do exercício da construção do poder negro, onde quer que estivesse11. Para isso seria necessária, a estruturação de um movimento de capitalismo negro muito proximamente similar às organizações financeiras/comerciais que imperavam entre as comunidades italianas, irlandesas, alemães e judias, entre outras, e que iriam se tornar o modelo das relações raciais na América. Esse modelo estabelece um determinante racial para as relações entre investimento-produção-comércio-emprego-consumo, que possibilita a circulação de renda e lucro dentro da própria comunidade, apta para posteriormente reinvestir esse lucro, gerando melhorias coletivas, além de incrementar a unidade cultural e os laços de solidariedade entre determinado povo.
A poderosa oratória do líder jamaicano atraía aos milhares os negros americanos que fugiam em massa da nova onda racista que assolava o Sul, bem como os negros do Norte, cada vez mais desesperados de que conseguiriam conquistar desenvolvimento através de políticas parlamentares, em um regime marcado pela corrupção e pelo supremacismo branco. Todos estavam eletrizados com o discurso do homem que bradava para as multidões: “O novo negro não tem medo!, “África para os Africanos!”, Um povo, uma missão, um destino!”, “Erga sua poderosa raça!” Garvey foi um dos principais precursores e divulgadores do nacionalismo negro e do panafricanismo, doutrina que pregava a união de todo o povo negro, em África e na diáspora, em prol do resgate de sua herança histórica e cultural, para além de quaisquer fronteiras ou diferenças lingüísticas.
Incluía o povo negro do mundo em um projeto bem maior que a simples reivindicação de melhorias sociais. Para Garvey era evidente a necessidade de que o controle político econômico e militar do continente africano estivesse nas mãos dos próprios africanos para que se operasse a reconstrução do continente enquanto lar e referência do seu povo, de modo a que seus filhos não mais necessitassem mendigar aceitação na sociedade branca, mas que pudessem relacionar-se em pé de igualdade, respeitados em suas diferenças, com qualquer outro povo sem que a sua integridade fosse ameaçada ou questionada12. Garvey representou o sonho e as frustrações da classe trabalhadora negra em desenvolvimento e suas palavras e ações permanecem vivas e poderosas até os dias atuais, tendo influenciado toda uma geração de lideranças negras, como Malcom X, os Panteras Negras, Abdias do Nascimento, e mesmo os principais líderes dos movimentos independentistas que eclodiram em África desde meados dos anos 50, como Kwame N’Krumah, Sekou Touré, Patrick Lumumba, Julius Nyerere, Ahmed Ben Bella, Kallel Abdel Nasser e Hailé Selassieh, sobre o qual Marcus Garvey profetizou sua coroação em 1925.
Booker T. Washington- W.E. Dubois – Marcus Garvey: Três Paradigmas negros em conflito.
O primeiro dos homens sobre os quais lançamos o nosso interesse, enquanto líder negro capaz de elaborar uma proposição sistemática original para (tentar)resolver o problema do povo negro recém saído da escravidão americana, Booker T. Washington, homem negro sulista, desenvolveu suas perspectivas tendo muito influído sobre elas, a particular situação de opressão e pressão racial historicamente solidificadas nessa região e polarizadas a partir de um processo de “democratização forçada” conduzida pelas tropas yankees durante o período da reconstrução. É notável, em toda a sua obra, a preocupação em propor um modelo de inclusão do povo negro na sociedade americana, buscando ao mesmo tempo, não ferir o tecido das relações raciais ali estabelecidas durante os séculos escravistas. Partindo do pressuposto de que a preguiça e a degradação moral, somados à pobreza e à falta de capacitação técnica eram responsáveis pelo atraso social e empecilho para o desenvolvimento da comunidade negra13, Washington vai questionar (e negar) a importância das lutas por direitos civis, de voto e de educação superior para uma comunidade que não teria preparo para utilizá-los em proveito próprio. Através de uma rígida postura moral, da capacitação técnica industrial e do trabalho, o negro americano forçaria o branco,segundo Washington, a uma reavaliação de suas concepções negativas, o que acarretaria um novo processo na história das relações raciais. Booker T. Washington estabelece um paradigma de integração do negro na América que retira do branco e joga sobre as costas negras, toda a responsabilidade da condução desse processo, abrindo o precedente para que quaisquer falhas posteriormente existentes em suas relações, pudessem ser justificadas mais pela imperícia do povo dominado do que às pressões do dominador, ou ao próprio desequilíbrio imanente à essa relação. Se em um determinado momento, o seu projeto de cidadania subordinada caiu como uma luva para o sistema branco sulista, vimos que posteriormente a sua proposição por autonomia econômica, mesmo que desprovida de qualquer discurso de conteúdo racial, tornou-se um problema para o supremacismo etnocêntrico e foi facilmente paralisado a partir da dependência estrutural do seu projeto.
Dubois, em contrapartida, foi um homem clássico (“Um grego”, para utilizar a expressão de Joaquim Nabuco em sua aclamação póstuma de Machado de Assis14) Como vimos, sua formação acadêmica, que incluía o título de Phd em Harvard, era um privilégio de difícil acesso mesmo para a maioria da população branca. A crítica ferrenha direcionada contra Booker T. e posteriormente contra Marcus Garvey, demonstra fundamentalmente a solidez de sua crença nos valores presentes no discurso burguês democrata em voga no norte dos Estados Unidos, bem como nos princípios humanistas e progressistas legados de sua formação acadêmica positivista.Tanto a cidadania subordinada proposta por Washington quanto o desenvolvimento em separado fundamentado na afirmação étnica defendido por Garvey, representavam retrocessos no que se refere à legislação e feriam os princípios igualitários presentes na constituição americana que o permitiam vislumbrar uma sociedade na qual a linha de cor fosse definitivamente superada através da ação política das lideranças negras e de seus aliados brancos.
Nesse sentido, podemos compreender tanto em algumas colocações de Garvey: “Os maiores homens e mulheres do mundo foram pessoas que se auto-educaram fora da Universidade, com todo o conhecimento que a Universidade oferece, e você tem a oportunidade de fazer a mesma coisa que um estudante universitário faz: Ler e estudar!”15 como de Washington: “quando eu era apenas um garoto, eu vi um jovem homem negro que tinha gasto vários anos na escola, sentado em um barraco ordinário no Sul, estudando uma gramática francesa. Notei a pobreza, a desarrumação presentes no barraco, não obstante o seu conhecimento em francês e outros assuntos acadêmicos.”16um certo grau de desconfiança e mesmo de desdém, quanto às possibilidades de que a educação acadêmica pudesse oferecer à comunidade negra, vias para a superação de seus problemas imediatos. Há uma rusga classista que no entanto não se interpõe ao conteúdo racial e político da discussão. Dubois não poderia admitir contra os seus princípios, a atitude conciliadora do discurso de Washington: “Queremos sufrágio para todos os homens, e queremos agora! Nós somos Homens, queremos ser tratados como homens e nós venceremos!” como afirmou no manifesto do Niagara Movement, predecessor do NAACP, dez anos depois do discurso de Booker T. Washington desaprovando a luta dos negros por igualdade de direitos civis. De toda maneira, tanto Dubois quanto Marcus Garvey, vão afirmar em determinados momentos de suas obras a importância de Washington e do seu trabalho no Tuskgee Institute valendo lembrar, que todo um capítulo de “As Almas da Gente Negra” é dedicado a analisar e combater as proposições de Washington.
Em 1915, porém, o homem de Atlanta falecera, alguns anos depois, a luta que se estabeleceria entre Garvey e Dubois não estaria sujeita a reconciliações póstumas e o caráter racial de suas posições assim o determinaria. Dubois, assim como Washington, acreditava na necessidade de um processo de profilaxia social que capacitasse para a inclusão a comunidade negra na sociedade americana e que esse processo deveria ser conduzido pelos “dez por cento mais talentosos” representantes da raça, que preparados por uma refinada educação acadêmica, atuariam como certa vanguarda educacional, cultural e política junto aos seus aliados brancos, no sentido de resgatar os outros noventa por cento da população negra, internados na degradação da ignorância e da marginalidade social. Para Garvey, pelo contrário, havia a necessidade de afirmar a origem da situação de degradação em que se encontrava o povo negro no mundo, no próprio processo colonial escravista, responsabilizando o branco por esse quadro17 e determinando, através do resgate da história ancestral particular do negro, a necessidade de uma ação própria contra as representações vigentes desse processo, baseando-se em uma luta autônoma por auto-determinação liderada e coordenada pelo próprio negro.
Nesse contexto, Garvey expressaria a sua decepção relativa a seu primeiro contato com as lideranças negras norte-americanas: “Eu imediatamente visitei alguns assim chamados ‘líderes negros’, apenas pra descobrir, após um estudo próximo deles, que eles não tinham nenhum programa, mas eram meros oportunistas que viviam de sua liderança, enquanto as pessoas pobres estavam indo para o fosso”18 .Desgostaria-se do mesmo modo, com o discurso moderado do NAACP, inquietando-se quanto à neutralidade da postura racial integracionista assumida pela organização, que segundo Garvey, era conduzida na direção do embranquecimento cultural e psicológico, que conteria mesmo uma pigmentocracia na qual os negros mestiços de pele mais clara seriam privilegiados e favorecidos no que se refere a ocupação de cargos de comando. Tal idealização do embranquecimento, já havia sido uma das principais fontes de atrito para Garvey na Jamaica, e encontrá-la repetida na América serviu-lhe para remarcar sua ruptuara com a social democracia negra, como para reforçar sua opção pelo nacionalismo africano.
O sucesso estrondoso de suas pregações e da UNIA entre a massa afro-americana, iria ser base para uma relação de conflito permanente entre Garvey e as demais organizações sócio-políticas negras ou voltadas para o público negro, como os grupos socialistas, sociais-democratas, o NAACP e posteriormente o incipiente Partido Comunista Americano e as Igrejas Evangélicas, que tinham em comum, a insistência na tentativa de cooptação de membros da UNIA para suas fileiras. A UNIA atingiu proporções espantosas, mantendo até hoje a marca de ter sido a mais numerosa organização negra da história mundial, chegando a mais de oito milhões de membros espalhados por todo o mundo. Esse crescimento, obviamente foi acompanhado por movimentos proporcionais de oposição, que culminaram em suas estratégias, no indiciamento de Marcus Garvey em 1925 sob a acusação de fraude postal e com a campanha pública “Garvey deve partir!” encampada principalmente por eminentes representantes do NAACP. Segundo a Senhora Garvey, esposa e principal mantenedora do legado de Marcus Garvey, Dubois teria sido o mais empedernido oponente de Garvey, tomando para si, a missão de livrar a América dos perigos do extremismo racial. Em 1927, Garvey era deportado, como já vimos, após mais que dois anos de cárcere. Por ironia da história, como conclusão da presente exposição de paradigmas, o Professor Willian Eduard Dubois, iria passar os seus últimos anos e dias de vida no Gana independente liderado pelo assumidamente garveísta Kwame N’kruhmah.
Considerações Finais
Independentemente dos oportunos alertas pós-modernistas contra a debilidade da crença em uma história positivista na qual os fatos desencadeiam-se mecanicamente em uma relação progressiva e conseqüente na direção de um ideal evolutivo, não poderíamos privar-nos de expressar a nossa compreensão de que a história, se não é uma simplificada “esteira de sucessões”, é um campo de movimento contínuo, no qual o choque dialético de suas contradições intestinas vai determinar processualmente as feições assumidas por uma realidade histórico-temporal específica. Desse modo, a análise historiográfica das micro-relações que se desenrolam através das compartimentações de um todo, crescem em importância se considerarmos a permanência de uma implicação de influências e confluências entre o todo e os seus compartimentos, e isso é óbvio. Por esse motivo, nos detivemos em examinar, no presente trabalho, a gênese histórica das modernas relações políticas e raciais e suas principais vertentes ideológicas nos Estados Unidos da América, durante as últimas décadas do séc XIX e primeiras décadas do século XX, gênese essa cujas expressões iriam marcar e referendar todo o desenvolvimento dessas relações através do século XX até os dias atuais.
Se entendemos a importância de meramente apresentar aos interessados, informações sobre um determinado cenário histórico, que por razões ideológicas nos são deliberadamente indisponibilizadas, a intenção que nos move, é a de oferecer subsídios ao leitor brasileiro, para uma discussão política e racial que leve em consideração experiências anteriores e referenciais, no sentido de minimizar o atraso de mais de um século dessa discussão colocada no Brasil, pelo menos a nível oficial, aberto e bilateral. A propensão de tratar como nova a matéria “relações raciais e estado”, resume não somente um profundo desrespeito às mobilizações históricas do povo negro no Brasil e no mundo como também mascara cinicamente a responsabilidade histórica e deliberadamente consciente das elites brasileiras geradoras e mantenedoras dessa realidade negativa. Faz-se portanto, necessário, o conhecimento objetivo das experiências históricas nacionais e internacionais relativas às relações raciais que possam nos instrumentalizar contra uma discussão superficial e mistificadora.
No Caso norte-americano, veremos as tensões referentes aos axiomas paradigmáticos raciais preponderantes na primeira metade do séc XX, estenderem-se da mesma maneira através de toda a segunda metade (ainda que com outros personagens), até o momento em que a ação avassaladora das forças repressivas, somadas ao crescimento econômico e à unidade nacional empurrada através da paranóia contra supostos inimigos externos conseguem pulverizar os movimentos negros organizados diminuindo-lhes a pujança e o apelo popular de suas mobilizações ( com exceção talvez apenas da Nação do Islam e o seu Ministro Louis Farrakhan). Quanto a isso podemos afirmar que o governo americano, em aspectos gerais vai assumir, como paradigma oficial para as relações raciais o modelo de Booker T. Washington, traduzido como uma “Concessão” de cidadania para o negro através de medidas paternalistas e controladas, nomeadamente a abertura de escolas e universidades específicas voltadas majoritariamente para a formação técnica e industrial, a melhoria nos serviços públicos e de moradia ( ínfimas, se contextualizadas nos padrões americanos), algum acesso de crédito e um discurso permanente pautado na paciência e na resignação confiante em dias melhores. Por outro lado, a movimentação conduzida pelo reverendo Martin Luther King Jr. De caráter integracionista e legalista, no qual a não violência e a crença na mudança através da ação política democrática são carros chefes do seu discurso, encaixa-se perfeitamente no modelo anteriormente defendido por Dubois, enquanto que o radicalismo fundamentalista de Malcom X e dos Panteras Negras é afilhado declarado de Marcus Mosiah Garvey e UNIA.
Não obstante as permanências facilmente notáveis das três correntes de pensamento estudadas, é indispensável a compreensão de que tratam-se de paradigmas que não conseguiram alcançar (e manter) posições hegemônicas em suas sociedades, e menos ainda, servirem como motores propulsores para transformações estruturais profundas quanto às determinações raciais da sociedade norte-americana, ainda que tenham podido revolver o solo apodrecido sobre o qual tais determinações se assentavam, ali deixando sementes, preparando terreno para o crescimento de eventuais revoluções.
Assim posto, temos o privilégio de dispor de um quadro para análise que nos oferece projetos e métodos, aplicações, erros e acertos testados e avalizados (ou não) na prática, homenageados e proscritos estejam os heróis e traidores dessa novela real que é a história. Ressaltando o óbvio, não podemos deixar de receitar àqueles que se interessem em pensar as modernas relações raciais brasileiras utilizando como referência a experiência afro-americana, o cuidado no processo de contextualização, com as especificidades de cada uma dessas realidades, separadas não somente por mais uma América, mas por diversas características próprias e diferenciadas. A permanência cultural africana no Brasil, a proporção demográfica e a realidade econômica,são alguns desses pontos diferenciais, cuja compreensão me parecem imprescindível. Além disso, devemos reforçar com o Sr. Abdias do Nascimento, o fato indiscutível de que a experiência diaspórica do negro brasileiro, traz em si, elementos ricos e suficientes que lhe servem de materiais e referência para o seu auto-entendimento, bem como para a elaboração teórica de um eventual processo de transformação social, assunto no qual o referido autor, entre outros guerreiros, é virtuosamente competente. Nesse sentido, qualquer outras referências apenas somam-se às pré-existentes de modo a referendar a unidade além-fronteiras do vínculo latente entre a humanidade negra e seus descendentes em África e na diáspora.
Esperamos que com esse trabalho atinjamos o nosso objetivo de proporcionar aos irmãos negros o acesso ao conhecimento de conhecimento sobre nós mesmos, meta até a qual, somos permanentemente desviados, no sentido de continuarmos tutelados pelos poderes euro-brasileiros constituídos bem como por alguns “assim chamados líderes negros”, para os quais a nossa dependência intelectual, econômica, organizacional e psicológica é conveniente.
Agradecemos aos Orixás e aos nossos antepassados por esse Axé latente, aos guerreiros, às mães e aos meninos.
Sou Eu, Sou Eu...!
Bibliografia
Editorial do Jornal Chattanooga News, 5 de Agosto de 1927
Dubois, W.E.;”As Almas da Gente Negra”RJ, Lacerda Editores, 1999
FBI MEMO; John Edgar Hoover to Special agent Ridgel, 11 de Outubro de 1919
UCLA “The Marcus Garvey and UNIA Papers Project”
Washington, Booker T. “The Awakening Of The Negro” Publicado originalmente em “The Atlantic Monthly” Setembro 1896
Rydel, Roy “About W.E. Dubois: Reviewing the Review”, in “People’s Weekly World”, 9 de novembro de 1996
Diop, Cheikh Anta ; “Origem dos Antigos Egípcios”em “A África Antiga”Coordenado por G Mokhtar; São Paulo: Ática( Paris); Unesco 1983
Nascimento, Abdias do ; “O Quilombismo” Ed. Vozes-Petrópolis 1980
Franklin, John Hope; “Raça e História-Ensaios Selecionados, 1938-1988” Ed Rocco, RJ, 1999
Lowy, Michael, “A Teoria da Revolução no Jovem Marx” Ed Vozes, Petróplis 2002
Gramsci, Antônio; “A Formação dos Intelectuais” Ed Achiamé, RJ, 2000
Marx: Sociologia, Organização de Octavio Ianni e Florestan Fernandes, Ed Ática 1979
Black Diáspora – A Global Black magazine, n.o 3 “110 Years of Marcus Garvey” Jamaica, 1987
Caribe, Vol IX, n.o 1, Special Commemorative Issue “Marcus Garvey, Jamaica 1987
Por Fábio Mandingo
Apresentação
O presente momento vivido pela sociedade brasileira, no que diz respeito ao discurso e à prática oficiais e civis sobre a questão racial, assemelha-se em muitos aspectos, à situação experienciada nos Estados Unidos da América durante o período imediatamente posterior à Guerra Civil e à Abolição da Escravidão, e que se estende até os anos que se seguiram à 1ª Guerra Mundial, quando se consolidaram as leis referentes à segregação racial em grande parte do país, marcando a opção do estado americano por manter um regime político de discriminação e supremacismo branco oficialmente referendado, dando fim a uma época de efervescência política e cultural no qual o discurso igualitário reminiscente da guerra civil, possibilitou ao negro americano o vislumbre de uma sociedade onde os caminhos da comunidade pudesse ser determinado por sua competência e por seus próprios anseios.
Com pelo menos 130 anos de atraso, somente agora a sociedade e o estado brasileiro começam a discutir a implementação de políticas específicas voltadas para a integração do povo negro à sociedade, partindo da compreensão de um processo histórico marcado pelo prejuízo e desfavorecimento conseqüentes do passado colonial escravista, propondo-se a buscar meios para minorar os efeitos negativos dos 350 anos de exploração econômica escravocrata e da marginalização posterior a uma abolição desassistida.
De modo semelhante ao período americano citado, podemos atualmente assistir à florescência de diversos grupos e tendências de movimentos negros no Brasil, que se entendem aptos para atuarem enquanto condutores deste processo de transformação, de modo a garantir a compreensão do contingente populacional negro como portador de uma identidade histórica-cultural, ressaltando a importância de sua contribuição pra a formação do país. Homens e mulheres, jovens e velhos negros, unem-se no esforço de elaborar as políticas capazes de capitanear a construção de uma sociedade racialmente includente,fortalecida pelo respeito à diversidade étnica, atenta à riqueza das diferentes contribuições fornecidas pelos grupos raciais que formam a sua população.
Elaboração de um novo tempo, ou a intensificação de antagonismos que precedem as épocas totalitárias? Tendo em vista que toda a busca por reformas sérias e reais conduzem à explicitação das contradições imanentes à sociedade capitalista, demandando daqueles que são privilegiados por sua estrutura uma reação proporcional à força dos anseios populares, ficamos atentos aos ensinamentos da história, que nos mostra a tendência à manutenção das estruturas de dominação constituídas, e a busca por eliminação, adaptação e/ou estagnação das forças transformadoras surgidas no ventre desta sociedade.
Nesse sentido, o presente trabalho visa apresentar ( além de breves biografias coligidas a partir das obras referenciais) as proposições de três importantes líderes afro-americanos, Booker T. Washington, W.E. Dubois e Marcus Mosiah Garvey, elaboradas no contexto do período pós-abolição e concernentes a três diferentes vias de integração do povo negro na sociedade americana, examinar o contexto em que essas proposições foram colocadas, suas repercussões e conseqüências, bem como, abrir a possibilidade de uma análise comparativa à atual realidade racial brasileira.
Sonhos, Ilusões e Frustrações.
A Guerra Civil Norte-Americana, que durou de 1860 a 1865, colocou frente à frente no campo de batalha, duas concepções políticas antagônicas e aparentemente inconciliáveis. Para além do caráter puramente bélico e de disputa por hegemonia, próprios de qualquer guerra, a guerra civil americana pretendia encarnar o embate entre eras históricas opostas, representadas na estagnação conservadora do sul escravocrata, confrontada com a pressão industrializante do norte e suas tendências democratizantes, próprias das contradições intestinas de um capitalismo nacionalista forte, em processo de implementação.
A sociedade sulista se assentava na imutabilidade de um sistema agrário de grandes propriedades, no poder patriarcal extremo, e na mão-de-obra escrava. Os estados algodoeiros do sul, foram os que mais receberam africanos escravizados durante o período do tráfico, formando o que se chamou de o “ Cinturão Negro” , em referência ao grande contingente populacional africano. Essa peculiaridade étnica vai determinar todas as facetas dessa sociedade, preocupada em preservar o status quo de supremacismo branco inquestionável, que se reflete como pressão, através de todas as inter-relações sociais. A mão-de-obra negra foi a principal geradora da riqueza do sul, pilar sobre o qual as famílias brancas tradicionais mantiveram um padrão de vida senhorial, dedicado à política e ao ardor religioso, bem como, a reforçar todo o aparato ideológico, responsável pela justificação da hierarquia racial, além de introjetar a “normalização” dessa hierarquia. O discurso oficial sulista, referendava a perfeição de sua imobilidade e a segurança de uma sociedade na qual as coisas ” estavam em seus devidos lugares”.
A modernização industrial em desenvolvimento no norte ( e com pretensões de se estender por toda a União), representava o esboroamento desse contexto semi-feudal, por torná-lo obsoleto, incompatível com as imposições de um sistema capitalista incipiente, que previa a introdução do regime de trabalho assalariado, a formação de um mercado consumidor, o liberalismo econômico e a conseqüente mercantilização da esfera política, direcionada agora, mais por interesses financeiros que por princípios morais. O capitalismo nortista trazia ainda em seu bojo, os germes das reivindicações populares gestadas no seio de uma classe operária em formação e intensificadas dentro do contexto urbano, impensáveis e inaceitáveis para os aristocratas brancos do sul.1, Socialismo, direitos da mulher, sindicatos, igualdade racial, democracia, eram assuntos tabu, a respeito dos quais o sul idílico deveria ser protegido, posto que representariam a ruína da família tradicional protestante, de seus valores e de sua organização social.
Em outra frente, norte e sul travavam um embate político e econômico relativo à hegemonia sobre as novas terras conquistadas do México no Oeste, e o modelo de ocupação a ser implantado: O agrário escravocrata, ou o industrial capitalista. Além disso, os estados do norte tencionavam impor uma política protecionista responsável por pesadas tarifas alfandegárias contra os produtos industrializados ingleses, de modo a favorecer a indústria nacional. Para os produtores de algodão, no entanto, a relação comercial com a Inglaterra, era extremamente favorável, sendo que os ingleses representavam o seu maior mercado consumidor, e perdê-lo era um risco que não estavam interessados em correr.
Entre todos esses fatores, a abolição do trabalho escravo era o ponto em que esse antagonismo recrudescia mais criticamente. A escravidão era a base do sul agrário, mas sua extinção seria a base da implementação do capitalismo industrial, e nesse sentido, o discurso referente à abolição, tornou-se a principal bandeira dos estados do norte, respaldados pela atuação de intelectuais, artistas, humanistas e políticos abolicionistas. Os sulistas, por seu lado, acusavam os do norte de tentarem solapar as bases da sua sociedade e, sustentando o discurso sobre a necessidade da manutenção do supremacismo branco2, buscavam garantir politicamente a continuidade do regime de escravização negra. Calorosos debates eram travados no campo intelectual,numerosas obras foram escritas tendo na libertação dos escravizados o seu tema. Muitos foram também os negros alforriados que contribuíram ativamente com o movimento abolicionista.
Em 1860, a Guerra se inicia, quando os estados do sul se separam da União, e em 1862, o Presidente Abraham Lincoln assina o Abolition Act, a libertação dos cativos do sul. Essa medida teve como pano de fundo, a incorporação dos negros nos exércitos da União, que até então vinham sendo batidos pelas tropas confederadas. A entrada dos ex-cativos na guerra vai determinar a mudança nesse quadro, e a vitória do norte em 1865. Os sulistas sofreram derrotas esmagadoras e tiveram o sistema escravista desestruturado, além da imposição de aceitar a legislação nortista, relativa não somente às questões raciais, mas à organização política e à economia, agora abertas ao poder do capital.
A “Reconstrução”
“40 Acres de terra e uma mula”, era a promessa do governo para cada família negra do sul. O período imediatamente posterior à guerra, conhecido como “reconstrução americana”, que vai de 1865 a mais ou menos 1880, com o início do processo de reforma agrária e democratização política, e, no sentido contrário, de 1880 até 1920, quando as leis segregacionistas do sul, baseadas no conceito de “diferentes, mas iguais” são nacionalmente referendadas, jogando por terra o sonho dos dez milhões de americanos negros de construir uma nação sobre um projeto de igualdade real, de direitos e oportunidades, é o período concernente à nossa pesquisa. È durante esse período que os afro-americanos vão atuar de forma mais marcante, no que se refere a elaborar proposições e movimentos voltados para a integração do negro na sociedade americana, seja a partir de um ponto de vista de políticas públicas seja a partir da auto-determinação enquanto comunidade étnica específica.
Booker T. Washington, W.E Dubois e Marcus Mosiah Garvey, são três dos mais destacados nomes desse período turbulento, no qual a manipulação política e a ação terrorista de organizações racistas, como a Klu Klux Klan, boicotaram e minaram por dentro o projeto de “reconstrução”, consolidando o regime de segregação racial que perdurou no sul até meados dos anos sessenta do séc XX, quando os movimentos por direitos civis conseguiram derrubá-lo.
O Pioneirismo Americano
Um ponto fundamental no processo de “reconstrução” do sul, e que serve como objeto importante para reflexão, no quadro da problemática abordada, é o pioneirismo americano no tocante à discussão de projetos de políticas públicas oficiais direcionadas para a integração da população negra na sua sociedade, em se tratando de um país multirracial. Independendo de uma análise crítica aprofundada do teor dessa discussão, ou mesmo de um questionamento quanto a sua condução e tendências, o fato a ser ressaltado é o de que o recém formado estado americano viu-se na contingência de determinar políticas oficiais para a integração do povo negro americano, incluindo nessa discussão, pontos cruciais, como reforma agrária, emprego, educação e representação política. A admissão estatal, do contingente populacional negro enquanto organismo diferenciado política e historicamente no contexto nacional, a compreensão do processo de escravização enquanto fator de degradação econômica e social, reforçada pelo discurso democratizante e igualitário da recente constituição americana e da própria guerra civil em si, criaram o campo no qual projetos de discriminação positiva puderam ser vistos como veículos óbvios para a inserção social dos negros, e o fato de equipararem-se, em quantidade, tanto os projetos oficiais para essa inserção, quanto aqueles gerados pela própria comunidade ( refiro-me à criação de escolas, grupos de mulheres, iniciativas econômicas coletivas, etc.), remarca a postura assumida por essa comunidade, de não entender-se enquanto mero objeto social, mas sim sujeitos de seus próprios caminhos, postura essa que vai dar a tônica do povo afro-americano, mesmo nos momentos em que o aparato legal do estado volta-se com a determinação de Paralisar os seus movimentos.
Ainda durante a própria guerra civil3 o “ Freeman´s Bureau” , surge como via estatal para a integração dos negros recém libertados e seguindo o Freeman´s Bureau, diversas outras agências governamentais foram instituídas com esse objetivo, visando coordenar o processo de reconstrução, abertura de escolas, distribuição de terras, financiamento e crédito, bem como processos eleitorais e judiciais. Em 186* surge a primeira universidade para negros, em 186* os primeiros hospitais. As obras de Washington, Dubois e Garvey, vão se situar justamente no início, meio e fim, respectivamente, dessa era de explosão de perspectivas, de ilusões, de sonhos e de frustrações. São três modelos diferenciados para o posicionamento e conduta do povo negro perante a sociedade americana (e vice-versa), construídos por três homens negros imbuídos no compromisso/missão de guiar o seu povo desde os grilhões da escravização até o conforto de uma cidadania plena. Três projetos historicamente entrelaçados e complementares, mas ao mesmo tempo antagônicos e em permanente conflito, que através dos tempos e ainda hoje, nos oferecem subsídios para enriquecer e facilitar discussões referentes às políticas raciais.
Booker T. Washington
O homem que mais tarde viria a ser conhecido como “o grande conciliador”, nasceu em 1856 em uma plantação de tabaco situada na Virgínia, ainda sob o regime de escravidão. Era filho de uma cozinheira negra com um agregado branco de uma das fazendas da cercania. Washington começou a estudar, antes mesmo que a proclamação da emancipação tornasse legal a educação para negros, carregando livros dos filhos do fazendeiro. Após a guerra, sua família muda-se para West Virgínia, onde trabalha e estuda. Aos 16 anos, acorre ao Hampton Institute, uma nova escola para estudantes negros. Trabalhando para pagar os estudos, Booker T. torna-se instrutor do Hampton Institute e depois de alguns anos, funda o seu próprio instituto educacional, o Tuskgee Institute, no Alabama, sendo seu diretor e principal mentor, transformando-se em um dos mais notáveis homens negros do seu tempo, além de educador respeitado. Foi o primeiro homem negro convidado para tomar um chá na casa branca e a ser recebido por um presidente (Theodore Roosevelt). Por conta de um discurso conservador e acomodado relativo à questão racial, Washington recebeu substancial suporte de brancos ricos e do próprio governo para o seu instituto, visto como fórmula ideal de resolução para a problemática étnica latente no sul dos Estados Unidos. Falece em 1915, aos 59 anos, alguns meses após liderar uma campanha de boicote contra o filme de W. Griffti “O Nascimento de Uma Nação”4.
Entre os três paradigmas abordados, a proposição de Booker T. Washington para a inclusão social do negro, aparece como sendo a mais moderada, e diria-se mesmo, a mais retrógrada, tendo em vista o grau de apelo democrático contido no discurso político da época. De todo modo, a posição de Washington é marcante na sua objetividade e no seu pragmatismo, mostrando-se viável e eficaz enquanto solução para uma delicada situação de impasse político e racial, onde os atos necessariamente tinham que ser pesados de acordo com suas conseqüências.
Para Booker T. Washington, não havia sentido em uma luta do povo negro por questões como igualdade racial, direitos eleitorais e civis, ou educação superior. Seus esforços deveriam estar direcionados ao resgate moral, e à emancipação econômica através do trabalho duro e da educação técnica profissionalizante. Segundo Washington, a formação universitária superior era completamente inútil, em se tratando de uma comunidade recém saída da escravidão, afundada na miséria financeira, no ócio, na marginalidade, no alcoolismo e na prostituição. Direitos de votar e de ser votado tornavam-se ridículos quando relativo a uma população afundada mortalmente em dívidas nos armazéns de alimentos e agiotas em geral, que emprestavam dinheiro e vendiam aos negros baseados nos dividendos das colheitas futuras, criando uma nova relação de trabalho sem renda, similar ao escravismo. No que se refere à igualdade racial, acreditava que: “em todas as coisas meramente sociais, podemos ser tão separados como os dedos das mãos, ainda que unidos em todas as coisas essenciais para o progresso mútuo”5, como declarou no discurso de 1895 “ O Compromisso de Atlanta”, feito para uma audiência bi-racial, no qual expõe os estamentos filosóficos do seu projeto.
Obviamente, essas proposições foram aclamadas como sendo a solução ideal para o impasse sulista. Do ponto de vista da sociedade branca do sul, extremamente pressionada pelo liberalismo sócio-econômico nortista e interiormente pela intensa luta dos negros por igualdade de direitos, nem eles mesmos poderiam imaginar uma saída mais apropriada. O posicionamento de Washington, ao mesmo tempo em que se adequava às necessidades da industrialização incipiente, trazia um modelo de integração subalterna, que mantinha intocadas as estruturas da hierarquia racial sulista, abrindo as portas para o progresso sem, no entanto, esboçar questionamentos referentes ao supremacismo branco, enfim, mantendo as coisas em seus devidos lugares!
O Instituto Tuskgee foi o seu laboratório, onde colocou em prática suas propostas educacionais, obtendo resultados consideráveis e granjeando a admiração de muitos brancos nortistas, impressionados com sua política de distanciamento da questão racial, sendo que milionários como John Rockfeller e Andrew Carnegie eram doadores freqüentes do Instituto, que em 1905: “Era uma instituição com 8 mil estudantes vindos de 19 estados, com setenta e nove instrutores, 14 mil acres de terra e trinta edifícios, entre grande e pequenos, uma propriedade de U$ 280.000”6. Apesar da sua postura “conciliadora”, Washington não deixou de ser alvo de críticas dos movimentos negros, que o viam como uma espécie de traidor, por desviar a comunidade das lutas por direitos civis. Por outro lado, na medida em que os brancos recuperavam o controle das instituições sulistas, conquistando o respaldo legal para o recrudescimento das tendências segregacionistas, até mesmo um modelo “ conciliador” de integração, passava a ser desinteressante, posto que antagônico ao restabelecimento da linha racial no tocante às relações sociais, contrário a qualquer tipo de autonomia por parte dos negros. Além disso, a dependência de suporte financeiro para a manutenção do seu projeto, determinou a debilidade do mesmo, no momento em que muitos financiamentos foram suspensos, por conta dos re-arranjamentos políticos e econômicos entre o norte e a “nova aristocracia industrial sulista”. Em seus últimos anos, foi testemunha do sucateamento da sua instituição, o que no entanto, não foi capaz de obliterar a sua importância enquanto projeto de emancipação econômica para o povo negro, nem o seu alcance como modelo prático sua construção.
W.E.B.Dubois
Em 1903, Dubois compõe a abertura do seu livro, “ As Almas da Gente Negra”, afirmando que “ O problema crucial do séc XX, será o problema racial”. Se enquanto estudante, intelectual, educador e líder político, devotou todos os seus dias em prol do fortalecimento do povo negro, empenhando-se completamente na luta por seus direitos, na América e mesmo internacionalmente, ressaltando as raízes racialmente determinadas do quadro de prejuízo social em que se encontravam as populações de cor, Dubois foi, acima de tudo, um democrata, e nesse sentido, um racial democrata. O fio condutor e base da sua luta racial, não foi mais que uma luta por integração da população negra na sociedade americana, e todos os seus esforços foram direcionados para que essa integração se desse da forma mais equânime possível, alçando o homem negro à categoria de cidadão pleno, em igualdade de direitos e deveres com todos os demais componentes do organismo social norte-americano. De todo modo, Dubois não se privou, em sua obra, do exercício da teorização sobre mecanismos que pudessem conduzir o povo negro, desde a escravidão à cidadania, através de políticas públicas voltadas para a sua inclusão social, valendo-se ressaltar, a constância da idéia de cidadania plena7, presente mesmo na construção desses mecanismos de discriminação positiva.
Sua obra é um marco no que diz respeito à história e à sociologia do negro na América, tendo sido um dos primeiros autores a lançar um olhar científico e acadêmico sobre temáticas concernentes à própria história americana, como o tráfico negreiro, tema da sua monografia para Harvard, e a reconstrução do Sul, no pós-guerra. Foi um dos educadores mais respeitados do seu tempo, tendo alcançado reconhecimento internacional. Orador eloqüente, capaz de angariar as simpatias das multidões, articulador político, poeta e pensador, manteve por toda a vida a crença de que a absorção do povo negro na nação americana, tornaria-a definitivamente uma das mais poderosas do mundo.
W.E.Dubois, nasceu em uma pequena vila em Massachussets, no ano de 1868. Estudou na Fisk University, indo terminar sua graduação em Harvard, tendo sido o primeiro afro-americano a receber o título de PHD da respeitada universidade francesa. Tornou-se professor da Atlanta University em 1897, e em 1903 escreveu “As Almas da Gente Negra”, sua principal obra e um dos mais importantes livros já escritos sobre a realidade do negro na América. “Souls of Black Folks”, conduz o leitor a um mergulho profundo na psicologia de um povo, cuja própria personalidade encontrava-se cingida pelo choque entre a sua auto-percepção e a negação imposta pela escravidão e o supremacismo branco. História, sociologia, cultura, educação, política, cada um dos capítulos que compõem o livro, apresentam uma abordagem acadêmica e documental das facetas da experiência afro nos Estados Unidos, baseada principalmente, no entanto, na sua vivência enquanto educador. Analisa as políticas utilizadas para a reconstrução sulista desde o início da Guerra Civil, criticando ferrenhamente a política de acomodação e subalternidade de Booker T. Washington, ao mesmo tempo em que, no livro, expõe as premissas do seu projeto para o negro e sua inserção.
Como líder político, Dubois organizou o 1º Congresso Panafricanista Internacional em 1900, e em 1905 foi um dos fundadores do “Niagara Movement”, que mais tarde daria origem ao NAACP, um dos principais grupos representantes da comunidade negra americana durante todo o séc XX e até os dias de hoje. Depois de várias décadas de militância, Dubois mudou-se para o Gana, na áfrica, onde pretendia finalizar a sua obra magna, uma enciclopédia sobre a história da África. Dubois faleceu sobre o solo africano em 1963, no mesmo dia em que 250.000 pessoas marchavam sobre Washington D.C., com Martim Luther King JR., durante a luta por direitos civis.
W.E.Dubois, desejou abolir legalmente a linha racial enquanto determinante sócio-econômico nos Estados Unidos da América, e acreditava ser dever do próprio estado americano, criar os meios para que os afro-descendentes fossem integrados à sociedade sem nenhuma distinção ou estigma, a partir de políticas públicas com esse fim, baseando sua luta em três pontos sobre os quais era irredutível:o direito de voto, a igualdade civil e o direito de educação superior de acordo com as capacidades dos indivíduos. Discordou publicamente do posicionamento conciliador de Booker T. Washington, em propor uma educação industrial para os negros e em manter intacta a estrutura racista da sociedade do sul8. Segundo Dubois, essa postura condenaria o seu povo a uma eterna condição de inferioridade civil e alienação política, dando na mão dos brancos o papel de condutores dos seus destinos e responsáveis por tomarem decisões em seu lugar. Seu sonho era ver o negro integrado como legítimo cidadão americano, e o caminho através do qual vislumbrava esse objetivo, era a luta por poder político pelas vias democráticas da representação eletiva, do voto e do direito de legislar. Os jovens negros deveriam ser preparados para uma educação superior, para que pudessem disputar em pé de igualdade os postos governamentais e cargos de proeminência no cenário político nacional. Ainda em “As Almas da Gente Negra”, Dubois expõe sua teoria batizada de “Talented Tenth”, segundo a qual os povos em geral, possuem um décimo entre os seus indivíduos, que pelo seu talento nato, são capazes, a partir das condições apropriadas, de conduzir positivamente os seus demais concidadãos. Contextualizando, Dubois advoga que se a décima parte talentosa do povo negro pudesse ser plenamente preparada através da mais refinada educação erudita, nas mais variadas áreas do conhecimento humano, seria o suficiente para que, de volta à comunidade, guiassem todos os outros homens e mulheres negro(a)s pelos caminhos do conhecimento e da “civilização”, tornando-os aptos para conviver com plenitude em um regime democrático, somando as suas potencialidades `as dos demais povos que compunham a nação.
Lutador abnegado durante toda a sua vida, podemos entender, no entanto, um certo teor de decepção quanto à “democracia americana”, contido na sua opção de alinhar-se, já em idade avançada, às fileiras do Partido Comunista dos Estados Unidos. Do mesmo modo, o auto-exílio na terra dos seus antepassados, aonde veio a passar os últimos anos da sua vida, não deixam de representar a confissão de um homem consciente de ter cumprido o seu papel em uma batalha árdua e exaustiva, digno merecedor da paz e do descanso de uma terra maternal, a Gana Independente governada por Kwame N´Krumah.
W.E. Dubois, como veremos adiante, homem proeminente no cenário político americano, possuiu também, obviamente, sua cota de críticos e opositores. No nosso projeto de estudo, Dubois está situado em uma posição chave, posto que sua vida e obra se interrelacionam conflituosamente, tanto com as de Booker T., quanto, posteriormente, com a de Marcus Mosiah Garvey, e é justamente esse tríplice conflito que vai nos proporcionar o entendimento dialético das três obras visibilizadas em seus diversos aspectos. No entanto, independente de qualquer novo ângulo de análise que o explicitamento dessas discordâncias possa nos conduzir, encontraremos as marcas de um homem brilhante e devotado ao ideal de progresso do seu povo, inevitavelmente presente em qualquer trabalho ou estudo que se arvore em focalizar os mais brilhantes representantes do povo negro no Séc XX.
Marcus Garvey
Marcus Mosiah Garvey Jr., nasceu em St. Ann Bay, Jamaica, em 17 de Agosto de 1887. Seu pai era um Mestre marceneiro que apesar de não possuir educação formal, possuía uma ampla biblioteca o que lhe proporcionou o prematuro contato com as letras. Garvey estudou na Escola Anglicana de Gramática, ainda em St Ann Bay, graduando-se também no Ginásio da Igreja da Inglaterra. Aos catorze anos, a instabilidade financeira de sua família obrigou-o a deixar a escola e tornar-se aprendiz das artes gráficas com seu avô, Mr. Burrowes. Nesse período Garvey pode utilizar-se da grande biblioteca do avô, alem de adquirir os conhecimentos jornalísticos que posteriormente seriam necessários para a preparação de jornais e revistas.
Aos vinte anos Garvey já se tornara mestre gráfico, mas o seu envolvimento com as greves por melhores salários durante a crise que assolou a Jamaica na primeira década do séc XX, custou-lhe o emprego e a carreira na Benjamim Company, em Kingston. De todo modo, esse momento, marca o início do reconhecimento de Marcus enquanto líder para os trabalhadores de descendência africana, e através da fundação de dois jornais o “Garvey’s Watchman” ( Observatório de Garvey) e o “ Our Own” ( Nosso Mesmo), consegue fundos para devotar todo o seu tempo para o trabalho editorial e a organização da população negra da Jamaica. Durante os anos da década de 10, Garvey viaja para a Costa Rica, Panamá, Nicarágua, Honduras, Colômbia e Venezuela, trabalhando como peão em fazendas de banana e cana de açúcar. Nessas viagens, testemunha a realidade de exploração, humilhação e miséria em que se encontravam os trabalhadores negros e o povo negro em geral em todo o Caribe e parte norte da América do Sul. Alem disso, privou contato com diversos homens que haviam sido soldados nos exércitos europeus durante as guerras colonialistas, após a Conferência de Berlin em 1884, quando uma Europa faminta por matérias primas africanas, dividiu o controle do continente negro entre Inglaterra, Alemanha, França, Itália, Bélgica, Espanha e Portugal. Esses homens haviam sido recrutados pelos regimentos das Índias Ocidentais e utilizados para expulsar as populações nativas e roubar os seus territórios, e puderam relatar a Garvey a situação degradante vivenciada em África.
Em 1914, Garvey Funda a Universal Negro Improvement Association , UNIA ( Associação Universal para o Progresso Negro). Entidade que seria por toda a sua vida o carro chefe de suas atividades enquanto liderança negra. Durante os anos de 1912 e 1913, Garvey havia viajado para a Inglaterra, e durante essa estadia pôde aprofundar os seus conhecimentos sobre história da África Antiga, recursos naturais, política internacional e colonialismo, mantendo uma estreita relação com o intelectual egípcio Duse Mohamed Ali. Em 1915, a convite de Booker T. Washington, viaja para os Estados Unidos com o intuito de conhecer de perto o Instituto Tuskgee, fundado por Booker T., cujo modelo Garvey pensava em adaptar para a Jamaica. No entanto, Washington viria a falecer em Novembro de 1915 e Garvey somente consegue chegar aos Estados Unidos em Marco de 1916. Após alguns meses de contato, Garvey decepciona-se com as lideranças negras norte-americanas e começa a viajar por todos os estados, palestrando, discursando e fundando sedes da UNIA. Essas sedes, chamadas de “salas da Liberdade”, eram espaços pra encontros dominicais, aulas, reuniões políticas, shows, festas, distribuição de alimentos e caridade aos sem teto. Em 1919, a Unia funda a Black Star Line Company, uma frota de navios de transporte coletivo interamericano, em resposta às leis de segregação e aos maus tratos nos navios convencionais. Em 1920, organiza a convenção Internacional de Pessoas Negras no Mundo, realizada em Nova York, com o tema “África Para os Africanos”, contando com a participação de milhares de representantes do povo negro.
Entre outras coisas, a UNIA foi responsável pela fundação da “Corporação de Empresas Negras” em 1919, com o intuito de criar a semente de um capitalismo negro e garantir que empresas negras pudessem suprir todas as necessidades usuais da comunidade, como lanchonetes, lavanderias, rouparias, publicações, etc. A corporação foi fundadora da primeira fábrica de bonecas negras que se tem noticia. Em 1920, o conselho executivo da UNIA, debruçou-se também sobre a idéia de um projeto de repatriação de negros africanos para a África, projeto que não foi à frente devido a pressão exercida pelo estado americano sobre o governo da Libéria, no sentido de impedir sua realização.
Obviamente, o projeto da UNIA e de Garvey, em sua essência, o soerguimento da raça negra enquanto poder político e econômico autônomo, sobre as bases de uma unidade cultural etnocêntrica e um discurso de nacionalismo africano, tornara-se uma pedra no sapato, não somente do governo dos Estados Unidos9, mas também das próprias lideranças negras americanas democratas e mesmo de esquerda, comprometidas com o discurso de integração e acomodação da população negra enquanto cidadãos americanos. Ainda mais se considerarmos que por volta de 1926, a UNIA era representada por 725 sedes nos Estados Unidos e por 271 outras através do mundo, incluindo algumas em solo africano totalizando mais que sete milhões de afiliados, que gerenciavam um patrimônio de vários milhares de dólares.
Foram justamente essas lideranças negras norte-americanas, principais responsáveis pela incansável campanha conduzida contra Garvey e UNIA, que reforçada pelo Governo Federal, culminaria com a prisão de Marcus Garvey em 1925 sob a acusação de fraude postal, e sua deportação em 1927, após dois anos e nove meses de cárcere. Garvey continuou, no entanto, com o seu trabalho na Jamaica e em outros países, até que um derrame cerebral, paralisou todo o lado direito de seu corpo em 1940. Garvey veio a falecer um mês depois, no dia 10 de junho de 1940.
“ Perguntei: Onde esta o governante negro, onde esta o seu rei e o seu reino?” “ O seu presidente, seu pais e seu embaixador?” “ Sua marinha, seu exercito, seu líder?” “ Não pude achá-los e então eu declarei: Eu ajudarei a fazê-lo!!”10
Marcus Mosiah Garvey, não tinha nada a ver com o sonho americano, e sua chegada aos Estados Unidos teve o efeito atordoante de um terremoto. Muito desse impacto se deve diretamente a força da sua personalidade, era um homem de ação, imbuído na missão de fazer o seu tempo. Um preto forte, retinto, acostumado a assumir o papel de liderança desde os catorze anos de idade, quando coordenava o trabalho de dezenas de homens adultos nas oficinas gráficas do Sr Burrowes. Garvey estava impressionado com o que vira em suas viagens pelo Caribe e América do Sul, e mais ainda com os relatos que ouvira durante sua estadia na Inglaterra, sobre a realidade do massacre colonial em África. Havia um sentimento de urgência em sua mente, responsável pelo contato com Booker T. Washington, cujo livro “Up From Slavery” inspirara em Garvey o desejo de implementar na Jamaica algo semelhante ao Tuskgee Institute. Foi o próprio Washington quem o convidou e financiou para que visitasse Tuskgee, mas quando Garvey desembarca nos Estados Unidos em março de 1916, já faziam vários meses que Washington falecera no inverno de 1915.
Marcus, no que tange ao nosso estudo, não representava nem a postura conciliadora de Booker T. Washington sulista, e nem o negro democrata integracionista encarnado por W. E. Dubois e o NAACP. Era fundamentalmente um homem negro do hemisfério sul, posteriormente compreendido como 3º mundo, região sobre a qual os Estados Unidos já ensaiavam a sua política de hegemonia imperialista, tendo se apossado militarmente da região onde fora construído o Canal do Panamá, em 1913, um ano após intervir na Nicarágua, em 1912. Os Estados Unidos ainda ocuparam o Haiti em 1915 e Santo Domingo em 1916, e, além disso, o exército americano apoiara as forças sul-africanas, no controle das áreas do sudoeste do continente.
Garvey não alimentava ilusões de que tal projeto político pudesse incluir em suas entranhas, vias para que o povo negro alcançasse o status de cidadania ou uma posição de isonomia social, a partir da qual pudesse desenvolver livremente o seu potencial, com direito à condução do seu próprio destino. Para ele, o homem branco nunca abriria mão de sua posição de privilégio. Acreditava que o povo negro deveria optar por construir uma relação de respeito através da conquista de poder, e de um poder direcionado, não para o direito de tornar-se branco dos raciais-democratas, mas para o direito de construir suas próprias estruturas, suas próprias nações, se necessário fosse, devendo-se ressaltar ser a idéia de retorno à África uma das temáticas recorrentes do discurso de Garvey, o que não o afastou, no entanto do exercício da construção do poder negro, onde quer que estivesse11. Para isso seria necessária, a estruturação de um movimento de capitalismo negro muito proximamente similar às organizações financeiras/comerciais que imperavam entre as comunidades italianas, irlandesas, alemães e judias, entre outras, e que iriam se tornar o modelo das relações raciais na América. Esse modelo estabelece um determinante racial para as relações entre investimento-produção-comércio-emprego-consumo, que possibilita a circulação de renda e lucro dentro da própria comunidade, apta para posteriormente reinvestir esse lucro, gerando melhorias coletivas, além de incrementar a unidade cultural e os laços de solidariedade entre determinado povo.
A poderosa oratória do líder jamaicano atraía aos milhares os negros americanos que fugiam em massa da nova onda racista que assolava o Sul, bem como os negros do Norte, cada vez mais desesperados de que conseguiriam conquistar desenvolvimento através de políticas parlamentares, em um regime marcado pela corrupção e pelo supremacismo branco. Todos estavam eletrizados com o discurso do homem que bradava para as multidões: “O novo negro não tem medo!, “África para os Africanos!”, Um povo, uma missão, um destino!”, “Erga sua poderosa raça!” Garvey foi um dos principais precursores e divulgadores do nacionalismo negro e do panafricanismo, doutrina que pregava a união de todo o povo negro, em África e na diáspora, em prol do resgate de sua herança histórica e cultural, para além de quaisquer fronteiras ou diferenças lingüísticas.
Incluía o povo negro do mundo em um projeto bem maior que a simples reivindicação de melhorias sociais. Para Garvey era evidente a necessidade de que o controle político econômico e militar do continente africano estivesse nas mãos dos próprios africanos para que se operasse a reconstrução do continente enquanto lar e referência do seu povo, de modo a que seus filhos não mais necessitassem mendigar aceitação na sociedade branca, mas que pudessem relacionar-se em pé de igualdade, respeitados em suas diferenças, com qualquer outro povo sem que a sua integridade fosse ameaçada ou questionada12. Garvey representou o sonho e as frustrações da classe trabalhadora negra em desenvolvimento e suas palavras e ações permanecem vivas e poderosas até os dias atuais, tendo influenciado toda uma geração de lideranças negras, como Malcom X, os Panteras Negras, Abdias do Nascimento, e mesmo os principais líderes dos movimentos independentistas que eclodiram em África desde meados dos anos 50, como Kwame N’Krumah, Sekou Touré, Patrick Lumumba, Julius Nyerere, Ahmed Ben Bella, Kallel Abdel Nasser e Hailé Selassieh, sobre o qual Marcus Garvey profetizou sua coroação em 1925.
Booker T. Washington- W.E. Dubois – Marcus Garvey: Três Paradigmas negros em conflito.
O primeiro dos homens sobre os quais lançamos o nosso interesse, enquanto líder negro capaz de elaborar uma proposição sistemática original para (tentar)resolver o problema do povo negro recém saído da escravidão americana, Booker T. Washington, homem negro sulista, desenvolveu suas perspectivas tendo muito influído sobre elas, a particular situação de opressão e pressão racial historicamente solidificadas nessa região e polarizadas a partir de um processo de “democratização forçada” conduzida pelas tropas yankees durante o período da reconstrução. É notável, em toda a sua obra, a preocupação em propor um modelo de inclusão do povo negro na sociedade americana, buscando ao mesmo tempo, não ferir o tecido das relações raciais ali estabelecidas durante os séculos escravistas. Partindo do pressuposto de que a preguiça e a degradação moral, somados à pobreza e à falta de capacitação técnica eram responsáveis pelo atraso social e empecilho para o desenvolvimento da comunidade negra13, Washington vai questionar (e negar) a importância das lutas por direitos civis, de voto e de educação superior para uma comunidade que não teria preparo para utilizá-los em proveito próprio. Através de uma rígida postura moral, da capacitação técnica industrial e do trabalho, o negro americano forçaria o branco,segundo Washington, a uma reavaliação de suas concepções negativas, o que acarretaria um novo processo na história das relações raciais. Booker T. Washington estabelece um paradigma de integração do negro na América que retira do branco e joga sobre as costas negras, toda a responsabilidade da condução desse processo, abrindo o precedente para que quaisquer falhas posteriormente existentes em suas relações, pudessem ser justificadas mais pela imperícia do povo dominado do que às pressões do dominador, ou ao próprio desequilíbrio imanente à essa relação. Se em um determinado momento, o seu projeto de cidadania subordinada caiu como uma luva para o sistema branco sulista, vimos que posteriormente a sua proposição por autonomia econômica, mesmo que desprovida de qualquer discurso de conteúdo racial, tornou-se um problema para o supremacismo etnocêntrico e foi facilmente paralisado a partir da dependência estrutural do seu projeto.
Dubois, em contrapartida, foi um homem clássico (“Um grego”, para utilizar a expressão de Joaquim Nabuco em sua aclamação póstuma de Machado de Assis14) Como vimos, sua formação acadêmica, que incluía o título de Phd em Harvard, era um privilégio de difícil acesso mesmo para a maioria da população branca. A crítica ferrenha direcionada contra Booker T. e posteriormente contra Marcus Garvey, demonstra fundamentalmente a solidez de sua crença nos valores presentes no discurso burguês democrata em voga no norte dos Estados Unidos, bem como nos princípios humanistas e progressistas legados de sua formação acadêmica positivista.Tanto a cidadania subordinada proposta por Washington quanto o desenvolvimento em separado fundamentado na afirmação étnica defendido por Garvey, representavam retrocessos no que se refere à legislação e feriam os princípios igualitários presentes na constituição americana que o permitiam vislumbrar uma sociedade na qual a linha de cor fosse definitivamente superada através da ação política das lideranças negras e de seus aliados brancos.
Nesse sentido, podemos compreender tanto em algumas colocações de Garvey: “Os maiores homens e mulheres do mundo foram pessoas que se auto-educaram fora da Universidade, com todo o conhecimento que a Universidade oferece, e você tem a oportunidade de fazer a mesma coisa que um estudante universitário faz: Ler e estudar!”15 como de Washington: “quando eu era apenas um garoto, eu vi um jovem homem negro que tinha gasto vários anos na escola, sentado em um barraco ordinário no Sul, estudando uma gramática francesa. Notei a pobreza, a desarrumação presentes no barraco, não obstante o seu conhecimento em francês e outros assuntos acadêmicos.”16um certo grau de desconfiança e mesmo de desdém, quanto às possibilidades de que a educação acadêmica pudesse oferecer à comunidade negra, vias para a superação de seus problemas imediatos. Há uma rusga classista que no entanto não se interpõe ao conteúdo racial e político da discussão. Dubois não poderia admitir contra os seus princípios, a atitude conciliadora do discurso de Washington: “Queremos sufrágio para todos os homens, e queremos agora! Nós somos Homens, queremos ser tratados como homens e nós venceremos!” como afirmou no manifesto do Niagara Movement, predecessor do NAACP, dez anos depois do discurso de Booker T. Washington desaprovando a luta dos negros por igualdade de direitos civis. De toda maneira, tanto Dubois quanto Marcus Garvey, vão afirmar em determinados momentos de suas obras a importância de Washington e do seu trabalho no Tuskgee Institute valendo lembrar, que todo um capítulo de “As Almas da Gente Negra” é dedicado a analisar e combater as proposições de Washington.
Em 1915, porém, o homem de Atlanta falecera, alguns anos depois, a luta que se estabeleceria entre Garvey e Dubois não estaria sujeita a reconciliações póstumas e o caráter racial de suas posições assim o determinaria. Dubois, assim como Washington, acreditava na necessidade de um processo de profilaxia social que capacitasse para a inclusão a comunidade negra na sociedade americana e que esse processo deveria ser conduzido pelos “dez por cento mais talentosos” representantes da raça, que preparados por uma refinada educação acadêmica, atuariam como certa vanguarda educacional, cultural e política junto aos seus aliados brancos, no sentido de resgatar os outros noventa por cento da população negra, internados na degradação da ignorância e da marginalidade social. Para Garvey, pelo contrário, havia a necessidade de afirmar a origem da situação de degradação em que se encontrava o povo negro no mundo, no próprio processo colonial escravista, responsabilizando o branco por esse quadro17 e determinando, através do resgate da história ancestral particular do negro, a necessidade de uma ação própria contra as representações vigentes desse processo, baseando-se em uma luta autônoma por auto-determinação liderada e coordenada pelo próprio negro.
Nesse contexto, Garvey expressaria a sua decepção relativa a seu primeiro contato com as lideranças negras norte-americanas: “Eu imediatamente visitei alguns assim chamados ‘líderes negros’, apenas pra descobrir, após um estudo próximo deles, que eles não tinham nenhum programa, mas eram meros oportunistas que viviam de sua liderança, enquanto as pessoas pobres estavam indo para o fosso”18 .Desgostaria-se do mesmo modo, com o discurso moderado do NAACP, inquietando-se quanto à neutralidade da postura racial integracionista assumida pela organização, que segundo Garvey, era conduzida na direção do embranquecimento cultural e psicológico, que conteria mesmo uma pigmentocracia na qual os negros mestiços de pele mais clara seriam privilegiados e favorecidos no que se refere a ocupação de cargos de comando. Tal idealização do embranquecimento, já havia sido uma das principais fontes de atrito para Garvey na Jamaica, e encontrá-la repetida na América serviu-lhe para remarcar sua ruptuara com a social democracia negra, como para reforçar sua opção pelo nacionalismo africano.
O sucesso estrondoso de suas pregações e da UNIA entre a massa afro-americana, iria ser base para uma relação de conflito permanente entre Garvey e as demais organizações sócio-políticas negras ou voltadas para o público negro, como os grupos socialistas, sociais-democratas, o NAACP e posteriormente o incipiente Partido Comunista Americano e as Igrejas Evangélicas, que tinham em comum, a insistência na tentativa de cooptação de membros da UNIA para suas fileiras. A UNIA atingiu proporções espantosas, mantendo até hoje a marca de ter sido a mais numerosa organização negra da história mundial, chegando a mais de oito milhões de membros espalhados por todo o mundo. Esse crescimento, obviamente foi acompanhado por movimentos proporcionais de oposição, que culminaram em suas estratégias, no indiciamento de Marcus Garvey em 1925 sob a acusação de fraude postal e com a campanha pública “Garvey deve partir!” encampada principalmente por eminentes representantes do NAACP. Segundo a Senhora Garvey, esposa e principal mantenedora do legado de Marcus Garvey, Dubois teria sido o mais empedernido oponente de Garvey, tomando para si, a missão de livrar a América dos perigos do extremismo racial. Em 1927, Garvey era deportado, como já vimos, após mais que dois anos de cárcere. Por ironia da história, como conclusão da presente exposição de paradigmas, o Professor Willian Eduard Dubois, iria passar os seus últimos anos e dias de vida no Gana independente liderado pelo assumidamente garveísta Kwame N’kruhmah.
Considerações Finais
Independentemente dos oportunos alertas pós-modernistas contra a debilidade da crença em uma história positivista na qual os fatos desencadeiam-se mecanicamente em uma relação progressiva e conseqüente na direção de um ideal evolutivo, não poderíamos privar-nos de expressar a nossa compreensão de que a história, se não é uma simplificada “esteira de sucessões”, é um campo de movimento contínuo, no qual o choque dialético de suas contradições intestinas vai determinar processualmente as feições assumidas por uma realidade histórico-temporal específica. Desse modo, a análise historiográfica das micro-relações que se desenrolam através das compartimentações de um todo, crescem em importância se considerarmos a permanência de uma implicação de influências e confluências entre o todo e os seus compartimentos, e isso é óbvio. Por esse motivo, nos detivemos em examinar, no presente trabalho, a gênese histórica das modernas relações políticas e raciais e suas principais vertentes ideológicas nos Estados Unidos da América, durante as últimas décadas do séc XIX e primeiras décadas do século XX, gênese essa cujas expressões iriam marcar e referendar todo o desenvolvimento dessas relações através do século XX até os dias atuais.
Se entendemos a importância de meramente apresentar aos interessados, informações sobre um determinado cenário histórico, que por razões ideológicas nos são deliberadamente indisponibilizadas, a intenção que nos move, é a de oferecer subsídios ao leitor brasileiro, para uma discussão política e racial que leve em consideração experiências anteriores e referenciais, no sentido de minimizar o atraso de mais de um século dessa discussão colocada no Brasil, pelo menos a nível oficial, aberto e bilateral. A propensão de tratar como nova a matéria “relações raciais e estado”, resume não somente um profundo desrespeito às mobilizações históricas do povo negro no Brasil e no mundo como também mascara cinicamente a responsabilidade histórica e deliberadamente consciente das elites brasileiras geradoras e mantenedoras dessa realidade negativa. Faz-se portanto, necessário, o conhecimento objetivo das experiências históricas nacionais e internacionais relativas às relações raciais que possam nos instrumentalizar contra uma discussão superficial e mistificadora.
No Caso norte-americano, veremos as tensões referentes aos axiomas paradigmáticos raciais preponderantes na primeira metade do séc XX, estenderem-se da mesma maneira através de toda a segunda metade (ainda que com outros personagens), até o momento em que a ação avassaladora das forças repressivas, somadas ao crescimento econômico e à unidade nacional empurrada através da paranóia contra supostos inimigos externos conseguem pulverizar os movimentos negros organizados diminuindo-lhes a pujança e o apelo popular de suas mobilizações ( com exceção talvez apenas da Nação do Islam e o seu Ministro Louis Farrakhan). Quanto a isso podemos afirmar que o governo americano, em aspectos gerais vai assumir, como paradigma oficial para as relações raciais o modelo de Booker T. Washington, traduzido como uma “Concessão” de cidadania para o negro através de medidas paternalistas e controladas, nomeadamente a abertura de escolas e universidades específicas voltadas majoritariamente para a formação técnica e industrial, a melhoria nos serviços públicos e de moradia ( ínfimas, se contextualizadas nos padrões americanos), algum acesso de crédito e um discurso permanente pautado na paciência e na resignação confiante em dias melhores. Por outro lado, a movimentação conduzida pelo reverendo Martin Luther King Jr. De caráter integracionista e legalista, no qual a não violência e a crença na mudança através da ação política democrática são carros chefes do seu discurso, encaixa-se perfeitamente no modelo anteriormente defendido por Dubois, enquanto que o radicalismo fundamentalista de Malcom X e dos Panteras Negras é afilhado declarado de Marcus Mosiah Garvey e UNIA.
Não obstante as permanências facilmente notáveis das três correntes de pensamento estudadas, é indispensável a compreensão de que tratam-se de paradigmas que não conseguiram alcançar (e manter) posições hegemônicas em suas sociedades, e menos ainda, servirem como motores propulsores para transformações estruturais profundas quanto às determinações raciais da sociedade norte-americana, ainda que tenham podido revolver o solo apodrecido sobre o qual tais determinações se assentavam, ali deixando sementes, preparando terreno para o crescimento de eventuais revoluções.
Assim posto, temos o privilégio de dispor de um quadro para análise que nos oferece projetos e métodos, aplicações, erros e acertos testados e avalizados (ou não) na prática, homenageados e proscritos estejam os heróis e traidores dessa novela real que é a história. Ressaltando o óbvio, não podemos deixar de receitar àqueles que se interessem em pensar as modernas relações raciais brasileiras utilizando como referência a experiência afro-americana, o cuidado no processo de contextualização, com as especificidades de cada uma dessas realidades, separadas não somente por mais uma América, mas por diversas características próprias e diferenciadas. A permanência cultural africana no Brasil, a proporção demográfica e a realidade econômica,são alguns desses pontos diferenciais, cuja compreensão me parecem imprescindível. Além disso, devemos reforçar com o Sr. Abdias do Nascimento, o fato indiscutível de que a experiência diaspórica do negro brasileiro, traz em si, elementos ricos e suficientes que lhe servem de materiais e referência para o seu auto-entendimento, bem como para a elaboração teórica de um eventual processo de transformação social, assunto no qual o referido autor, entre outros guerreiros, é virtuosamente competente. Nesse sentido, qualquer outras referências apenas somam-se às pré-existentes de modo a referendar a unidade além-fronteiras do vínculo latente entre a humanidade negra e seus descendentes em África e na diáspora.
Esperamos que com esse trabalho atinjamos o nosso objetivo de proporcionar aos irmãos negros o acesso ao conhecimento de conhecimento sobre nós mesmos, meta até a qual, somos permanentemente desviados, no sentido de continuarmos tutelados pelos poderes euro-brasileiros constituídos bem como por alguns “assim chamados líderes negros”, para os quais a nossa dependência intelectual, econômica, organizacional e psicológica é conveniente.
Agradecemos aos Orixás e aos nossos antepassados por esse Axé latente, aos guerreiros, às mães e aos meninos.
Sou Eu, Sou Eu...!
Bibliografia
Editorial do Jornal Chattanooga News, 5 de Agosto de 1927
Dubois, W.E.;”As Almas da Gente Negra”RJ, Lacerda Editores, 1999
FBI MEMO; John Edgar Hoover to Special agent Ridgel, 11 de Outubro de 1919
UCLA “The Marcus Garvey and UNIA Papers Project”
Washington, Booker T. “The Awakening Of The Negro” Publicado originalmente em “The Atlantic Monthly” Setembro 1896
Rydel, Roy “About W.E. Dubois: Reviewing the Review”, in “People’s Weekly World”, 9 de novembro de 1996
Diop, Cheikh Anta ; “Origem dos Antigos Egípcios”em “A África Antiga”Coordenado por G Mokhtar; São Paulo: Ática( Paris); Unesco 1983
Nascimento, Abdias do ; “O Quilombismo” Ed. Vozes-Petrópolis 1980
Franklin, John Hope; “Raça e História-Ensaios Selecionados, 1938-1988” Ed Rocco, RJ, 1999
Lowy, Michael, “A Teoria da Revolução no Jovem Marx” Ed Vozes, Petróplis 2002
Gramsci, Antônio; “A Formação dos Intelectuais” Ed Achiamé, RJ, 2000
Marx: Sociologia, Organização de Octavio Ianni e Florestan Fernandes, Ed Ática 1979
Black Diáspora – A Global Black magazine, n.o 3 “110 Years of Marcus Garvey” Jamaica, 1987
Caribe, Vol IX, n.o 1, Special Commemorative Issue “Marcus Garvey, Jamaica 1987
Capoeira Angola, do ostracismo à mundialização ( 1980-2009) Monografia
A CAPOEIRA ANGOLA: DO OSTRACISMO Á MUNDIALIZAÇÃO – CONFORMAÇÕES DE UM PROCESSO (1980 -2006)
Salvador/2007
Fábio Oliveira Nascimento
A CAPOEIRA ANGOLA: DO OSTRACISMO Á MUNDIALIZAÇÃO – CONFORMAÇÕES DE UM PROCESSO (1980 -2006)
Trabalho de graduação feito por Fábio Oliveira Nascimento, apresentado ao Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – UcSal, sob orientação do professor Dr. Vilson Caetano de Souza Júnior, com o objetivo de obter o título de Bacharel e Licenciado em História.
Salvador/2007
Agradecimentos
Iê!
Aos Orixás, começo, meio e fim...
Á Yá Marlene Rodrigues, minha Mãe
Ao Mestre Jogo de Dentro, meu Mestre
À minha família pequena, Á minha família grande
Ao Núcleo de Estudantes Negr@s da UcSal – Makota Valdina
Ao Professor Vílson Caetano Júnior
Aos Colaboradores, Mestre Moraes Trindade, Mestre Valmir Damasceno, Mestre Jogo de Dentro, Frede Abreu
A Miles Davis, Sarah Vaughan, Billie Holyday, Fela Kuti, Jorge Aragão, Céu, Racionais, Nina Simone e Bob Marley, companheiros das horas de escrita...
Sumário
Introdução................................................................................ 05
Capítulo I................................................................................. 08
Capítulo II................................................................................ 13
Capítulo III............................................................................... 17
Capítulo IV............................................................................... 22
Capítulo V................................................................................ 24
Conclusão................................................................................. 36
Fontes........................................................................................ 39
Bibliografia............................................................................... 40
Introdução
No ano de 2007, os capoeiristas ( de ambos os estilos), se confrontaram novamente, com a discussão relativa ao interesse exposto por algumas correntes políticas, acadêmicas e mesmo de capoeiristas, em submeter o ensino da Capoeira (em conjunto com outras expressões físicas e culturais, como o Tai Chi Chuan, a Ioga, o Pilates, entre outros) à direção e fiscalização dos Conselhos Regionais e Federais de Educação Física. Curiosamente, uma expressão cultural historicamente discriminada e marginalizada, se torna objeto de interesse e disputa conduzida justamente pelas camadas sociais que anteriormente a discriminaram. Tratando-se de Capoeira Angola, esse interesse se torna ainda mais estranho, por esta ser uma modalidade de prática cultural, que não se aproximou historicamente, do desporto ou da atividade técnica esportiva, estando sempre vinculada à manifestação das práticas populares, vadiação, no termo usado pelos próprios capoeiristas.
È no âmbito da discussão acima referida, que surge o interesse em investigar, de que forma, uma expressão/manifestação cultural tida como retrógrada e marginal, vem a se tornar prática positiva plenamente aceita e disseminada pelos cinco continentes do planeta. Em se tratando da Capoeira, essa investigação, que não traz em si nenhuma novidade temática, toma, no entanto, feições diferenciadas, pelo fato dela, a Capoeira, já ter passado por um processo anterior de diálogo, transformação, adequação e filtragem para a sua aceitação/positivação social, tendo sido a Capoeira Angola justamente, o componente descartado por esse processo de filtragem, o que não pôde anteriormente ser “modernizado”, nem traduzido para uma linguagem “civilizada”, que permitisse a sua fruição por parte dos setores médios e altos da nossa sociedade.
A percepção da importância de uma abordagem social para o estudo da cultura, para que se possa alcançar uma compreensão profunda das sociedades, percebidas na dinâmica de suas contradições e dos diversos setores que lhe fazem parte, é fundamental para que se perceba a importância de que existam no Brasil estudos centrados na história da Capoeira, entendida enquanto expressão cultural socialmente contextualizada, que compreende em seus modos de produção e reprodução, amostras das construções sociais, históricas e psicológicas utilizadas pelos setores sociais nela envolvidos para agir e reagir dentro de um sistema social também dinâmico, estabelecendo práticas, percepções, discursos, representações e relações, que podem ser apreendidas enquanto vieses do processo histórico brasileiro, marcadamente, no século XX.
Nesse sentido, a Capoeira, pelas características de sua história, se estabelece como plano ideal para a percepção de formas utilizadas pelos setores subalternos da sociedade brasileira para se situar e atuar no cenário opressivo da sociedade brasileira. Mais ainda, quando essa prática outrora marginalizada, ascende ao patamar de prática cultural socialmente aceita e incentivada e, mais ainda, quando é justamente o seu setor mais tradicionalista e historicamente relacionado com as camadas mais pobres dessa sociedade, que vai ser alçado ao grau de referência socialmente positiva, e ser personagem de um processo de disseminação internacional, comercialmente e institucionalmente respaldado.
Estudar o processo de mundialização da Capoeira Angola, desde o ostracismo a que esteve relegado nos anos oitenta, até a sua atual fase de disseminação mundial e institucionalização, nos ajuda a perceber as modificações internas experienciadas pelos Capoeiristas Angoleiros enquanto grupo específico, em diálogo com a sociedade brasileira em geral, percebendo também aí, as mudanças de percepção e estrutura que possibilitaram (ou que foram forçadas) pra que essa transformação ocorresse, o que nos permite, desse modo ampliar a nossa percepção dos processos históricos da sociedade brasileira, enquanto cenário de conflitos e contradições, em constante movimento e adaptação.
Para a construção deste trabalho, dialogamos com a antropologia, utilizando autores como Roberto DaMatta e Waldeloir Rego, entre outros, buscando enriquecê-lo com uma disciplina que em muito tem contribuído com a História, apresentando abordagens diferenciadas e abrangentes, nos proporcionando os frutos de uma interdisciplinaridade há muito presente na prática da História. Entretanto esta pesquisa tem como referência teórica, a História Social Inglesa, nominalmente, a partir das obras de Edward Thompson, em sua disposição para contar a história daqueles que a história oficial não está habituada a enfocar, sem perder nessa narrativa a ligação com os papeis políticos e sociais exercidos por esses sujeitos, contextualizados no corpo de uma sociedade em permanente conflito hegemônico.
Embora não tenhamos tido contato, durante a pesquisa, com teses, livros, ou trabalhos outros dedicados ao estudo específico da nossa temática (o processo recente de popularização mundial da Capoeira Angola), e isso nos tenha forçado a alongar um pouco as contextualizações e principalmente a análise e reprodução das entrevistas, tivemos relativa facilidade em sua produção devido à proximidade e vida de Mestres e pesquisadores que vivenciaram, atuaram e conduziram diretamente o processo aqui enfocado. Além disso, dispusemos de toda a boa vontade do Senhor Frederico Abreu, coordenador do Instituto Jair Moura, em Salvador (que é simplesmente o maior acervo mundial sobre capoeira, com mais de trinta mil documentos históricos), o que nos facilitou bastante a vida, posto que a pesquisa, desenvolvida durante todo o ano de 2007, teve este Instituto como sede
No primeiro capítulo deste trabalho, nos ocupamos em propor algumas reflexões em torno de conceitos básicos sobre a Capoeira, como origens e geografia, além de apresentar um breve histórico da Capoeira, desde o século XVII até 1930, com a criação da Capoeira Regional, que complementamos no segundo capítulo, com um histórico da Capoeira Angola, até os anos de 1980.
No terceiro capítulo, a análise cronológica, dá espaço para a contextualização da Capoeira, relacionando-a ao processo histórico e social brasileiro na qual esteve inserida enquanto fenômeno urbano, dando maior ênfase, ao período que vai desde 1930, até 1980, e que compreende a criação e ascensão da Capoeira Regional, e a decadência da Capoeira Angola.
No quarto capítulo, realizamos uma breve contextualização sócio-política da década de 1980, período de abertura política pós-militarismo, no qual a Capoeira de Angola inicia o seu processo de revitalização, como fenômeno bem característico desse período.
No quinto e último capítulo, procuramos a partir de depoimentos recolhidos para esse trabalho, com o pesquisador Frede Abreu, e com três Mestres de Capoeira diretamente envolvidos no processo estudado, examinar minuciosamente o caminho mesmo de revitalização da Angola, seu histórico, seus personagens, seus espaços cruciais, seus discursos, suas estratégias e suas contradições, de modo a possibilitar um quadro vívido deste processo, relacionando essas informações testemunhais, com as informações contextuais e históricas acumuladas no decorrer do trabalho.
De todo modo, temos consciência das limitações de um trabalho monográfico, e esperamos que o processo de revitalização da Capoeira Angola, possa vir a ser mais profunda e atentamente estudado, sendo que esperamos estar contribuindo com a nossa parte, ainda que somente apontando direções.
Capítulo I
Breve Histórico da Capoeira
Longa foi a epopéia da nobre arte da Capoeira para chegar aos dias atuais da forma que chegou. De crime previsto no Código Penal a prática pedagógica em escolas públicas. De vadiação de carroceiros e estivadores a malhação das filhas da elite, nas mais caras academias de ginástica. Por longos e tortuosos caminhos, a Capoeira conseguiu chegar ao Século XXI, como expressão cultural de importância social amplamente reconhecida, seja por seu profundo conteúdo simbólico, no que se refere à preservação do patrimônio cultural tradicional das populações descendentes de africanos no Brasil, seja pelo caráter multi e inter-disciplinar que envolve a sua prática.
Ainda que a Capoeira tenha a sua permanência e disseminação positiva, historicamente ligada à capacidade intestina da comunidade negra em preservar e manter as suas expressões culturais e valorativas, às custas de um permanente diálogo com a sociedade que a cerca (e em alguns momentos o termo “cerca”, é literal), é antiga a relação direta entre a Capoeira e os poderes públicos, sendo que os Editais de apoio financeiro federal para projetos de capoeira, bem como o reconhecimento de seus Mestres enquanto “ Mestres da Cultura Popular”, a partir da primeira década deste Século XXI, representam um marco histórico nessa relação, o que parece indicar um amadurecimento desta, a partir de uma conceituação mais inclusiva de cidadania no Brasil.1
Aspectos diversos do processo que levou a Capoeira desde os artigos do Código Penal Republicano, dos fins do Século XIX2, aos editais federais de financiamento, vêm sendo investigados de maneira eficiente por diversos pesquisadores, entre os quais, podemos citar o antropólogo Waldeloir Rego, o economista Frederico Abreu e historiadores como Carlos Eugênio Líbano Soares, Josivaldo Pires, Augusto Liberac, Adriana Dias, cada um com um enfoque determinado, sendo referenciais, não somente para este, mas para a quase totalidade de trabalhos acadêmicos escritos atualmente sobre a Capoeira.3
Mesmo que não haja unanimidade entre os autores quanto às origens da Capoeira, o que se deve tanto á escassez de registros, quanto á diversidade de interpretações acerca do assunto, podemos fixar alguns indicativos que nos servirão como bases para podermos nos ocupar sobre o século XX, no qual se desenrolou grande parte do enredo que nos interessa.
Primeiro, que a Capoeira é uma expressão cultural de origem negro-africana, embora haja discordância se é genuinamente africana ou afro-brasileira, nos inclinamos a afirmar com Soares, se tratar de um agrupamento de expressões marciais africanas, “que se teriam amalgamado em definitivo na terra americana” (SOARES, 2004, p. 16). Segundo que a partir do Século XVII, a Capoeira se desenvolve no contexto das cidades mais urbanizadas e de comércio mais desenvolvido, notadamente: Salvador, Rio de Janeiro, Recife e Belém, importantes cidades portuárias, bem como nas cidades do recôncavo baiano, então pólo do intenso processo produtivo/comercial do ciclo do açúcar e da distribuição de viveres para Salvador.(SOARES, 2004, p. 17)
Terceiro, que nesses espaços urbanos, a Capoeira adquire status de ameaça à ordem e à segurança públicas, na esteira das políticas governamentais de restrição e perseguição às práticas culturais afro-brasileiras, perseguição esta que, no caso específico da capoeira, se intensifica a partir da proclamação da República, quando a capoeira, a Capoeiragem e os capoeiristas, passam a estar criminalizados pelo Código Penal de 1890. Considerando que, o peso dessa perseguição se distribuiu de maneira diversa nas diferentes áreas citadas, percebemos que a Capoeira (sua existência em si) se choca com o discurso oficial progressista e positivista (e logo higienista e eugenista) da República Brasileira. (PIRES, 2005, p.121).
São brilhantes e abrangentes os trabalhos de Soares, relativos á Capoeira carioca no final do período imperial, o de Pires e o de Dias 4, referentes ao período da primeira metade do Século XX na Bahia. O primeiro, realiza um amplo levantamento de dados referentes aos capoeiristas cariocas do império, possibilitando a partir dos registros policiais da época, a identificação mais próxima dos componentes desse grupo, suas origens étnicas, ocupações profissionais, distribuição geográfica no contexto urbano, entre outros pontos, como tipos de ocorrências policiais registradas e a relação dos Capoeiras com as temíveis “Maltas de Capoeira5, que nos permitem a compreensão mais ampla do panorama urbano carioca do Século XIX, tendo os Capoeiristas como protagonistas.
Já Pires e Dias, em obras muito próximas, utilizam, além dos registros policiais, notícias publicadas em jornais baianos do período compreendido entre a proclamação da República e a Segunda Guerra, oferecem um quadro ilustrativo do modus vivendi dos capoeiras baianos, descrevendo o seu habitat, nomeando personagens. Josivaldo Pires, dedica ainda um capítulo do seu “No Tempo dos Valentes”, para contextualizar a ação dos vadios e capoeiras no cenário político e econômico brasileiro na 1ª República, examinando o conteúdo dos discursos hegemônicos da época, referentes à análise social, que viriam a fundamentar o projeto de sociedade então levado a curso, as relações entre o Estado e as classes subordinadas, dando relevância às aspirações eugenistas e lombrosianas que influenciaram as relações supracitadas. ( PIRES, 2005,pp. 116-126).
Expressão cultural marginalizada e perseguida no período colonial e durante o Império, criminalizada na República, a capoeira vai experimentar, a partir dos anos 1930, um processo de superação das barreiras sociais em que estava encerrada, passando a atingir e ser aceita por um novo público, oriundo de extratos sociais diferenciados daqueles nos quais estava usualmente inserida. O ponto crucial para essa reviravolta na história da Capoeira, foi a criação em 1926, por Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba, da Luta Física e Regional Baiana, posteriormente conhecida como Capoeira Regional.(REGO, 1968, p.268)
Com o intuito de tornar a Capoeira mais socialmente aceitável e marcialmente objetiva, Mestre Bimba inseriu na Capoeira, golpes de outras lutas, como o Jiu-Jitsu, o Boxe e o Savate ( Citar discordâncias nesse ponto), modificou a postura tradicional do jogo de chão, baixo, para uma prática mais ereta, alta, além de inserir no processo de aprendizagem, técnicas sistematizadas de ensino, como as seqüências de treinamento, uma metodologia didática e funcional para o desenvolvimento prático do aluno. Mais significativo ainda, no que podemos ter como primeiro momento de disseminação social da Capoeira, o Mestre Bimba introduziu no âmbito da sua Capoeira Regional, todo um aparato de ritos e cerimoniais similares aos das universidades (D´ANDRADE,2006, p.58) que vão desde o estabelecimento de uma hierarquia de graduações, que testificam a transposição pelo aluno, das progressivas fases do aprendizado, até a realização de festas de batizado para os alunos iniciantes e de formatura para os alunos que atingiam determinado grau na sua academia.
Se, segundo o próprio Mestre Bimba, a Capoeira era até então “coisa para carroceiro, trapicheiro, estivador e malandro” (ABREU, 2005, p.7), a partir das adaptações técnicas e simbólicas por eles implementadas, passa a atrair uma nova clientela, provenientes das classes média e alta, principalmente formada por estudantes universitários, que logo se tornariam médicos, advogados, engenheiros e políticos de importância regional e nacional.
É por intermédio desses alunos, que o Mestre Bimba vai ter viabilizado o reconhecimento social da sua Capoeira, inaugurando em 1930 a sua primeira academia e recebendo em 1937, um certificado oficial da Secretaria da Educação, Saúde e Assistência Pública, qualificando a Capoeira Regional como educação física e concedendo-lhe permissão para o seu ensino em recinto fechado.
O Mestre Bimba foi um homem que fez o seu tempo. Analfabeto, negro, pobre, conseguiu alçar a sua arte do status de “perigo social, para o de ”esporte nacional”(DIAS, 1996, p.79). Deu aulas de Capoeira para militares e acadêmicos , esteve por muito tempo presente nas páginas da imprensa local como lutador imbatível, apresentou sua arte em praças e palácios, para prefeitos, interventores, governadores e até mesmo para o Presidente Getúlio Vargas, que a declarou como “única colaboração genuninamente brasileira à educação” ( D´ANDRADE, 2006,p. 56), indicando o seu ensino nas escolas públicas.
Além de ministrar aulas para jovens oriundos da elite soteropolitana, Bimba teve também entre os seus clientes, filhos de fazendeiros, cacauicultores, políticos e pecuaristas de outras cidades baianas, que travavam contato com a capoeira, durante o seu período de estudos na capital, tornando-se importantes disseminadores do seu estilo de Capoeira ao retornarem para as suas cidades, ou transferirem-se para o sul do país (D´ANDRADE, Op.Cit, p.59). O Mestre frequentemente viajava para essas cidades, a fim de realizar batizados e formaturas, bem como shows e apresentações em clubes de elite, em festas oficiais. Em Salvador, também era solicitado para apresentações em teatros, desfiles cívicos, e cerimônias diversas.
Mestre Bimba era uma espécie de Herói da Bahia, embora por fatores diversos, não tenha sido ele mesmo grande beneficiário de sua obra. Tanto que em 1973, alegando a falta de apoio e assistência do governo baiano, parte para Goiás, acreditando nas promessas de um aluno de que lá ganharia muito dinheiro, vindo a falecer neste estado em 1974, pobre e desassistido. A Capoeira regional, no entanto tem a sua continuidade garantida pelos médicos, advogados, cirurgiões, políticos e engenheiros, feitos capoeiristas pelo Mestre Bimba. São esses que vão formar( no sentido de transmitir formação), a terceira geração de capoeiristas regionais, responsáveis por consolidar a institucionalização da Regional e sua disseminação por todo o país.
Desde fins dos anos 1960, muitos dos capoeiristas regionais baianos, vão integrar as equipes de shows folclóricos, como o Grupo Folclórico da Bahia, de Ubirajara Almeida, Mestre Acordeon, e o Viva Bahia, de Emília Biancardi, que vão percorrer Europa e América do Norte, apresentando demonstrações de Capoeira, em conjunto com danças-afras e outras expressões “folclorizadas” (REGO, 1968, p.238). Alguns entre esses Mestres, vão se estabelecer na Europa e na América iniciando o que podemos entender como segundo momento da disseminação da Capoeira Regional, quando os primeiros Mestre de Capoeira vão iniciar trabalhos no exterior.
Segundo o Mestre de Capoeira e Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, Nestor Capoeira, é nessa época que vai ocorrer uma nova e importante transformação na regional, com a agregação de inovações trazidas por jovens capoeiristas do eixo Rio - São Paulo, definindo um novo estilo para a Capoeira Regional, integrando ainda novas contribuições de outros esportes, como os saltos e acrobacias da ginástica olímpica.6
É essa a Capoeira que vai se tornar hegemônica no Brasil(mesmo na Bahia) e ser exportada para a Europa e Estados Unidos, estando presentes em mais de uma centena de países de todos os continentes. Tão significativa é esta modificação, que alguns pesquisadores da Capoeira, afirmam que o Mestre Nenel, filho do Mestre Bimba, seria um dos únicos Mestres que preservam ainda a Capoeira Regional, da forma como era praticada por seu pai. Para outros, no entanto, a transformação, é pressuposto em si do projeto do Mestre Bimba e a posição do Mestre Nenel, representaria um contra-senso.7
O fato é que desde 1940, a Capoeira Regional se disseminou com sucesso por todo o país. A partir dos anos 1970, esse sucesso alcançou os cinco continentes, consolidando uma gigantesca estrutura econômica de viés empresarial, que pode ser exemplificada por encontro recentemente realizado em Salvador pelo Grupo Abadá Capoeira, do Mestre Camisa, que reuniu cerca de 5 mil capoeiristas de mais de trinta países, que eram, em sua maioria, alunos de filiais do Abadá Capoeira espalhados pelos cinco continentes8. Em contrapartida, a Capoeira Regional experimenta também desde os anos 1970, sua popularização, pulverizando-se por todos os bairros pobres e de periferia do país. Isso, na nossa perspectiva, representa menos uma ‘deselitização’ da Regional, do que a disseminação padronizada do modelo hegemônico, tido como ideal e veículo de ascensão sócio-econômica, tendo em vista o excelente mercado de trabalho internacional aberto por essa Capoeira.
Capítulo II
A Capoeira Angola
A partir de 1930, com a criação da Capoeira Regional, a Capoeira até então praticada, passa a ter sua história significada através da contraposição à sua modalidade hegemônica. O “sua”, é referente ao fato evidente de que a Regional é derivada dessa Capoeira, uma modalidade para a sua prática. No entanto, é essa Capoeira anterior, que vai ser obrigada a definir-se por contraste. O Próprio termo “Capoeira Angola”, que relaciona a prática à sua origem africana, definindo inclusive, uma especificação étnica, se dá posteriormente à criação da Regional, e com a função objetiva de diferenciar-se dela. Antes disso, o que se tinha era “a” Capoeira, e sua prática era a capoeiragem, a vadiação pura e simples ( REGO,1968, p.19).
A Capoeira Angola, passa a desempenhar o papel de contraponto à Regional. Esse papel se exerce de forma consciente e deliberada por parte dos Mestres da Angola , que optam por insistir na preservação das práticas tradicionais da Capoeira, bem como de uma estrutura de valores, conceitos e rituais diretamente ligados ao mundo simbólico africano. O momento inicial da cisão da Capoeira, é o momento o qual os sujeitos sociais envolvidos, buscam definir os seus discursos, de modo a referendar e justificar as suas práticas a partir de um aporte conceitual que baseie e dê sentido às suas especificidades. Ainda que não seja o nosso objetivo a realização de uma análise do discurso no presente caso, nos parece importante ressaltar, ter sido sobre essa base discursiva inicial, que se desenrolou a fiação da trajetória capoeirana no Século XX e nesse início de XXI. Justamente, no contraste entre cultura negra X Cultura brasileira , cultura popular X cultura de elite , expressão cultural x desporto, vadiação x educação física , ritualística com ritual africano x ritualística com referencial europeu, que se deu em graus variados e variantes a relação de co-existência entre as duas capoeiras.
No entanto, a despeito dessas contradições e da gravidade empírica delas resultantes , como brigas de ruas e restrições sobre a visitação mútua , algo de diálogo e negociação se estabeleceu no reino da Capoeira. Exemplo disso, é a utilização pelo grupo da Capoeira angola, de alguns espaços e linguagens de inserção/intermediação abertos pelo grupo da Regional. Em 1941, o Mestre Pastinha abre a sua academia de capoeira, incorporando alguns padrões simbólicos, como a exigência do uso de uniforme, o registro cartorial da entidade, as carteirinhas de associados, que representam uma clara ruptura para com o caráter espontâneo, não institucional e, necessário dizer, marginal da capoeiragem clássica. Além disso, a utilização de seqüências de treinamento , representam também uma inovação relativa ao processo de aprendizado da Capoeira Angola, até então pautado nos processos de transmissão comunitários de conhecimento, baseados na oralidade e no exemplo.
Desde os anos 1940, além da academia do Mestre Pastinha, houveram outras, como a do Mestre Waldemar, do Mestre Caiçara, do Mestre Canjiquinha, do Mestre Bobó, do Mestre Cobrinha Verde, do Mestre Espinho Remoso, do Mestre Ferreirinha, de Santo Amaro, entre outros.9 Esses Mestres, são representantes da geração de Mestres de Capoeira Angola, que formou a quase totalidade dos mestres que, nos dias de hoje, são tidos como sendo “os velhos guardiões da Capoeira Angola”, como os Mestres: João Pequeno, João Grande, Curió, Boca Rica, Mestre Bigodinho, Mestre Lua de Bobó, Mestre Virgílio, e o falecido Mestre Paulo dos Anjos, todos esses em uma faixa de idade que varia entre 60 e 90 anos. São senhores cuja memória histórica imediata ( que se soma á dos seus avós), alcança cerca de 150 anos, o que nos relaciona a um período que é, contemporâneo à escravidão, anterior aos impactos da revolução industrial no Brasil, e mais ainda, às revoluções tecnológica e informática. Por conta disso, são justamente considerados como portadores de imenso saber e proprietários de laços estreitos com a ancestralidade africana no Brasil.
Alguns entre esses Mestres, vivenciaram diretamente o processo de hegemonização e disseminação da Regional, enquanto outros apenas os seus impactos. Os anos 1930, 40 e 50, são ainda lembrados como grandes anos para a Capoeira Angola, posto que essa hegemonia ainda não se dera por completo. O livro de Frederico Abreu, “ O Barracão do Waldemar”, é ao mesmo tempo funcional e comovente, na forma em que descreve o espaço do Bairro da Liberdade, onde o Mestre Waldemar realizava suas rodas no período citado, atuando como espaço de lazer e convergência comunitária.10
É a partir da década de 1970, que o refluxo iniciado em 1930, vai se fazer sentir de forma mais contundente, com a extinção de muitas rodas, muitos mestres se aposentando (da Capoeira), desmotivados pela falta de incentivo e interesse popular pela Capoeira Angola, outros ainda ficando doentes e desassistidos. O Mestre Pastinha é um dos mais representativos da trajetória da Capoeira Angola, que se confunde com a sua própria vida. Nos anos 40 e 1950, sua academia, localizada no sobrado de número 19 na Ladeira do pelourinho, era muito movimentada por muitos alunos, artistas e intelectuais, além de estar incluída nos roteiros turísticos. Toda essa movimentação, no entanto, não foi suficiente para garantir ao Mestre qualquer estabilidade econômica.
Capoeirista, pintor, escritor, filósofo, respeitado entre toda a intelectualidade baiana, frequentemente citado na imprensa local, não possuía meios para acumular para si, proventos advindos da utilização de sua imagem. Seguindo a linha de Márcio de Abreu (2006,p.25), percebemos que o Mestre Pastinha, tanto quanto o Mestre Bimba, o Mestre Waldemar, e muitos outros, foram vítimas de um modelo de mais-valia cultural, posto que possuíam a mão de obra Capoeira, a linguagem adaptativa necessária para transformar a sua arte em “produto cultural”, mas não eram proprietários dos “ meios de produção cultural”, que viabilizariam a absorção própria dos lucros gerados por sua prática. Nos debruçaremos de forma mais detalhada sobre este tema em capítulo posterior, mas o fato é que, fora das luzes do palco/roda, esses mestres eram, essencialmente, homens negros em um sociedade racista, pobres, artífices de uma atividade artística que não lhes propiciava quaisquer dos direitos básicos trabalhistas, como aposentadoria ou pensão.
Em 1967, o Mestre Pastinha, já com sérios problemas de saúde e com um processo de cegueira bastante avançado, viaja com o seu grupo para representar o Brasil no Festival de Artes Negras realizado em Dakar, no Senegal. Tamanha representatividade, não significava nenhuma mudança no seu status social. Em 1971, já cego, o Mestre tem o imóvel onde estava instalada a sua academia, tomado pelo governo do Estado, sob a alegação de que após a sua reforma, o Mestre retornaria. O processo foi acompanhado pela imprensa local até seu desfecho, que culmina com a transformação do espaço em um restaurante de comidas típicas do SENAC, e o Mestre, doente, cego e na miséria, abandonado em um cubículo úmido em um dos inúmeros becos do Pelourinho. Sua morte, em 1981, em um quarto do Asilo São Pedro, com o apoio único de sua última esposa, Dona Romélia, é ilustrativa do momento infeliz vivido pela Capoeira nos anos 1970 e início dos 80, com o fechamento de academias, a doença ou a morte de Mestres e, principalmente, a falta de novos praticantes que pudessem representar a renovação, reprodução e permanência da Angola12. Menos de 10 grupos de Capoeira Angola poderiam ser encontrados em toda a cidade, enquanto que os grupos da Regional eram contados à centenas, em qualquer esquina de qualquer bairro, realizando eventos, formando professores, em programas de TV, em escolas, em clubes. O destino da Capoeira Angola parecia ser o desaparecimento , tornar-se peça de museu, um objeto anacrônico de prática não apropriada para a “moderna modernidade”, “ Coisa de velho” era o que os Mestres mais ouviam, enquanto viam a saúde se esvair e os alunos e admiradores desaparecerem. Ser “angoleiro” era motivo de espanto e de zombaria, um incômodo que teimava em atravancar a ‘evolução’ da Capoeira em seu caminho para ocupar o seu lugar na sociedade brasileira.
O processo que conduz a Capoeira Angola, desde essa fase de ostracismo e quase extinção, até os dias atuais, em que se encontra disseminada em todos os continentes, respeitada e conceituada, gerando emprego e renda ( e pagando INSS), ocupando diversos espaços na sociedade, inclusive com suporte financeiro do Estado Brasileiro para subvencionar as atividades dos “Mestres da Cultura Popular”, é o foco e objeto deste trabalho. Vamos, antes disso, rever um pouco do processo sócio-político brasileiro da segunda metade do século XX, para uma melhor compreensão de como a trajetória capoeirana esteve relacionada com o contexto das variações políticas e ideológicas nacionais, e de que formas os capoeiras se relacionaram, atuaram e intervieram nesses cenário, de modo a influenciarem ou serem influenciados por ele.
Capítulo III
A Capoeira e a sociedade Brasileira
A partir do estudo cronológico da história da Capoeira, proposto no capítulo anterior, pretendemos perceber três momentos históricos diferenciados, no que diz respeito ás relações entre Estado e a sociedade dominante brasileira com a Capoeira:
O primeiro, no período colonial, está inserido no contexto das perseguições generalizadas às manifestações culturais da população escravizada, o que agrega à Capoeira, as danças, batuques e as religiões afras. A perseguição às expressões culturais negras na colônia e no império, são conseqüentes da percepção então corrente, do escravo como rês, como coisa desprovida da integralidade das características humanas, estando, portanto as suas expressões mais aproximadas de demonstrações de bestialidade, imoralidade e barbarismo, do que de qualquer noção civilizada de ‘cultura’. Ainda que houvessem graus e modelos alternados de repressão às expressões culturais negras, a relação sempre se deu no âmbito da repressão e do controle 13.
O segundo momento está compreendido na primeira República, caracterizado como período de criminalização da capoeira e, se inicia com o Código Penal Republicano, de 1890, indo até 1930. Nesse segundo período, somam-se às teorias racistas de Gobineau, uma nova gama de preconceitos etno-sociais constantes no ideário positivista da república14. O Pós-abolição traz a necessidade premente de definirem-se políticas para a integração e controle da população negra liberta, na sociedade brasileira. Nesse contexto, a aproximação entre a medicina e a criminologia na construção de uma teoria de análise social com pretensões cientificistas, vai fundamentar as políticas de controle populacional implementadas pelo estado brasileiro.
Especialmente sob influência da produção acadêmica oriunda das faculdades de medicina de Salvador e Rio de Janeiro das primeiras décadas do Século XX, vão ser implementadas políticas públicas de caráter higienista e eugenista, objetivando os vários níveis de “saneamento social”. Os padrões de organização urbana das capitais européias vão inspirar as reformas urbanistas e as campanhas massivas de saúde nas grandes cidades. Por outro lado, a teoria eugenista inspira as políticas nacionais de imigração, com a importação maciça de trabalhadores europeus para substituir a mão-de-obra escravizada.
Conquanto não houvessem políticas públicas que objetivassem a integração sistemática do ex-escravo na sociedade e no mercado de trabalho, o elemento negro, posto à margem, vai ser arbitrariamente associado às próprias mazelas sociais que o vitimam, a partir da interpretação racial das teorias frenológicas do italiano Cesare Lombroso15, acerca das relações entre tipo físico, comportamento criminoso e insanidade mental. Os escritos do antropólogo maranhense Nina Rodrigues, e sua influência sobre a Gazeta Médica da Bahia, vão estamentar a idéia do negro enquanto tipo humano naturalmente delinqüente e propenso a desvios psiquiátricos, que vão ter ampla aceitação nos meios jurídicos e médico-legais brasileiros, direcionando uma série de medidas e políticas a nível penal e psiquiátrico.
No Rio de Janeiro, são fartos os registros referentes a prisões de capoeiristas por crime específico de Capoeiragem, conforme previsto no artigo 402 do Código penal da República. Muitos desses capoeiras eram conduzidos para colônias correcionais como a de Fernando de Noronha, reservada para essa espécie de crime. Na Bahia, os pesquisadores não puderam encontrar registros de prisões por crime de capoeiragem, sendo recorrente porém, a citação nos registros de prisão da época, por vadiação e brigas de rua, de diversos nomes conhecidos e reconhecidos dentro da capoeiragem baiana. Muitos dos indivíduos constantes nesses autos de prisão por vadiagem, estão presentes nas listas dos capoeiristas “da antiga”, citados, por mestres como Pastinha e Noronha (PIRES, 2005, pp.146-148)
Os anos de perseguição institucional à Capoeira correspondem à quase total extinção da capoeiragem clássica carioca. Alguns autores apontam a Revolta da Vacina, como último episódio da atuação maciça dos Capoeiras do Rio, registrados entre os mais notáveis agitadores (MNU, 1988, p.67). Em Salvador, a prática da Capoeira adquiriu caráter diferenciado, com a incorporação permanente (embora de modo diverso, de acordo com o momento, lugar, ocasião), do uso de instrumentos musicais como suporte rítmico do Jogo. A própria conceituação da Capoeira como “Jogo”, é uma especificidade baiana, uma transmutação da Capoeira arma de combate, para uma Capoeira ritualizada, repleta de comportamentos simbólicos metodicamente exigidos para que a participação do praticante se dê de maneira integral.
A Capoeira baiana se dissemina em rodas, montadas nos bairros populares, principalmente em lavagens e festas, desafiando abertamente a repressão policial, em demonstrações públicas de agilidade e destreza corporal. É ao mesmo tempo, um momento ritual, onde somente determinado grau iniciático garante uma percepção completa, como também uma apresentação pública atraente, que envolve a assistência pela beleza dos movimentos e pela riqueza dos sons.
O terceiro momento, que se inicia com o Estado Novo e se estende por boa parte da 2ª metade do vigésimo século, até fins da ditadura militar, representa um importante momento para a construção ideológica de um projeto de identidade nacional brasileiro. Quando o grupo positivista gaúcho, representado por Getúlio Vargas assume o governo central, traz para o poder uma concepção bastante particular das idéias comnteanas, agregando um projeto de governo centralizador e intervencionista, descrente do programa liberal:
“ ... a autoridade saída do consentimento geral dos povos não passa de uma fórmula grotesca, cuja impotência e incapacidade para a solução dos magnos problemas oferecidos pela civilização hodierna, dia-a-dia vão se firmando na consciência dos homens esclarecidos.(...) Isso de soberania popular, de governo do povo pelo povo, são conceitos vãos, criados para estorvar a ação da autoridade no estudo das questões sociais cuja solução só se deve inspirar na necessidade histórica e na utilidade pública”16
Vargas se dedica com afinco à consolidação de uma “cultura nacional”, bem como do próprio sentimento de nacionalidade através desta identidade cultural nacional. Nesse contexto, as idéias raciais segregacionistas e excludentes sobre negros e indígenas, dão lugar ao discurso do congraçamento das três raças fundadoras, em um país que se orgulha de sua condição de miscigenado, onde as raças se misturam e não existe preconceito racial. O mito da democracia racial inaugurado por Gilberto Freyre em seu Casa-Grande e Senzala17 é incorporado ao discurso oficial do governo Vargas, com negros, brancos e índios, formando o conjunto etno-psico-social do povo brasileiro.
Independente das discrepâncias sócio-econômicas extremas separando empiricamente os diversos componentes étnicos da população brasileira, o discurso ferrenho da igualdade racial, serviu inclusive para vetar qualquer tipo de organização social fundamentada em sua especificidade étnica, como é o caso da Frente Negra Brasileira, proibida por Vargas em 1937 ( MNU,.1988,p.70). Estado Novo, ideologia nova, fazia-se necessário um homem nacional novo, que encarnasse a nova auto-percepção do país.
O eugenismo tem então influência crescente nas políticas sociais do Brasil, com eugenistas renomados ocupando cargos públicos de importância, nas áreas de saúde e serviços. Belisário Pena um dos fundadores da Sociedade Eugenista Brasileira, chega a Ministro de Saúde de Vargas, após ocupar diversos cargos menores. É um eugenismo adaptado, certamente, o que busca reunir as melhores aspectos das raças que compõem a população nacional, para a construção do homem brasileiro. A nossa miscigenação, seria capaz de, processualmente, agregar as qualidades de negros, índios e brancos, principalmente, “depurando as raças inferiores’ de suas vicissitudes atávicas”. Por outro lado, uma estrutura moderna de repressão e isolamento dos indivíduos socialmente desviantes era montada, “vigiando e punindo”, aqueles que não se enquadrassem na nova ordem social (SCHWARCZ, 2002).
No campo da cultura, essa mudança de perspectiva também pôde ser sentida. As expressões culturais negras, até então perseguidas e negadas, vão ser incorporadas enquanto contribuições à cultura brasileira , e mesmo enquanto expressões exemplares de nossa cultura. No entanto, do mesmo modo que na relação eugenista referente à genética , essa integração representava uma depuração dos caracteres étnicos mais arraigados em prol de uma “brasilização” de suas práticas, de seus espaços, de suas linguagens e principalmente, de seus discursos. A religião, o samba, a dança, os folguedos negros passam a ser aceitos, na medida em que deixem de representarem espaços específicos de sua comunidade étnica, para se tornarem componentes do folclore brasileiro, expressões inermes, desprovidas de risco, meros reprodutores de um passado que já não se reputa transformador ou influenciador da realidade, pelo contrário, torna-se veículo reprodutor da ideologia do estado, produto cultural de consumo interno e de exportação, de grande lucratividade para uma indústria cultural incipiente.18
A ditadura militar que se inicia em 1964, após um brevíssimo intercurso democrático, embora represente uma mudança na postura econômica do país, com a economia brasileira sendo aberta para o capital norte-americano, não traz qualquer modificação no que se refere ao “lugar” do negro na sociedade brasileira: mão-de-obra barata e não especializada, sendo o futebol, a música e as artes em geral, as únicas vias de ascensão social e financeira do negro. Qualquer manifestação sócio-cultural negra que representasse alguma contestação coletiva desta comunidade era tida por “contrária ao espírito nacional” racialmente democrático. Conquanto não houvessem mobilizações políticas que demandassem repressão policial coordenada, a repressão psicológica era sempre imediata e unânime, tanto da direita, quanto da esquerda que buscava tomar o poder.
É nesse período que a Capoeira Regional atinge o seu apogeu, alcançando plena aceitação em todos os setores da sociedade, disseminando-se pelo mundo, enquanto a capoeira Angola caminhava a passos certos para a extinção. Obviamente, a percepção oficial de cultura e a política cultural proveniente dessa percepção, não são suficientes para, por si sós, determinar a extinção das expressões culturais que não se enquadram no seu modelo padrão. Contudo, o fato é que as expressões culturais dissonantes, passam a sobreviver de forma bastante marginal à cultura oficial, num claro desafio das culturas populares, às imposições da cultura popular oficial veiculada para as massas pelas mídias.
Esse é o caso do samba da malandragem, do jongo, do Candomblé e da Capoeira Angola, entre outros, que vão se manter forçosamente guetificados, com todo o seu potencial latente testemunhado somente por grupos restritos de adeptos.
A caracterização desses três momentos históricos diferenciados, no que se refere à relação entre o Estado e as elites brasileiras com a cultura negra, nos permite propor um quarto momento, que se inicia em finais dos anos 1970, com o processo de abertura democrática da política brasileira, se estendendo até os dias de hoje, quando essa democracia ainda não plenamente consolidada ( e talvez longe disso, ainda), se enriquece, ao menos, com a abertura de espaços para que sejam expressas e ouvidas as vozes da diversidade.
Capítulo IV
Índios e padres e bichas, negros e mulheres, e adolescentes, fazem um carnaval...
A frase titular deste capítulo, extraída da música “Podres poderes”, gravada por Caetano Veloso em 1984, reflete certo incômodo do autor, quanto ao efervescente cenário nacional dos anos 1980. De fato, a diversidade das vozes sociais que se levantaram por todo o país, poderia realmente soar como cacofonia, para qualquer ouvido acomodado ao silêncio de chumbo dos anos de ditadura militar. Mesmo aqueles representantes de certa intelectualidade brasileira acostumada a ser porta-voz única dos supostos anseios do povo, assistiram com receio o momento em que os diversos setores populares brasileiros buscaram se organizar para expressar suas idéias, suas demandas e seus projetos.
Se este “carnaval” feito pelas assim chamadas “minorias sociais” desagradaram a alguns intelectuais de direita e de esquerda, deve-se provavelmente ao fato destes estarem por demais apegados aos lugares sociais nos quais essas parcelas da população estavam convencionalmente encerradas. No entanto, se atentarmos para Roberto da Matta, veremos que o carnaval é o momento ritual, no qual os papéis sociais são invertidos, colocando os estamentos cotidianos de cabeça pra baixo(DAMATTA, 1997, p.81) o que pode certamente causar certa vertigem para alguns.
Os anos 80, são anos de intensa efervescência. Índios e padres, bichas, negros e mulheres e adolescentes, se organizavam em grupos específicos para, a partir da sistematização das suas experiências coletivas, perceberem as suas demandas comunitárias, traçarem planos de ações para construir soluções e, por meio da pressão popular, exigir dos poderes públicos, as vias para que essas soluções fossem alcançadas. Era época da campanha das Diretas-Já, que reuniam milhões de pessoas nas praças do país, clamando pela abertura democrática. Índios seqüestravam diretores da Funai, os padres “comunistas”, organizavam as periferias nas Comunidades Eclesiais de Base, os homossexuais também formavam seus grupos, e o GGB (Grupo Gay da Bahia), fundado em 1980, é referência nesse sentido. Os movimentos negros que se reuniram em 1978 para formar o MNU, adquiriam cada vez mais força, unindo política e cultura numa fórmula de sucesso, as mulheres se reforçavam nos grupos de Gênero, fosse em organizações específicas ou em núcleos existentes dentro de outras organizações, como no próprio MNU, enquanto os adolescentes também criavam os seus problemas, tanto nos movimentos estudantis, quanto nos bandos de punks, que infestavam as ruas escuras das grandes cidades. O país estava convulso.19
Em Salvador, o ano de 1981, é o ano do memorável quebra-quebra dos ônibus coletivos , contra o aumento das passagens. È ano das grandes invasões de terrenos urbanos, das grandes passeatas contra o desemprego, contra a carestia, pela estruturação dos bairros de periferia, ano de muita violência policial. A sucessão de acontecimentos que transtornavam a cidade, foi suficiente para provocar a demissão do então prefeito Mário Kértez e ocupar por bastante tempo os noticiários nacionais.
Mil novecentos e oitenta e um, foi também o ano da explosão da bomba do Riocentro, escândalo em torno de um fracassado atentado terrorista tramado pelas forças armadas, que culminou com a morte acidental de dois militares. Foi ano de Flamengo campeão mundial em Tóquio.
No dia 13 de novembro de 1981, morre o Mestre Pastinha. Registro videográfico realizado nos últimos dias de sua vida e incluído no documentário “Capoeiragem na Bahia”, mostra um resto de homem. Encolhido no canto da cama, sem dentes, cego, silencioso, fechado em seu mundo. Dia 14 de novembro, os jornais retrataram o enterro pobre, pequeno, sem os artistas e intelectuais que se diziam seus amigos, sem políticos, sem autoridades ou diretores dos órgãos de turismo, nem mesmo os seus alunos se fizeram presentes para segurar as alças do caixão. O Caixão, foi comprado por Dona Romélia, sua última esposa, que, vendeu acarajé, para que o Mestre não fosse enterrado em um caixão de indigente.
Se em 1968, o sociólogo Waldeloir Rego, já percebia em seu ensaio Sócio-etnográfico da Capoeira Angola, um quadro de decadência (REGO,1968,p 202) , o início dos anos 80, marcado pela morte do Mestre Pastinha, representam o fundo do poço, o ponto do não retorno, no qual a Angola, por inércia, tendia a permanecer.
Capítulo V
A revitalização da Capoeira Angola
No presente capítulo, nos utilizamos de informações advindas das entrevistas realizadas durante o período de pesquisa, para dar suporte às investigações referentes ao processo de reversão desse quadro de decadência. Nesse sentido, buscamos situar este processo no contexto sócio político atravessado pelo país na época enfocada, travando um diálogo entre o conteúdo das entrevistas e a contextualização social, política e cultural por nós levantada nos capítulos anteriores, buscando perceber as relações existentes entre os desenvolvimentos internos do grupo da Capoeira Angola, com os desdobramentos externos atravessados então pelo conjunto da sociedade brasileira, no qual a Capoeira e os capoeiristas estão inseridos.
O deslocamento da Capoeira desde o espaço determinado para a cultura popular, até o espaço reservado aos esportes da elite, dá-se devido a uma transformação do seu discurso interno, bem como da linguagem através da qual esta se apresenta externamente. Se entendermos a cultura popular como “aquela produzida pelo povo, para ser consumida por este mesmo povo, de produção anônima, isto é de domínio público e muitas vezes, uma construção coletiva” (DIAS, 1996.p.71), percebemos que a disseminação da Capoeira entre as elites baianas a partir dos anos trinta, é resultante de certa descaracterização representada pelas adaptações efetuadas pelo Mestre Bimba, objetivando, segundo o próprio mestre “ tirar a Capoeira debaixo do pé do boi”. Thompson, entretanto, nos avisa para “ ter cuidado quanto a generalizações como ‘cultura popular’ com uma perspectiva ultraconsensual dessa cultura”(THOMPSON,1998, p17). Para o historiador inglês,
“ longe de exibir a permanência sugerida pela palavra ‘tradição’, o costume era um campo para a mudança e a disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentavam reivindicações conflitantes.(...), [esse costume] não se autodefinia, nem era independente de influências externas.(...) Uma cultura é também um conjunto de diferentes recursos em que há sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o dominado, a aldeia e a metrópole...”20.
Para Márcio Abreu,
“ a genialidade do Mestre Bimba, esteve justamente em sua reinterpretação de códigos acadêmicos, lhes dando novos significados e utilizando-os, através da Capoeira, como uma via de transposição de valores.(...)O Mestre Bimba soube aproveitar-se de situações sociais e culturais que lhe permitiram de alguma maneira, atingir resultados práticos, indispensáveis à consolidação do seu projeto de ‘tirar a Capoeira debaixo do pé do boi’ – este entendido como um esforço para que a Capoeira alcançasse uma visibilidade positiva e o reconhecimento social”.21
Se retornarmos à contextualização referente ao cenário político brasileiro na década de 1930, com a implantação do Estado Novo, percebemos que esse processo se estabelece “ através das novas dimensões dadas à ‘indústria do espetáculo e do lazer” ( ARAÚJO, 1992, p.31), em um momento em que uma indústria cultural incipiente, tornava-se importante veículo de construção hegemônica da identidade nacional pretendida pela burguesia. Examinando o processo de disseminação do samba, em processo historicamente e contextualmente próximo ao da Capoeira Regional, Maria de Lourdes Gomes compreende a ascensão musical do samba “intimamente ligada a um novo momento político do país, sendo necessário fazer uma gigantesca síntese de vários padrões e recursos estéticos criados pela mídia para satisfazer o gosto e o desejo dos empresários” (GOMES, 2002, p.28), “ Uma adaptação de seus recursos a um público já propriamente ávido por se identificar como cidadão moderno, moreno, mas industrial, pobre, mas em desenvolvimento...” (Id. 2002.p. 27)
Foi a função desta ‘indústria cultural’ “a adaptação de produtos da alta cultura ou da cultura popular, realizada de forma mecânica, para ser distribuído em larga escala para o consumo das massas”.( DIAS, 1996, p.71)
Nesse contexto, “ tudo o que surge é submetido a um estigma tão profundo que, por fim, nada aparece que já não traga antecipadamente as marcas do jargão sabido e não se demonstre, à primeira vista, aprovado e reconhecido”(ADORNO,2002,pg 18). Importando principalmente a “ capacidade de sujeitar-se minuciosamente às exigências do idioma da simplicidade” (Id. Op. Cit, p.19). Assim, a Capoeira Regional efetivou perfeitamente o depuramento das características raciais mais arraigadas a que nos referimos anteriormente, de modo a adequar seu conteúdo e sua linguagem aos pressupostos ideológicos do momento histórico-político tratado, veiculados e massificados através dos meios de comunicação da época.
É no Estado Novo que a “educação física passa a fazer parte dos currículos escolares, para a tender às necessidades de fortalecer fisicamente o branco, que era débil, assim como, de disciplinar o negro, que era considerado vadio e embrutecido” ( DIAS, 1996, p. 73) A ‘vadiação’, nome utilizado pelos próprios negros para designar a brincadeira descompromissada da Capoeira, passa a representar um paradoxo à moderna padronização da Capoeira desportiva e sistematizada, o que nos manda de volta a Adorno, quando afirma que “ a indústria cultural pode se vangloriar de ter erigido em princípio a transposição – tantas vezes grosseira- da arte para a esfera do consumo, de haver liberado a diversão de sua ingenuidade mais desagradável.” (ADORNO, 2002, p. 28)
Não pretendemos defender uma visão maniqueísta que polarize contrariamente as Capoeiras Regional e Angola, categorizando vilões e heróis, no entanto, as pesquisas nos indicam ter a Regional ocupado o ‘lugar’ previsto para o negro integrado, tendo como base uma perspectiva feryreana de confraternização das raças fundadoras. Enquanto isso, a Angola teria sido depositária dos ‘africanismos anacrônicos’ responsáveis por sua exclusão da modernidade corrente.
Repetindo Thompson em sua reflexão sobre a cultura popular inglesa do século XVIII, e referindo-a à Angola, “ temos assim um paradoxo característico daquele século: uma cultura tradicional que é, ao mesmo tempo, rebelde. A cultura conservadora da plebe quase sempre resiste, em nome do costume, à racionalizações e inovações da economia.” ( THOMPSON, 1998,p. 19) .
“O processo do capitalismo e da conduta não-econômica baseada nos costumes, estão em conflito, um conflito consciente e ativo, como numa resistência aos novos padrões de consumo (necessidades), às inovações técnicas ou à racionalização do trabalho que ameaçam desintegrar os costumes...”22
Na mesma linha de raciocínio, a decadência da Capoeira Angola teria sido determinada por sua não adequação aos ícones metodológicos, estéticos, e comunicacionais pressupostos pela indústria cultural nacional incipiente, em sua busca essencial por consolidar uma identidade nacional ideologizada e burguesa:
“ O negativo desloca-se para a Capoeira Angola, representante das tradições e por isso, dos negros, da vadiagem, dos valentões, das mandingas, das ruas, dos folguedos, dos conflitos sociais, enfim, é a Angola que continuará a ser a ‘arte negra’, elemento da cultura popular. A Capoeira Regional, apresenta-se como moderna, sistematizada, asséptica, eficiente, disciplinadora, uma boa forma de treinamento, apropriada para as academias, um verdadeiro ‘esporte de brancos’, que atende às necessidades do novo homem brasileiro”23.
Sobre essa caracterização da Capoeira Angola como coisa “ da rua’, recorremos outra vez a Roberto da Matta, quando este afirma que em sua sociologia, “ a categoria rua, indica basicamente o mundo, com seus imprevistos, acidentes e paixões, ao passo que casa, remete a um universo controlado, onde as coisas estão nos seus devidos lugares” ( DAMATTA, 1997, p. 90). Se considerarmos a partir de um ponto de vista racial, a determinação do Mestre Bimba em “somente aceitar como alunos pessoas que tivessem ocupação, fossem estudantes ou trabalhadores’ e “ proibir que [ seus alunos] freqüentassem a roda de Angola e de rua, para não se misturarem com possíveis ‘maus elementos’”(D´ANDRADE, 2006, p. 58), podemos perceber quais tipos de “coisas” eram colocadas em quais “lugares”.
A Capoeira Angola, ainda que tenha se utilizado de alguns espaços sociais negociados pelo pioneiro da Capoeira Regional, não se adaptou perfeitamente ao novo formato da Capoeira “produto cultural”, e “quem não se adapta, é massacrado pela impotência econômica, que se prolonga na impotência espiritual do isolado” ( ADORNO, 2002,pp.25-26). Nesse sentido, podemos entender o pesquisador da Capoeira Frede Abreu, quando afirma em entrevista dada para a nossa pesquisa que
“Na medida em que ela [a Capoeira Angola] entra em decadência, somem esses mestres antigos, Waldemar, Cobrinha Verde, eles estão sem condições nem de ensinar nem condições de fazer reproduzir a herança deles, você não tem uma renovação da Capoeira Angola , não é uma coisa jogada mais por jovens, nessa época em que eu entrei na Capoeira, eram pessoas antigas que jogavam a Angola,”.
A sistematização da Capoeira Regional, com a abertura das academias, a nova metodologia de ensino, as graduações, as formaturas, as apresentações, as lutas de ringue, a esportivização, a ligação com a Educação Física, traduziram a Capoeira para uma linguagem acessível às elites, superando (ou possibilitando a superação) dos antigos preconceitos sociais contra a Capoeira, tornando-a produto cultural bem aceito, comercializável e mesmo muito lucrativo. No entanto, ao tornar a Capoeira um produto cultural, o Mestre Bimba não pôde, ele mesmo, tornar-se um “produtor cultural”, ou para melhor definir o sentido que pretendemos dar a esse termo, não pôde tornar-se um “capitalista cultural”, tendo ficado a produção dos grandes eventos, das emissões radiofônicas (e posteriormente as televisivas), a autoria dos livros, a fundação dos grupos internacionais de Capoeira e dos grupos folclóricos, bem como os cargos direcionais das entidades fundadas para reger a Capoeira-esporte, nas mãos dos médicos, advogados, cirurgiões e posteriormente, dos professores de educação física e folcloristas multinacionais, tendo restado ao Mestre Bimba, e a muitos outros mestres negros da Capoeira Regional, o papel de “ prestadores de serviço” cultural, vítimas da mesma trajetória comum aos mestres angoleiros.24
Frede José de Abreu, economista, é um dos principais pesquisadores da Capoeira na atualidade, iniciou suas pesquisas em 1975, envolvido com a nata da Capoeiragem baiana. Participou da organização, em 1980, de um seminário nacional sobre a Capoeira, do qual participaram os Mestres João Grande, João Pequeno, e os mestres Canjiquinha, Cobrinha Verde, e Paulo dos Anjos, então ainda vivos. Trabalhou em diversos projetos sociais referentes à Capoeira, no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, na Fundação Visconde de Mauá, e atualmente no Projeto Mandinga, onde dirige o Instituto Jair Moura, maior acervo internacional de documentos diversos sobre Capoeira. Frede é autor de livros como, Bimba é Bamba, O Barracão do Mestre Waldemar, A Capoeira Baiana no Século XIX, além de dezenas de artigos. Participou da fundação da Academia do Mestre João Pequeno, em 1983, e da re-organização da Academia do Mestre Canjiquinha, na mesma época25.
Para Frede Abreu, ainda sobre a decadência da Capoeira Angola,
“Agente associa isso também ao processo de decadência da Academia do Mestre Pastinha, também coincide ao desaparecimento da roda da Liberdade, do Barracão do Mestre Waldemar, depois da década de sessenta, mas o básico pra se olhar isso é a academia do Mestre Pastinha.(...) A Regional era coisa jogada mais por jovens, da classe média, nessa época, a vitalidade estava mais visível na Capoeira Regional. A Angola, agente tinha a idéia de que ela estava no recolhimento, refratária, não tinha renovação, eram muito poucas pessoas, e era uma coisa restrita à Bahia, depois é que vem essa expansão. (...)Começam a aparecer angoleiros em outras partes do país, e até conversão de caras que eram da Regional ou de outra Capoeira para a Angola.”
Também os outros entrevistados situam o momento crucial da decadência e do ressurgimento da Capoeira Angola no período imediatamente posterior à morte do Mestre Pastinha. Para o Mestre Jogo de Dentro, Jorge Egídio dos Santos, nascido em Alagoinhas, tendo vindo menino para trabalhar em Salvador, formado pelo supracitado Mestre João Pequeno, (aluno do Mestre Pastinha), e que estava dando os seus primeiros passos na Capoeira justamente nessa época,
“ Alguns capoeiristas da época, jovens, criticavam a Capoeira Angola, era coisa de velho, coisa do passado, que não existia mais, que agente estava perdendo tempo.e de certa forma isso nos fortaleceu. E muitos Angoleiros ficaram sem espaço, como esse pessoal mais velho não queria abrir mão, não queria seguir a Capoeira do momento, muitos resolveram ficar afastados, muitos foram pro interior, muitos foram cuidar de suas famílias, porque as pessoas não estavam valorizando.”
O depoimento do Mestre reforça as indicações, de que pesava sobre a Capoeira Angola, o estigma de expressão cultural atrasada, retrógrada, que tendia a desaparecer. Outro mestre entrevistado, o Mestre Valmir, da Federação Internacional de Capoeira Angola, iniciava-se também na mesma época, como aluno do Mestre Moraes, no GCAP. Natural de Salvador, recorda o período em que iniciou-se na Capoeira Angola, quando o isolamento vivenciado pelos artífices da Angola, solidificava-se como fragilidade material:
“O GCAP tinha uma forma de ser dirigida internamente, com comissões, e aí a gente foi a campo, pra ver qual era a situação desses mestres, visitar, saber de suas histórias, agente via o abandono em que essas pessoas estavam, muitas vezes em residências que não tinham estrutura digna para um ser humano, e ao meu ver essa é a decadência de pessoas que tanto deram e tão pouco tiveram como é o caso recente do Mestre Leopoldina.”
O Mestre Moraes, Pedro Moraes Trindade, soteropolitano nascido em 1950, é citado unanimemente pelos demais entrevistados, como personagem fundamental no processo de re-fortalecimento da Capoeira Angola. Ironicamente, foi levado à academia do Mestre Pastinha ainda menino, pelo próprio pai, que sonhava em ter um filho capoeirista. Na década de setenta, Fuzileiro Naval, vai para o Rio de Janeiro cursar a Escola de cabos da Marinha, onde se decepciona com a vida militar:
“Comecei a tomar consciência que a vida militar não era meu lugar, era um paradoxo, eu capoeirista, sendo militar na década de setenta diante daquela situação. Foi quando eu comecei a me envolver mais com a história da Capoeira, com a história sócio- política da Capoeira, aí saí da marinha, fui pra a faculdade estudar. Me formei em letras em 87, atualmente sou mestrando em história Social pela Ufba”
Em 1980, funda o Grupo de Capoeira Angola Pelourinho, retornando a Salvador em 83, transferindo para a Bahia a sede do grupo. É nessa época que se envolve integralmente na missão de resgatar a Capoeira Angola e seus mestres, desde o ostracismo, até o reconhecimento social devido:
“ Eu fui, não gosto nem de falar isso, é muita pretensão, mas eu diria que eu fui um comandante, um general nesse processo , porque quando eu retornei do Rio de Janeiro pra Salvador, em 1983, a Capoeira Angola estava em total decadência na Bahia. Eu vi o Mestre João Pequeno, ensinando Capoeira aqui no Forte, eu vi o Mestre Virgílio, ensinado Capoeira na Fazenda Grande, o Mestre Paulo dos Anjos, mais ou menos por aí. Mas mesmo esses mestres, estavam desacreditados neles mesmos , enquanto praticantes de Capoeira Angola, e adotando identidades que não era deles, e eu resolvi lutar contra isso, chamar a atenção deles para o valor que eles tinham nesse processo de preservação da Capoeira Angola, pelo menos até aquele momento, e que eles não deveriam recuar, que deveriam continuar na luta para que a Capoeira Angola voltasse a ter a força que ela sempre teve antes na Bahia, e que inclusive motivou a criação de um outro estilo de Capoeira, que é a Capoeira Regional. (...)E consegui aglutinar aqui dentro no Forte26, no nosso espaço antigo , a maioria desse Mestres de Capoeira, que já estavam no ostracismo, Mestre Waldemar, Mestre Bobó, e muitos outros .Eu tenho isso documentado essa coisa desses Mestres que voltaram para a Capoeira. Mestre João Grande, por exemplo, que nesse momento já não estava praticando Capoeira e nem ensinando, eu trouxe ele de volta para a Capoeira. (...)Lutei briguei, dei muito a cara a tapa por tudo isso.”
O trabalho do Mestre Moraes no Forte de Santo Antônio vai ser fundamental para o resgate da Capoeira angola, seja por servir como incentivo para que os velhos mestres voltassem a sentir-se valorizados pelos seus conhecimentos referentes à Capoeira, como pelo efeito repercutido nos novos estudantes de Angola, que então iniciavam-se em sua prática, como podemos perceber no depoimento do Mestre Jogo de Dentro:
“ O Mestre João Pequeno, o Mestre Moraes, o Mestre Curió, o Mestre Canjiquinha, o Mestre Paulo dos Anjos todos eles tiveram um papel muito importante pra que a Capoeira Angola não desaparecesse, mas dentro desses mestres todos, na década de oitenta, o Mestre Moraes, pela visão que ele teve de chamar todos esses mestres, muitos já fora de atividade, e ele chamou pra os eventos aqui no Forte, onde ele reunia muitos Mestres, Papo Amarelo, Grandão, Paulo dos Anjos, vários, João Grande, Curió, todo esse pessoal tava lá. (...) Eu acho que esses eventos mostraram que tinha uma força muito grande ali, que só era ter oportunidade e daí que veio o incentivo a essa nova geração, que é a minha, que se dedicou a treinar mais, a valorizar mais, pra manter a Capoeira Angola.”
A partir de então, mesmo que sem nenhum caráter associativo ou federativo característico de por exemplo, uma entidade sindical, o processo de resgate da Capoeira Angola vai se disseminando como um movimento, quando os Mestres passam a falar sobre suas experiências enquanto Capoeiristas e os jovens capoeiristas vão repercutindo a absorção desse conhecimento em suas trajetórias. Nesse ponto, sugerimos que, dentro da percepção Thompsoniana referente às classes sociais, aplicando-as ao cenário cultural baiano dos oitenta:
“ A classe acontece quando alguns homens como resultado de experiências comuns ( herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem ou se opõem aos seus.(...) A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores e formas institucionais.”27
E outro ponto do depoimento de Frede Abreu reforça essa proposição:
“ Renê, na época tinha uma coluna na Bahia, no Jornal A Tarde, e o René batia muito forte na Capoeira Regional e isso dava uma certa visibilidade à Angola.(...) A verbalização do discurso da Angola, e nisso o Moraes é fundamental, a Janja, a Paulinha, são pessoas que são universitários, você já tem um discurso acadêmico sobre a Capoeira, e eles respondem muito bem a isso. (...)O próprio acirramento da discussão entre Angola e Regional, o angoleiro consegue reverter o discurso favorável a ele, de certa forma ela passa a ser a Capoeira politicamente correta, que a Capoeira Regional era coisa de branco, descaracterização, vem esse discurso da pureza, a volta da discussão das origens novamente se remetendo a África como elemento que está ligado às raízes da Angola.”
Nesse período, percebe-se uma apropriação, por parte dos angoleiros, de um aparato instrumental que é próprio também, da indústria cultural, da linguagem e do formato necessário para traduzir o conteúdo da Capoeira Angola para um público mais amplo, tornando-o também produto passível de negociação intersocial. No entanto, novos fatores são importantes de ser fixados para uma maior apreensão do processo: primeiro, o fato de essa linguagem, bem como os espaços e produtos da reprodução discursiva e mesmo da reprodução material do conteúdo Capoeira Angola, como palestras, eventos, Cds, DVDs, apresentações, projetos de captação de recursos, entre outras coisas, estarem basicamente sob o controle dos próprios angoleiros, que aliaram o papel de mestres da cultura, ao de produtores culturais, no sentido novamente, de serem eles mesmos os capitalizadores dos recursos provenientes de sua prática ( e isso independente do montante ). Segundo, que esse processo está inserido no contexto de empoderamento da comunidade negra no Brasil, quando o negro passa a disputar acesso em áreas antes restringidas, a partir do final da década de setenta, que coincide com o momento de abertura democrática da política nacional, quando uma ampla gama de discursos, práticas e comportamentos passam a obter e exigir espaços sociais. Coincide ainda com um momento de grande crescimento econômico da Bahia, com a criação do Pólo Petroquímico de Salvador e do Centro Industrial de Aratu, que abrem muitos postos de trabalho e geração de renda para essa comunidade negra em processo de empoderamento político. E o depoimento do pesquisador Frede Abreu traz mais indicativos dessa contextualização:
“O movimento da Angola, também é tocado pela classe média, mas com a participação muito grande de uma classe média negra, e na época da Regional a elite negra não estava muito aí para a Capoeira, ela queria mais era se livrar dessa tradição, ou pelo menos manter ela escondida, você vê algumas poucas pessoas, como o Abdias do Nascimento, que pensavam diferente.(...) A Capoeira Angola vem também em um momento econômico diferente, no qual a Capoeira já está estabelecida, você já tem um comércio dentro dela, o processo das academias já funciona, já é normal você cobrar uma aula de Capoeira, natural, então ela responde favoravelmente a esse processo de modernização da Capoeira quando se achava que ela não teria condição de responder, que ela se acabaria, que esses ritos que são tradicionais da Capoeira Angola, os discursos, seus elementos, não seriam compatíveis com a modernidade.”
O Mestre Valmir atesta em relação ao seu grupo:
“O registro acontece logo depois[da fundação do grupo-FICA], pois hoje em dia pra você como instituição estar dentro do sistema, pra você ter acesso a determinadas coisas que começam a surgir, você precisa estar registrado, ter seu estatuto, ser reconhecido na prefeitura , pra fazer um projeto, fazer um evento, fazer uma parceria.”
O resgate da capoeira Angola é conduzido pelos próprios angoleiros, diz o Mestre Moraes:
“ No caso da Capoeira Angola, ela fez isso [a revitalização] no peito, com a força de sua ancestralidade, da sua religiosidade e a Capoeira Regional teve todo o suporte do poder, do Estado, e você pode ver que até hoje a Regional está nas escolas de primeiro e segundo grau, nas universidades e a Angola até hoje não.”
A movimentação negra que se organizava no país, também repercutiu no movimento de revitalização da Angola, assim como os movimentos feministas, entre outros, que trocaram influências com o mundo da Capoeira. Em seus documentos para a formação de quadros, de (MNU, 1988, p.54) o MNU28 já citava a Capoeira como luta de resistência negra, e tinha no resgate das expressões culturais negras, importante vetor organizacional, de que são exemplos os blocos afro. Embora os Mestres entrevistados não se declarem como participantes do Movimento Negro institucional, são unânimes em afirmar a influência ( e mesmo a participação, enquanto apoiadores), das mobilizações raciais dos anos 80 e 90. Frede Abreu, ainda que reforce a importância dos movimentos internos da Capoeira Angola no processo estudado, considera grande a influência das lutas raciais no movimento de resgate da Angola:
“O movimento negro dá o discurso, na revitalização da Angola, principalmente se você considerar o GCAP que é uma instituição forte nesse processo de revitalização da Angola, até hoje ele faz esse discurso, não só ele como a FICA a n´Zinga, Boca do Rio, qualquer evento que você vai deles, esse discurso é bem claro. O Curió já fazia isso, o João Pequeno tinha o negócio assim: ‘não é a questão do negro com a Capoeira, é questão do branco com a Capoeira’. (...)Vem vários discursos cruzados, mas esse do movimento negro é bem expressivo. Todas as festas, efemérides ligadas a movimento negro, o GCAP estava presente, tinha esse interesse de mostrar que Capoeira é isso, teria uma função política quase que essencialista, o próprio movimento negro, se você olhar, quase que não faz referência ao Bimba, é só o Mestre Pastinha, Capoeira Angola”
O Próprio Mestre Moraes declara que:
“ Nos não desvinculamos a Capoeira da ligação racial, ancestral, e essa ancestralidade da Capoeira é africana, e isso me leva a tentar explicar para os meus alunos o significado dessa gama de elementos que estão hoje na Capoeira Angola, vertentes da Capoeira como filosofia, como história, como religiosidade, eu só vejo essas vertentes como sendo de matriz africana.(...) Eu tenho consciência do espaço que eu ocupo enquanto afrodescendente, e oriento meus alunos tanto na Capoeira quanto na escola, sobre como eles devem ocupar os seus espaços na sociedade, mas eu vejo um carnavalização em alguns setores do movimento negro, sem generalizar. Eu leio muito os autores negros norte-americanos, sou fã incondicional no Brasil de Abdias do Nascimento e nos Estados Unidos de Malcom X, entendo a postura de Luther King, mas prefiro estar ao Lado de Malcom X*, a liberdade do povo negro não vai ser conseguida com conversa.”
Essa postura é continuada pelos jovens Mestres da Angola, seja o Mestre Valmir, que embora desligado do GCAP, tenha iniciado sua trajetória enquanto aluno do Mestre Moraes:
“Desde o início, agente trabalha com palestras, onde agente discute temas diversos. A coisa não fica somente em ginga, negativa e toque de berimbau. Essa relação com parceiros que vêm na FICA e que vêem a Capoeira Angola como um movimento de resistência do povo africano, e agente fala da nossa história, de como nós chegamos aqui no Brasil, o caminho que trilhamos enquanto instrumento de resistência. (...) Essa preocupação vem desde o início do grupo e certamente porque agente vem de uma escola, o Gcap, que sempre teve essa prática.”
Também o Mestre Jogo de Dentro oriundo da academia do Mestre João Pequeno cita que, na sua opinião:
“ A Capoeira Angola ela vem do negro, vem da periferia ela vem de pessoas que sempre foram perseguidas pela sociedade e você tem de perceber que todo esse processo é de sofrimento e muitos estão praticando a Capoeira só pelos movimentos”
Se nos Estados Unidos, a febre do Rock n´ Roll levou muito dos jovens brancos americanos, a encontrar o jazz e o blues, na busca pelas raízes do rock, a Capoeira Angola também contou com a procura crescente de muitos praticantes não ortodoxo da Capoeira Regional, em busca de conhecer melhor aquela Capoeira que era tida como Capoeira-Mãe, e que como cita a Mestra Janja “na faculdade nos diziam não mais existir29”. Nesse sentido, os Mestres antigos, bem como os jovens Mestres da Angola, passaram a ser freqüentemente convidados para realizar oficinas e palestras nos eventos da Regional, “ Você não faz evento hoje, de Angola ou Regional, que não se leve um angoleiro”, diz Frederico Abreu.
A Capoeira Angola passou a representar fonte de renda para muitos Mestres. A partir dos anos noventa, alguns Mestres se fixam no exterior (como é o caso do Mestre João Grande, que resgatado pelo Mestre Moraes do posto de gasolina onde trabalhava, fixou residência em Nova York em 1994, tendo posteriormente recebido o título de Doutor Honoris Causa pela universidade de Upsaala, e sido recebido mais de uma vez na Casa Branca) e outros que embora continuem no Brasil fazem viagens freqüentes para visitar núcleos dos seus grupos espalhados no exterior. O GCAP, do Mestre Moraes, tem sede em três estados Brasileiros e no Japão, o grupo Semente do Jogo de Angola, do Mestre Jogo de Dentro, tem filiais em quatro cidades brasileiras, além de sedes no Canadá e na Itália, A Federação Internacional de Capoeira Angola, coordenada pelo Mestre Cobra Mansa e pelo Mestre Valmir, tem sede em quatro estados brasileiros, em onze estados norte-americanos, duas sedes na França, além de sedes no México e no Japão. Os três Mestres entrevistados, realizam regularmente encontros em que reúnem capoeiristas de todo o mundo bem como de participantes dos núcleos internacionais de seus grupos. Do mesmo modo, os três grupos tem Dvds e Cds lançados no mercado, tendo sido o Gcap, do Mestre Moraes , o primeiro grupo de Capoeira do mundo a disputar o Grammy, na categoria World Music, em 2004. em outro vetor, os grupos estão também envolvidos em projetos sociais destinados à formação de cidadania em comunidades carentes através da Capoeira.
O Mestre Jogo de Dentro e o Mestre Valmir, vivem da Capoeira Angola, (e vivem para a Capoeira Angola), a partir de recursos gerados pela venda de instrumentos musicais, de aulas, palestras, oficinas, Cd´s, Dvds, entre outras coisas. O Mestre Moraes, tem uma opinião crítica sobre essa relação, “Eu sou radicalmente contra o Mestre que decide sobreviver de Capoeira, porque ele fica refém de aluno e das pessoas que convidam ele para eventos.” No entanto, é constatável o fato de que a simples possibilidade de que alguns Mestres tirem o seu sustento da Capoeira Angola, representa uma nova conjuntura, onde o conhecimento do Mestre Angoleiro é moeda de troca e via de ascensão social de pessoas que de outro modo, talvez não reunissem instrumentos para realizar essa ascensão, como expõe o Mestre Jogo de Dentro:
“Foi a Capoeira Angola que me deu oportunidade de descobrir esses valores, toda essa história, do sofrimento, da maldade eu descobri através da Capoeira Angola.(...) Hoje muita gente da sociedade me respeita porque não tem como não respeitar, mas antigamente, como negro, com o cabelo Rastafari, era difícil e hoje eles são obrigados a vir apertar minha mão. (...)Eu consegui sair de uma situação que poucos conseguem sair, mudei a história, mas sem passar por cima daquilo que eu acredito, da minha história, e isso é importante.”
O Mestre Valmir, ainda comenta o impacto social positivo que essa ascensão social via Capoeira Angola pode ter, a nível comunitário:
“É outro tipo de referência e ele [ o jovem da comunidade] pode ver um educador, uma pessoa que deu certo, uma pessoa que viaja, que mantém sua família através da cultura, que consegue, mesmo morando na comunidade, melhorar seu padrão de vida.”
Esses Mestres e grupos, foram escolhidos para a nossa pesquisa, devido à sua representatividade no processo estudado, no caso do Mestre Moraes, e pela posição de refletores e continuadores diretos do início da revitalização da Capoeira Angola, também pioneiros em um processo realmente muito novo, que é o da expansão internacional da Capoeira Angola no caso dos Mestres Jogo de Dentro e Valmir. Entretanto, muitos outros Mestres de Capoeira Angola poderiam estar sendo citados tanto para exemplificar a reestruturação da Angola em território nacional, quanto pelo fato de seus grupos possuírem sedes em outros países e continentes. Evidentemente, a Angola não alcançou, e talvez nem pretenda, o mesmo patamar de expansão e resposta econômica da Regional, ainda que tenha conseguido construir pequenas estruturas de auto-reprodução ( discursiva e material) e disseminação, geração de renda, e em muitos casos, de emprego. Mesmo a atual conjuntura internacional da Capoeira Angola, é vista com preocupação pelos Mestres entrevistados, entre os quais citamos o Mestre Moraes:
“Eu não considero como crescimento isso que está aí, pra mim é um inchamento.(...)O boom que aconteceu da Capoeira Angola, um tempo depois da Regional. (...) As pessoas não conheciam a Capoeira Angola fora do Brasil, começaram a se interessar por ela, e a Capoeira se tornou um passaporte e as pessoas, sem generalizar, saíram do Brasil pra ensinar a Capoeira Angola, sem um mínimo de conhecimento, e eu afirmo que a grande maioria não tem esse conhecimento. Eu falo isso, eu estou falando de uma Capoeira Angola dotada de elementos subjetivos. (...) Mas eu queria é que o mestre de Capoeira tivesse a condição de verbalizar o sentimento da nossa cultura, a Capoeira Angola, para pessoas de outras culturas, eu tenho ido para vários lugares do mundo e o que eu tenho visto, é uma limitação muito grande, dos Mestres de Capoeira. Eu falo isso relacionando ao título, você se voltando para as culturas orientais, um Mestre estrapola a prática, e é isso que eu cobro dos Mestres, que eles estrapolem a prática, que ele tenha condição de jogar Capoeira fora da roda.”.
Nesse sentido, nos parece que ainda há muito a ser conquistado pela Capoeira Angola, para que o seu processo de globalização se dê tendo como base a qualidade e não a quantidade, como é a preocupação expressa pelos mestres. O governo brasileiro tem, desde 2006, lançado editais públicos de financiamento para projetos relacionados à capoeira ( não determinando estilo de Capoeira), bem como Editais de reconhecimento oficial aos Mestres das culturas populares, que terminaram por contemplar alguns Mestres de Capoeira Angola30. È novamente o Mestre Moraes, que vai apresentar uma visão crítica, que busca perceber além das aparências:
“ Eu não acredito que seja fácil uma relação harmônica entre o Estado e a Capoeira porque quando isso acontecer, a Capoeira vai ter deixado de ser Capoeira. Eu fico com o pé atrás quando o Estado, quer apoiar a Capoeira. O que foi que houve para um estado que sempre foi inimigo da Capoeira, e a Capoeira também sempre inimiga do Estado, querer apoiar a Capoeira? Eu temo pela cooptação, que os capoeiristas já tenha sido cooptados o bastante, para que o Estado já não tenha medo da Capoeira.eu não acredito na possibilidade de uma relação não conflituosa entre o Estado e a Capoeira”.
O Mestre Curió, dirigindo a Associação para o Desenvolvimento Sócio-Cultural do Capuêra Angola (ADESCCA), vem se destacando, na reivindicação dos direitos dos angoleiros, mobilizando capoeiristas e políticos contra as investidas dos conselhos de educação física que se arvoram no direito de fiscalizar a prática da Capoeira, entre outras atividades físicas. Cobrando do governo medidas como a aposentadoria do velho mestre de capoeira. Além disso, lutando pela cessão de passaporte especial para os Mestres, que são verdadeiros embaixadores culturais do Brasil, promovendo a cultura nacional em todo o mundo, gerando renda através do turismo. Isso demonstra que os Angoleiros, cada vez mais estão buscando organizar-se em torno de demandas comuns, articulando-se a partir das experiências coletivas, buscando não deixar reproduzir-se um passado, onde era comum a morte na miséria dos Mestres Angoleiros.
Nas palavras do próprio Mestre Curió, nos seus mais de sessenta anos dedicados à Capoeira: “ Nosso Senhor é do Bom Fim, o bom começo fazemos nós!”
CONCLUSÃO
Expressão pertencente ao arcabouço cultural da população africana e descendente de africanos no Brasil, a capoeira, manifestação própria do povo negro, integrado à sociedade brasileira enquanto escravo( e portanto portador de status social negativamente diferenciado), esteve sempre sujeita a uma relação de ‘negociação e conflito’, com essa sociedade na qual se insere. Negada e perseguida enquanto tradição rebelde do povo escravo, representou grande incômodo para as classes dominantes dos centros urbanos coloniais e do Império, sempre tratada e vista como objeto de repressão, ainda que tenha sido por muitas vezes, utilizada politicamente eu uma relação de capangagem.
Mesmo após a abolição da escravidão e a proclamação da república, o elemento negro brasileiro permaneceu marginalizado e socialmente inferiorizado, sujeito a controle do Estado e objeto de acirradas discussões acadêmicas e políticas a respeito de modelos ideais para que se desse a sua integração nacional efetiva. Criminalizada no Código Penal de 1890, a Capoeira praticamente se extinguiu no Rio de Janeiro, em decorrência da forte repressão policial sofrida durante a 1ª República.
O mesmo período, na Bahia, é marcado pela consolidação do processo de ritualização da prática da Capoeira, característica singular da capoeiragem baiana, que vai diferenciá-la das demais e ser, possivelmente, fator responsável por sua sobrevivência e disseminação em outros estados.
Com a criação da Regional,em 1930, a capoeira entra no Estado Novo, iniciando um processo de renovação e adaptação, através da inserção em sua prática, de golpes de outras lutas, bem como de metodologias e perspectivas desportivas provenientes de outras artes marciais, o que vai possibilitar a superação progressiva de preconceitos raciais e classistas contra a sua prática, tornando-a em manifestação cultural e esportiva aceita pelas elites baianas e nacionais.
Em caminho inverso ao da Regional, que nessa época vivenciou franca expansão apoiada no discurso oficial de confraternização das raças formadoras do Brasil, e em uma perspectiva do esporte e da educação física enquanto formadores de cidadania e civismo, a Capoeira Angola vivencia uma progressiva desestruturação e decadência, que tem sua culminância com a morte do Mestre Pastinha, a extinção da maioria das rodas e o afastamento de mestres e praticantes.
A Capoeira angola não se adapta às formatações conduzidas pela capoeira Regional, que lhe possibilitaram tornar-se em produto cultural comercializável, assimilado pelas elites e veiculado pela mídia. A Angola é caracterizada então, como depositária das referências africanas e negras na capoeira, destoante do processo de afirmação da brasilidade e da identidade nacional miscigenada apregoada pelo Estado Novo e continuado pelo Golpe Militar de 1964. Essa não-adaptação vai corresponder ao seu isolamento e à não reprodução de sua prática, exemplificada pela falta de alunos jovens que pudessem continuá-la.
Após a morte do Mestre Pastinha, em 1981, poucas são os grupos e academias que representam a permanência da Capoeira Angola, caracterizando mais, casos de resistência sócio-cultural, do que exemplificando uma possível vitalidade e renovação. São os casos dos Mestres João pequeno e Curió, que mantinham os seus trabalhos na época.
Com a vinda do grupo de Capoeira Angola Pelourinho, ( GECAP), em 1983, inicia-se uma fase de mobilização e auto-afirmação da Angola, tendo como principal organizador o Mestre Moraes, diretor do GECAP, que desde então, passou a realizar eventos de Capoeira freqüentes, tendo como metas, resgatar do ostracismo e do isolamento os velhos mestres da Angola, promovendo a valorização de seus conhecimentos e de suas vivências, além de buscar a valorização da capoeira Angola como um todo.
Inserida no contexto do dinâmico quadro social dos anos 1980, nos quais diversos setores populares e de classe média tentavam se mobilizar para melhor organizar de forma autônoma as suas demandas específicas, essa movimentação dos angoleiros tem no discurso da resistência política e social étnica negra, sua principal referência, estando a quase totalidade de suas manifestações a partir de então, embebidas desse discurso, quando não objetivamente militantes.
O processo de mobilização e valorização da Capoeira Angola promovido pelo GECAP, é citado pelos mestres Jogo de Dentro e Valmir Damasceno, além de pelo pesquisador e autor Frede Abreu, como tendo sido importante marco catalisador e incentivador, para que se formasse uma nova geração de praticantes de Capoeira Angola, incorporados na percepção positiva desta e na necessidade de seu resgate e preservação qualificada.
A partir do final dos anos 1980, inicia-se o processo de mundialização da Capoeira Angola, com a ida de alguns mestres para o exterior e a abertura, nesses países, de filiais dos grupos brasileiros. Nesse momento, evidencia-se a apropriação, por parte da Angola – enquanto conjunto de grupos- de uma série de linguagens e mecanismos comerciais próprios da indústria cultural, que possibilitam uma maior assimilação dos seus conteúdos, práticas e rituais, como livros, cd´s, dvd´s, palestras e eventos de cunho didático e integrador, que facilitam a disseminação desta Capoeira por indivíduos leigos e provenientes de outras culturas.
A Capoeira Angola está apta para ser consumida, por um público cada vez mais apto para consumi-la.
Entretanto, estando o processo de revitalização da angola, sintonizado com o processo de empoderamento social, político e econômico da comunidade negra brasileira, este tem se dado então, de modo a possibilitar a sua gerência e coordenação, por parte de indivíduos oriundos desta comunidade, a partir de pequenas estruturas organizacionais juridicamente fundamentadas, que têm podido garantir o controle comercial das atividades de produção cultural e dos produtos daí resultantes. Além disso, o controle da própria reprodução capoeirística, em se tratando de aulas, fabricação de instrumentos, lançamentos de livros, teses, apresentação de palestras, e principalmente, em se tratando do estabelecimento de suas significações morais, éticas, filosóficas e estéticas.
De todo modo, diversos inconvenientes quanto a esse crescimento mundial da Capoeira Angola, podem ser citados pelos seus mestres, como o surgimento de “mestres” auto-intitulados, incapazes de apreender a integralidade subjetiva da Angola, a violência resultante de disputa de prestígio, e mesmo a relação da Capoeira com o Estado, é vista com desconfiança por alguns mestres. Contudo, diversos níveis de parcerias entre as entidades da Capoeira Angola e os poderes públicos municipais, estaduais e federais, têm sido estabelecidos e tido importante papel para a preservação e disseminação qualificada da Angola.
Por outro lado, a busca por institucionalização e organização dos grupos de Angola, tem sido crescente, objetivando o maior controle e poder de diálogo dessas relações, além de cobrar investimentos públicos, a ação dos políticos, autonomia diante das tentativas de ingerência por parte das entidades reguladoras da Educação Física, e mesmo, direitos trabalhistas para os capoeiristas.
Com o presente trabalho, esperamos estar contribuindo para um estudo multifocado da História do Brasil, que valorize a percepção da cultura enquanto prisma para a observação das várias ‘cores’ e perspectivas que compõem essa história conflituosa, diversa, dinâmica e viva. Nesse sentido, acreditamos no papel do historiador enquanto investigador e partícipe da sociedade que estuda e transforma, citando o Mestre jogo de Dentro no que diz respeito a mudar a história, “mas sem passar por cima daquilo que eu acredito, da minha história, e isso é importante.”
Fontes
Orais:
Frederico José de Abreu ( Frede Abreu) Economista e pesquisador da Capoeira
Entrevista em Outubro de 2007 . 37 min, 57 seg
Jorge Egídio dos Santos (Mestre Jogo de Dentro)Mestre de Capoeira
Entrevista em novembro de 2007. 39 min, 30 seg
Valmir Damasceno ( Mestre Valmir)
Entrevista em Novembro de 2007. 39 min, 10 seg
Pedro Moraes Trindade ( Mestre Moraes) Professor de Inglês, mestrando em História pela Ufba. Entrevista em novembro de 2007, 57 min , 08 seg
Jornalísticas
Acervo do Centro Cultural Quilombo Cecília
Jornal da Bahia, de 22/10/71, “ Pastinha, Tradição da Bahia em apuros’ ( Recorte sem indicação de número de página)
Jornal A Tarde, de 14/11/1981, “ Pastinha morre no abandono” ( Chamada de Capa)
Jornal Tribuna da Bahia, de 14/11/1981, “ Mestre Pastinha morre aos 92, como indigente”, Pág 06
Jornal Tribuna da Bahia, de 14/11/1981, “ Mestre Pastinha pede ajuda ( mas foi tarde demais)”, Pág 06
Jornal Correio da Bahia de 14/11/1981, “Morre Pastinha, um símbolo da cultura baiana ( recorte sem indicação de Número de página)
Jornal da Bahia, de 17/11/1981, “ A capoeira também perde a sua academia”, Pág 02
Jornal da Bahia, de 15/12/1981 “Missa de 30o dia pela morte de Mestre Pastinha”, pág 02
Revista Iê Capoeira, São Paulo: Empório Editorial, 1999, Número 05
Revista Praticando Capoeira, São Paulo: D+T, 2001, Número 16
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Salvador/2007
Fábio Oliveira Nascimento
A CAPOEIRA ANGOLA: DO OSTRACISMO Á MUNDIALIZAÇÃO – CONFORMAÇÕES DE UM PROCESSO (1980 -2006)
Trabalho de graduação feito por Fábio Oliveira Nascimento, apresentado ao Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – UcSal, sob orientação do professor Dr. Vilson Caetano de Souza Júnior, com o objetivo de obter o título de Bacharel e Licenciado em História.
Salvador/2007
Agradecimentos
Iê!
Aos Orixás, começo, meio e fim...
Á Yá Marlene Rodrigues, minha Mãe
Ao Mestre Jogo de Dentro, meu Mestre
À minha família pequena, Á minha família grande
Ao Núcleo de Estudantes Negr@s da UcSal – Makota Valdina
Ao Professor Vílson Caetano Júnior
Aos Colaboradores, Mestre Moraes Trindade, Mestre Valmir Damasceno, Mestre Jogo de Dentro, Frede Abreu
A Miles Davis, Sarah Vaughan, Billie Holyday, Fela Kuti, Jorge Aragão, Céu, Racionais, Nina Simone e Bob Marley, companheiros das horas de escrita...
Sumário
Introdução................................................................................ 05
Capítulo I................................................................................. 08
Capítulo II................................................................................ 13
Capítulo III............................................................................... 17
Capítulo IV............................................................................... 22
Capítulo V................................................................................ 24
Conclusão................................................................................. 36
Fontes........................................................................................ 39
Bibliografia............................................................................... 40
Introdução
No ano de 2007, os capoeiristas ( de ambos os estilos), se confrontaram novamente, com a discussão relativa ao interesse exposto por algumas correntes políticas, acadêmicas e mesmo de capoeiristas, em submeter o ensino da Capoeira (em conjunto com outras expressões físicas e culturais, como o Tai Chi Chuan, a Ioga, o Pilates, entre outros) à direção e fiscalização dos Conselhos Regionais e Federais de Educação Física. Curiosamente, uma expressão cultural historicamente discriminada e marginalizada, se torna objeto de interesse e disputa conduzida justamente pelas camadas sociais que anteriormente a discriminaram. Tratando-se de Capoeira Angola, esse interesse se torna ainda mais estranho, por esta ser uma modalidade de prática cultural, que não se aproximou historicamente, do desporto ou da atividade técnica esportiva, estando sempre vinculada à manifestação das práticas populares, vadiação, no termo usado pelos próprios capoeiristas.
È no âmbito da discussão acima referida, que surge o interesse em investigar, de que forma, uma expressão/manifestação cultural tida como retrógrada e marginal, vem a se tornar prática positiva plenamente aceita e disseminada pelos cinco continentes do planeta. Em se tratando da Capoeira, essa investigação, que não traz em si nenhuma novidade temática, toma, no entanto, feições diferenciadas, pelo fato dela, a Capoeira, já ter passado por um processo anterior de diálogo, transformação, adequação e filtragem para a sua aceitação/positivação social, tendo sido a Capoeira Angola justamente, o componente descartado por esse processo de filtragem, o que não pôde anteriormente ser “modernizado”, nem traduzido para uma linguagem “civilizada”, que permitisse a sua fruição por parte dos setores médios e altos da nossa sociedade.
A percepção da importância de uma abordagem social para o estudo da cultura, para que se possa alcançar uma compreensão profunda das sociedades, percebidas na dinâmica de suas contradições e dos diversos setores que lhe fazem parte, é fundamental para que se perceba a importância de que existam no Brasil estudos centrados na história da Capoeira, entendida enquanto expressão cultural socialmente contextualizada, que compreende em seus modos de produção e reprodução, amostras das construções sociais, históricas e psicológicas utilizadas pelos setores sociais nela envolvidos para agir e reagir dentro de um sistema social também dinâmico, estabelecendo práticas, percepções, discursos, representações e relações, que podem ser apreendidas enquanto vieses do processo histórico brasileiro, marcadamente, no século XX.
Nesse sentido, a Capoeira, pelas características de sua história, se estabelece como plano ideal para a percepção de formas utilizadas pelos setores subalternos da sociedade brasileira para se situar e atuar no cenário opressivo da sociedade brasileira. Mais ainda, quando essa prática outrora marginalizada, ascende ao patamar de prática cultural socialmente aceita e incentivada e, mais ainda, quando é justamente o seu setor mais tradicionalista e historicamente relacionado com as camadas mais pobres dessa sociedade, que vai ser alçado ao grau de referência socialmente positiva, e ser personagem de um processo de disseminação internacional, comercialmente e institucionalmente respaldado.
Estudar o processo de mundialização da Capoeira Angola, desde o ostracismo a que esteve relegado nos anos oitenta, até a sua atual fase de disseminação mundial e institucionalização, nos ajuda a perceber as modificações internas experienciadas pelos Capoeiristas Angoleiros enquanto grupo específico, em diálogo com a sociedade brasileira em geral, percebendo também aí, as mudanças de percepção e estrutura que possibilitaram (ou que foram forçadas) pra que essa transformação ocorresse, o que nos permite, desse modo ampliar a nossa percepção dos processos históricos da sociedade brasileira, enquanto cenário de conflitos e contradições, em constante movimento e adaptação.
Para a construção deste trabalho, dialogamos com a antropologia, utilizando autores como Roberto DaMatta e Waldeloir Rego, entre outros, buscando enriquecê-lo com uma disciplina que em muito tem contribuído com a História, apresentando abordagens diferenciadas e abrangentes, nos proporcionando os frutos de uma interdisciplinaridade há muito presente na prática da História. Entretanto esta pesquisa tem como referência teórica, a História Social Inglesa, nominalmente, a partir das obras de Edward Thompson, em sua disposição para contar a história daqueles que a história oficial não está habituada a enfocar, sem perder nessa narrativa a ligação com os papeis políticos e sociais exercidos por esses sujeitos, contextualizados no corpo de uma sociedade em permanente conflito hegemônico.
Embora não tenhamos tido contato, durante a pesquisa, com teses, livros, ou trabalhos outros dedicados ao estudo específico da nossa temática (o processo recente de popularização mundial da Capoeira Angola), e isso nos tenha forçado a alongar um pouco as contextualizações e principalmente a análise e reprodução das entrevistas, tivemos relativa facilidade em sua produção devido à proximidade e vida de Mestres e pesquisadores que vivenciaram, atuaram e conduziram diretamente o processo aqui enfocado. Além disso, dispusemos de toda a boa vontade do Senhor Frederico Abreu, coordenador do Instituto Jair Moura, em Salvador (que é simplesmente o maior acervo mundial sobre capoeira, com mais de trinta mil documentos históricos), o que nos facilitou bastante a vida, posto que a pesquisa, desenvolvida durante todo o ano de 2007, teve este Instituto como sede
No primeiro capítulo deste trabalho, nos ocupamos em propor algumas reflexões em torno de conceitos básicos sobre a Capoeira, como origens e geografia, além de apresentar um breve histórico da Capoeira, desde o século XVII até 1930, com a criação da Capoeira Regional, que complementamos no segundo capítulo, com um histórico da Capoeira Angola, até os anos de 1980.
No terceiro capítulo, a análise cronológica, dá espaço para a contextualização da Capoeira, relacionando-a ao processo histórico e social brasileiro na qual esteve inserida enquanto fenômeno urbano, dando maior ênfase, ao período que vai desde 1930, até 1980, e que compreende a criação e ascensão da Capoeira Regional, e a decadência da Capoeira Angola.
No quarto capítulo, realizamos uma breve contextualização sócio-política da década de 1980, período de abertura política pós-militarismo, no qual a Capoeira de Angola inicia o seu processo de revitalização, como fenômeno bem característico desse período.
No quinto e último capítulo, procuramos a partir de depoimentos recolhidos para esse trabalho, com o pesquisador Frede Abreu, e com três Mestres de Capoeira diretamente envolvidos no processo estudado, examinar minuciosamente o caminho mesmo de revitalização da Angola, seu histórico, seus personagens, seus espaços cruciais, seus discursos, suas estratégias e suas contradições, de modo a possibilitar um quadro vívido deste processo, relacionando essas informações testemunhais, com as informações contextuais e históricas acumuladas no decorrer do trabalho.
De todo modo, temos consciência das limitações de um trabalho monográfico, e esperamos que o processo de revitalização da Capoeira Angola, possa vir a ser mais profunda e atentamente estudado, sendo que esperamos estar contribuindo com a nossa parte, ainda que somente apontando direções.
Capítulo I
Breve Histórico da Capoeira
Longa foi a epopéia da nobre arte da Capoeira para chegar aos dias atuais da forma que chegou. De crime previsto no Código Penal a prática pedagógica em escolas públicas. De vadiação de carroceiros e estivadores a malhação das filhas da elite, nas mais caras academias de ginástica. Por longos e tortuosos caminhos, a Capoeira conseguiu chegar ao Século XXI, como expressão cultural de importância social amplamente reconhecida, seja por seu profundo conteúdo simbólico, no que se refere à preservação do patrimônio cultural tradicional das populações descendentes de africanos no Brasil, seja pelo caráter multi e inter-disciplinar que envolve a sua prática.
Ainda que a Capoeira tenha a sua permanência e disseminação positiva, historicamente ligada à capacidade intestina da comunidade negra em preservar e manter as suas expressões culturais e valorativas, às custas de um permanente diálogo com a sociedade que a cerca (e em alguns momentos o termo “cerca”, é literal), é antiga a relação direta entre a Capoeira e os poderes públicos, sendo que os Editais de apoio financeiro federal para projetos de capoeira, bem como o reconhecimento de seus Mestres enquanto “ Mestres da Cultura Popular”, a partir da primeira década deste Século XXI, representam um marco histórico nessa relação, o que parece indicar um amadurecimento desta, a partir de uma conceituação mais inclusiva de cidadania no Brasil.1
Aspectos diversos do processo que levou a Capoeira desde os artigos do Código Penal Republicano, dos fins do Século XIX2, aos editais federais de financiamento, vêm sendo investigados de maneira eficiente por diversos pesquisadores, entre os quais, podemos citar o antropólogo Waldeloir Rego, o economista Frederico Abreu e historiadores como Carlos Eugênio Líbano Soares, Josivaldo Pires, Augusto Liberac, Adriana Dias, cada um com um enfoque determinado, sendo referenciais, não somente para este, mas para a quase totalidade de trabalhos acadêmicos escritos atualmente sobre a Capoeira.3
Mesmo que não haja unanimidade entre os autores quanto às origens da Capoeira, o que se deve tanto á escassez de registros, quanto á diversidade de interpretações acerca do assunto, podemos fixar alguns indicativos que nos servirão como bases para podermos nos ocupar sobre o século XX, no qual se desenrolou grande parte do enredo que nos interessa.
Primeiro, que a Capoeira é uma expressão cultural de origem negro-africana, embora haja discordância se é genuinamente africana ou afro-brasileira, nos inclinamos a afirmar com Soares, se tratar de um agrupamento de expressões marciais africanas, “que se teriam amalgamado em definitivo na terra americana” (SOARES, 2004, p. 16). Segundo que a partir do Século XVII, a Capoeira se desenvolve no contexto das cidades mais urbanizadas e de comércio mais desenvolvido, notadamente: Salvador, Rio de Janeiro, Recife e Belém, importantes cidades portuárias, bem como nas cidades do recôncavo baiano, então pólo do intenso processo produtivo/comercial do ciclo do açúcar e da distribuição de viveres para Salvador.(SOARES, 2004, p. 17)
Terceiro, que nesses espaços urbanos, a Capoeira adquire status de ameaça à ordem e à segurança públicas, na esteira das políticas governamentais de restrição e perseguição às práticas culturais afro-brasileiras, perseguição esta que, no caso específico da capoeira, se intensifica a partir da proclamação da República, quando a capoeira, a Capoeiragem e os capoeiristas, passam a estar criminalizados pelo Código Penal de 1890. Considerando que, o peso dessa perseguição se distribuiu de maneira diversa nas diferentes áreas citadas, percebemos que a Capoeira (sua existência em si) se choca com o discurso oficial progressista e positivista (e logo higienista e eugenista) da República Brasileira. (PIRES, 2005, p.121).
São brilhantes e abrangentes os trabalhos de Soares, relativos á Capoeira carioca no final do período imperial, o de Pires e o de Dias 4, referentes ao período da primeira metade do Século XX na Bahia. O primeiro, realiza um amplo levantamento de dados referentes aos capoeiristas cariocas do império, possibilitando a partir dos registros policiais da época, a identificação mais próxima dos componentes desse grupo, suas origens étnicas, ocupações profissionais, distribuição geográfica no contexto urbano, entre outros pontos, como tipos de ocorrências policiais registradas e a relação dos Capoeiras com as temíveis “Maltas de Capoeira5, que nos permitem a compreensão mais ampla do panorama urbano carioca do Século XIX, tendo os Capoeiristas como protagonistas.
Já Pires e Dias, em obras muito próximas, utilizam, além dos registros policiais, notícias publicadas em jornais baianos do período compreendido entre a proclamação da República e a Segunda Guerra, oferecem um quadro ilustrativo do modus vivendi dos capoeiras baianos, descrevendo o seu habitat, nomeando personagens. Josivaldo Pires, dedica ainda um capítulo do seu “No Tempo dos Valentes”, para contextualizar a ação dos vadios e capoeiras no cenário político e econômico brasileiro na 1ª República, examinando o conteúdo dos discursos hegemônicos da época, referentes à análise social, que viriam a fundamentar o projeto de sociedade então levado a curso, as relações entre o Estado e as classes subordinadas, dando relevância às aspirações eugenistas e lombrosianas que influenciaram as relações supracitadas. ( PIRES, 2005,pp. 116-126).
Expressão cultural marginalizada e perseguida no período colonial e durante o Império, criminalizada na República, a capoeira vai experimentar, a partir dos anos 1930, um processo de superação das barreiras sociais em que estava encerrada, passando a atingir e ser aceita por um novo público, oriundo de extratos sociais diferenciados daqueles nos quais estava usualmente inserida. O ponto crucial para essa reviravolta na história da Capoeira, foi a criação em 1926, por Manoel dos Reis Machado, o Mestre Bimba, da Luta Física e Regional Baiana, posteriormente conhecida como Capoeira Regional.(REGO, 1968, p.268)
Com o intuito de tornar a Capoeira mais socialmente aceitável e marcialmente objetiva, Mestre Bimba inseriu na Capoeira, golpes de outras lutas, como o Jiu-Jitsu, o Boxe e o Savate ( Citar discordâncias nesse ponto), modificou a postura tradicional do jogo de chão, baixo, para uma prática mais ereta, alta, além de inserir no processo de aprendizagem, técnicas sistematizadas de ensino, como as seqüências de treinamento, uma metodologia didática e funcional para o desenvolvimento prático do aluno. Mais significativo ainda, no que podemos ter como primeiro momento de disseminação social da Capoeira, o Mestre Bimba introduziu no âmbito da sua Capoeira Regional, todo um aparato de ritos e cerimoniais similares aos das universidades (D´ANDRADE,2006, p.58) que vão desde o estabelecimento de uma hierarquia de graduações, que testificam a transposição pelo aluno, das progressivas fases do aprendizado, até a realização de festas de batizado para os alunos iniciantes e de formatura para os alunos que atingiam determinado grau na sua academia.
Se, segundo o próprio Mestre Bimba, a Capoeira era até então “coisa para carroceiro, trapicheiro, estivador e malandro” (ABREU, 2005, p.7), a partir das adaptações técnicas e simbólicas por eles implementadas, passa a atrair uma nova clientela, provenientes das classes média e alta, principalmente formada por estudantes universitários, que logo se tornariam médicos, advogados, engenheiros e políticos de importância regional e nacional.
É por intermédio desses alunos, que o Mestre Bimba vai ter viabilizado o reconhecimento social da sua Capoeira, inaugurando em 1930 a sua primeira academia e recebendo em 1937, um certificado oficial da Secretaria da Educação, Saúde e Assistência Pública, qualificando a Capoeira Regional como educação física e concedendo-lhe permissão para o seu ensino em recinto fechado.
O Mestre Bimba foi um homem que fez o seu tempo. Analfabeto, negro, pobre, conseguiu alçar a sua arte do status de “perigo social, para o de ”esporte nacional”(DIAS, 1996, p.79). Deu aulas de Capoeira para militares e acadêmicos , esteve por muito tempo presente nas páginas da imprensa local como lutador imbatível, apresentou sua arte em praças e palácios, para prefeitos, interventores, governadores e até mesmo para o Presidente Getúlio Vargas, que a declarou como “única colaboração genuninamente brasileira à educação” ( D´ANDRADE, 2006,p. 56), indicando o seu ensino nas escolas públicas.
Além de ministrar aulas para jovens oriundos da elite soteropolitana, Bimba teve também entre os seus clientes, filhos de fazendeiros, cacauicultores, políticos e pecuaristas de outras cidades baianas, que travavam contato com a capoeira, durante o seu período de estudos na capital, tornando-se importantes disseminadores do seu estilo de Capoeira ao retornarem para as suas cidades, ou transferirem-se para o sul do país (D´ANDRADE, Op.Cit, p.59). O Mestre frequentemente viajava para essas cidades, a fim de realizar batizados e formaturas, bem como shows e apresentações em clubes de elite, em festas oficiais. Em Salvador, também era solicitado para apresentações em teatros, desfiles cívicos, e cerimônias diversas.
Mestre Bimba era uma espécie de Herói da Bahia, embora por fatores diversos, não tenha sido ele mesmo grande beneficiário de sua obra. Tanto que em 1973, alegando a falta de apoio e assistência do governo baiano, parte para Goiás, acreditando nas promessas de um aluno de que lá ganharia muito dinheiro, vindo a falecer neste estado em 1974, pobre e desassistido. A Capoeira regional, no entanto tem a sua continuidade garantida pelos médicos, advogados, cirurgiões, políticos e engenheiros, feitos capoeiristas pelo Mestre Bimba. São esses que vão formar( no sentido de transmitir formação), a terceira geração de capoeiristas regionais, responsáveis por consolidar a institucionalização da Regional e sua disseminação por todo o país.
Desde fins dos anos 1960, muitos dos capoeiristas regionais baianos, vão integrar as equipes de shows folclóricos, como o Grupo Folclórico da Bahia, de Ubirajara Almeida, Mestre Acordeon, e o Viva Bahia, de Emília Biancardi, que vão percorrer Europa e América do Norte, apresentando demonstrações de Capoeira, em conjunto com danças-afras e outras expressões “folclorizadas” (REGO, 1968, p.238). Alguns entre esses Mestres, vão se estabelecer na Europa e na América iniciando o que podemos entender como segundo momento da disseminação da Capoeira Regional, quando os primeiros Mestre de Capoeira vão iniciar trabalhos no exterior.
Segundo o Mestre de Capoeira e Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, Nestor Capoeira, é nessa época que vai ocorrer uma nova e importante transformação na regional, com a agregação de inovações trazidas por jovens capoeiristas do eixo Rio - São Paulo, definindo um novo estilo para a Capoeira Regional, integrando ainda novas contribuições de outros esportes, como os saltos e acrobacias da ginástica olímpica.6
É essa a Capoeira que vai se tornar hegemônica no Brasil(mesmo na Bahia) e ser exportada para a Europa e Estados Unidos, estando presentes em mais de uma centena de países de todos os continentes. Tão significativa é esta modificação, que alguns pesquisadores da Capoeira, afirmam que o Mestre Nenel, filho do Mestre Bimba, seria um dos únicos Mestres que preservam ainda a Capoeira Regional, da forma como era praticada por seu pai. Para outros, no entanto, a transformação, é pressuposto em si do projeto do Mestre Bimba e a posição do Mestre Nenel, representaria um contra-senso.7
O fato é que desde 1940, a Capoeira Regional se disseminou com sucesso por todo o país. A partir dos anos 1970, esse sucesso alcançou os cinco continentes, consolidando uma gigantesca estrutura econômica de viés empresarial, que pode ser exemplificada por encontro recentemente realizado em Salvador pelo Grupo Abadá Capoeira, do Mestre Camisa, que reuniu cerca de 5 mil capoeiristas de mais de trinta países, que eram, em sua maioria, alunos de filiais do Abadá Capoeira espalhados pelos cinco continentes8. Em contrapartida, a Capoeira Regional experimenta também desde os anos 1970, sua popularização, pulverizando-se por todos os bairros pobres e de periferia do país. Isso, na nossa perspectiva, representa menos uma ‘deselitização’ da Regional, do que a disseminação padronizada do modelo hegemônico, tido como ideal e veículo de ascensão sócio-econômica, tendo em vista o excelente mercado de trabalho internacional aberto por essa Capoeira.
Capítulo II
A Capoeira Angola
A partir de 1930, com a criação da Capoeira Regional, a Capoeira até então praticada, passa a ter sua história significada através da contraposição à sua modalidade hegemônica. O “sua”, é referente ao fato evidente de que a Regional é derivada dessa Capoeira, uma modalidade para a sua prática. No entanto, é essa Capoeira anterior, que vai ser obrigada a definir-se por contraste. O Próprio termo “Capoeira Angola”, que relaciona a prática à sua origem africana, definindo inclusive, uma especificação étnica, se dá posteriormente à criação da Regional, e com a função objetiva de diferenciar-se dela. Antes disso, o que se tinha era “a” Capoeira, e sua prática era a capoeiragem, a vadiação pura e simples ( REGO,1968, p.19).
A Capoeira Angola, passa a desempenhar o papel de contraponto à Regional. Esse papel se exerce de forma consciente e deliberada por parte dos Mestres da Angola , que optam por insistir na preservação das práticas tradicionais da Capoeira, bem como de uma estrutura de valores, conceitos e rituais diretamente ligados ao mundo simbólico africano. O momento inicial da cisão da Capoeira, é o momento o qual os sujeitos sociais envolvidos, buscam definir os seus discursos, de modo a referendar e justificar as suas práticas a partir de um aporte conceitual que baseie e dê sentido às suas especificidades. Ainda que não seja o nosso objetivo a realização de uma análise do discurso no presente caso, nos parece importante ressaltar, ter sido sobre essa base discursiva inicial, que se desenrolou a fiação da trajetória capoeirana no Século XX e nesse início de XXI. Justamente, no contraste entre cultura negra X Cultura brasileira , cultura popular X cultura de elite , expressão cultural x desporto, vadiação x educação física , ritualística com ritual africano x ritualística com referencial europeu, que se deu em graus variados e variantes a relação de co-existência entre as duas capoeiras.
No entanto, a despeito dessas contradições e da gravidade empírica delas resultantes , como brigas de ruas e restrições sobre a visitação mútua , algo de diálogo e negociação se estabeleceu no reino da Capoeira. Exemplo disso, é a utilização pelo grupo da Capoeira angola, de alguns espaços e linguagens de inserção/intermediação abertos pelo grupo da Regional. Em 1941, o Mestre Pastinha abre a sua academia de capoeira, incorporando alguns padrões simbólicos, como a exigência do uso de uniforme, o registro cartorial da entidade, as carteirinhas de associados, que representam uma clara ruptura para com o caráter espontâneo, não institucional e, necessário dizer, marginal da capoeiragem clássica. Além disso, a utilização de seqüências de treinamento , representam também uma inovação relativa ao processo de aprendizado da Capoeira Angola, até então pautado nos processos de transmissão comunitários de conhecimento, baseados na oralidade e no exemplo.
Desde os anos 1940, além da academia do Mestre Pastinha, houveram outras, como a do Mestre Waldemar, do Mestre Caiçara, do Mestre Canjiquinha, do Mestre Bobó, do Mestre Cobrinha Verde, do Mestre Espinho Remoso, do Mestre Ferreirinha, de Santo Amaro, entre outros.9 Esses Mestres, são representantes da geração de Mestres de Capoeira Angola, que formou a quase totalidade dos mestres que, nos dias de hoje, são tidos como sendo “os velhos guardiões da Capoeira Angola”, como os Mestres: João Pequeno, João Grande, Curió, Boca Rica, Mestre Bigodinho, Mestre Lua de Bobó, Mestre Virgílio, e o falecido Mestre Paulo dos Anjos, todos esses em uma faixa de idade que varia entre 60 e 90 anos. São senhores cuja memória histórica imediata ( que se soma á dos seus avós), alcança cerca de 150 anos, o que nos relaciona a um período que é, contemporâneo à escravidão, anterior aos impactos da revolução industrial no Brasil, e mais ainda, às revoluções tecnológica e informática. Por conta disso, são justamente considerados como portadores de imenso saber e proprietários de laços estreitos com a ancestralidade africana no Brasil.
Alguns entre esses Mestres, vivenciaram diretamente o processo de hegemonização e disseminação da Regional, enquanto outros apenas os seus impactos. Os anos 1930, 40 e 50, são ainda lembrados como grandes anos para a Capoeira Angola, posto que essa hegemonia ainda não se dera por completo. O livro de Frederico Abreu, “ O Barracão do Waldemar”, é ao mesmo tempo funcional e comovente, na forma em que descreve o espaço do Bairro da Liberdade, onde o Mestre Waldemar realizava suas rodas no período citado, atuando como espaço de lazer e convergência comunitária.10
É a partir da década de 1970, que o refluxo iniciado em 1930, vai se fazer sentir de forma mais contundente, com a extinção de muitas rodas, muitos mestres se aposentando (da Capoeira), desmotivados pela falta de incentivo e interesse popular pela Capoeira Angola, outros ainda ficando doentes e desassistidos. O Mestre Pastinha é um dos mais representativos da trajetória da Capoeira Angola, que se confunde com a sua própria vida. Nos anos 40 e 1950, sua academia, localizada no sobrado de número 19 na Ladeira do pelourinho, era muito movimentada por muitos alunos, artistas e intelectuais, além de estar incluída nos roteiros turísticos. Toda essa movimentação, no entanto, não foi suficiente para garantir ao Mestre qualquer estabilidade econômica.
Capoeirista, pintor, escritor, filósofo, respeitado entre toda a intelectualidade baiana, frequentemente citado na imprensa local, não possuía meios para acumular para si, proventos advindos da utilização de sua imagem. Seguindo a linha de Márcio de Abreu (2006,p.25), percebemos que o Mestre Pastinha, tanto quanto o Mestre Bimba, o Mestre Waldemar, e muitos outros, foram vítimas de um modelo de mais-valia cultural, posto que possuíam a mão de obra Capoeira, a linguagem adaptativa necessária para transformar a sua arte em “produto cultural”, mas não eram proprietários dos “ meios de produção cultural”, que viabilizariam a absorção própria dos lucros gerados por sua prática. Nos debruçaremos de forma mais detalhada sobre este tema em capítulo posterior, mas o fato é que, fora das luzes do palco/roda, esses mestres eram, essencialmente, homens negros em um sociedade racista, pobres, artífices de uma atividade artística que não lhes propiciava quaisquer dos direitos básicos trabalhistas, como aposentadoria ou pensão.
Em 1967, o Mestre Pastinha, já com sérios problemas de saúde e com um processo de cegueira bastante avançado, viaja com o seu grupo para representar o Brasil no Festival de Artes Negras realizado em Dakar, no Senegal. Tamanha representatividade, não significava nenhuma mudança no seu status social. Em 1971, já cego, o Mestre tem o imóvel onde estava instalada a sua academia, tomado pelo governo do Estado, sob a alegação de que após a sua reforma, o Mestre retornaria. O processo foi acompanhado pela imprensa local até seu desfecho, que culmina com a transformação do espaço em um restaurante de comidas típicas do SENAC, e o Mestre, doente, cego e na miséria, abandonado em um cubículo úmido em um dos inúmeros becos do Pelourinho. Sua morte, em 1981, em um quarto do Asilo São Pedro, com o apoio único de sua última esposa, Dona Romélia, é ilustrativa do momento infeliz vivido pela Capoeira nos anos 1970 e início dos 80, com o fechamento de academias, a doença ou a morte de Mestres e, principalmente, a falta de novos praticantes que pudessem representar a renovação, reprodução e permanência da Angola12. Menos de 10 grupos de Capoeira Angola poderiam ser encontrados em toda a cidade, enquanto que os grupos da Regional eram contados à centenas, em qualquer esquina de qualquer bairro, realizando eventos, formando professores, em programas de TV, em escolas, em clubes. O destino da Capoeira Angola parecia ser o desaparecimento , tornar-se peça de museu, um objeto anacrônico de prática não apropriada para a “moderna modernidade”, “ Coisa de velho” era o que os Mestres mais ouviam, enquanto viam a saúde se esvair e os alunos e admiradores desaparecerem. Ser “angoleiro” era motivo de espanto e de zombaria, um incômodo que teimava em atravancar a ‘evolução’ da Capoeira em seu caminho para ocupar o seu lugar na sociedade brasileira.
O processo que conduz a Capoeira Angola, desde essa fase de ostracismo e quase extinção, até os dias atuais, em que se encontra disseminada em todos os continentes, respeitada e conceituada, gerando emprego e renda ( e pagando INSS), ocupando diversos espaços na sociedade, inclusive com suporte financeiro do Estado Brasileiro para subvencionar as atividades dos “Mestres da Cultura Popular”, é o foco e objeto deste trabalho. Vamos, antes disso, rever um pouco do processo sócio-político brasileiro da segunda metade do século XX, para uma melhor compreensão de como a trajetória capoeirana esteve relacionada com o contexto das variações políticas e ideológicas nacionais, e de que formas os capoeiras se relacionaram, atuaram e intervieram nesses cenário, de modo a influenciarem ou serem influenciados por ele.
Capítulo III
A Capoeira e a sociedade Brasileira
A partir do estudo cronológico da história da Capoeira, proposto no capítulo anterior, pretendemos perceber três momentos históricos diferenciados, no que diz respeito ás relações entre Estado e a sociedade dominante brasileira com a Capoeira:
O primeiro, no período colonial, está inserido no contexto das perseguições generalizadas às manifestações culturais da população escravizada, o que agrega à Capoeira, as danças, batuques e as religiões afras. A perseguição às expressões culturais negras na colônia e no império, são conseqüentes da percepção então corrente, do escravo como rês, como coisa desprovida da integralidade das características humanas, estando, portanto as suas expressões mais aproximadas de demonstrações de bestialidade, imoralidade e barbarismo, do que de qualquer noção civilizada de ‘cultura’. Ainda que houvessem graus e modelos alternados de repressão às expressões culturais negras, a relação sempre se deu no âmbito da repressão e do controle 13.
O segundo momento está compreendido na primeira República, caracterizado como período de criminalização da capoeira e, se inicia com o Código Penal Republicano, de 1890, indo até 1930. Nesse segundo período, somam-se às teorias racistas de Gobineau, uma nova gama de preconceitos etno-sociais constantes no ideário positivista da república14. O Pós-abolição traz a necessidade premente de definirem-se políticas para a integração e controle da população negra liberta, na sociedade brasileira. Nesse contexto, a aproximação entre a medicina e a criminologia na construção de uma teoria de análise social com pretensões cientificistas, vai fundamentar as políticas de controle populacional implementadas pelo estado brasileiro.
Especialmente sob influência da produção acadêmica oriunda das faculdades de medicina de Salvador e Rio de Janeiro das primeiras décadas do Século XX, vão ser implementadas políticas públicas de caráter higienista e eugenista, objetivando os vários níveis de “saneamento social”. Os padrões de organização urbana das capitais européias vão inspirar as reformas urbanistas e as campanhas massivas de saúde nas grandes cidades. Por outro lado, a teoria eugenista inspira as políticas nacionais de imigração, com a importação maciça de trabalhadores europeus para substituir a mão-de-obra escravizada.
Conquanto não houvessem políticas públicas que objetivassem a integração sistemática do ex-escravo na sociedade e no mercado de trabalho, o elemento negro, posto à margem, vai ser arbitrariamente associado às próprias mazelas sociais que o vitimam, a partir da interpretação racial das teorias frenológicas do italiano Cesare Lombroso15, acerca das relações entre tipo físico, comportamento criminoso e insanidade mental. Os escritos do antropólogo maranhense Nina Rodrigues, e sua influência sobre a Gazeta Médica da Bahia, vão estamentar a idéia do negro enquanto tipo humano naturalmente delinqüente e propenso a desvios psiquiátricos, que vão ter ampla aceitação nos meios jurídicos e médico-legais brasileiros, direcionando uma série de medidas e políticas a nível penal e psiquiátrico.
No Rio de Janeiro, são fartos os registros referentes a prisões de capoeiristas por crime específico de Capoeiragem, conforme previsto no artigo 402 do Código penal da República. Muitos desses capoeiras eram conduzidos para colônias correcionais como a de Fernando de Noronha, reservada para essa espécie de crime. Na Bahia, os pesquisadores não puderam encontrar registros de prisões por crime de capoeiragem, sendo recorrente porém, a citação nos registros de prisão da época, por vadiação e brigas de rua, de diversos nomes conhecidos e reconhecidos dentro da capoeiragem baiana. Muitos dos indivíduos constantes nesses autos de prisão por vadiagem, estão presentes nas listas dos capoeiristas “da antiga”, citados, por mestres como Pastinha e Noronha (PIRES, 2005, pp.146-148)
Os anos de perseguição institucional à Capoeira correspondem à quase total extinção da capoeiragem clássica carioca. Alguns autores apontam a Revolta da Vacina, como último episódio da atuação maciça dos Capoeiras do Rio, registrados entre os mais notáveis agitadores (MNU, 1988, p.67). Em Salvador, a prática da Capoeira adquiriu caráter diferenciado, com a incorporação permanente (embora de modo diverso, de acordo com o momento, lugar, ocasião), do uso de instrumentos musicais como suporte rítmico do Jogo. A própria conceituação da Capoeira como “Jogo”, é uma especificidade baiana, uma transmutação da Capoeira arma de combate, para uma Capoeira ritualizada, repleta de comportamentos simbólicos metodicamente exigidos para que a participação do praticante se dê de maneira integral.
A Capoeira baiana se dissemina em rodas, montadas nos bairros populares, principalmente em lavagens e festas, desafiando abertamente a repressão policial, em demonstrações públicas de agilidade e destreza corporal. É ao mesmo tempo, um momento ritual, onde somente determinado grau iniciático garante uma percepção completa, como também uma apresentação pública atraente, que envolve a assistência pela beleza dos movimentos e pela riqueza dos sons.
O terceiro momento, que se inicia com o Estado Novo e se estende por boa parte da 2ª metade do vigésimo século, até fins da ditadura militar, representa um importante momento para a construção ideológica de um projeto de identidade nacional brasileiro. Quando o grupo positivista gaúcho, representado por Getúlio Vargas assume o governo central, traz para o poder uma concepção bastante particular das idéias comnteanas, agregando um projeto de governo centralizador e intervencionista, descrente do programa liberal:
“ ... a autoridade saída do consentimento geral dos povos não passa de uma fórmula grotesca, cuja impotência e incapacidade para a solução dos magnos problemas oferecidos pela civilização hodierna, dia-a-dia vão se firmando na consciência dos homens esclarecidos.(...) Isso de soberania popular, de governo do povo pelo povo, são conceitos vãos, criados para estorvar a ação da autoridade no estudo das questões sociais cuja solução só se deve inspirar na necessidade histórica e na utilidade pública”16
Vargas se dedica com afinco à consolidação de uma “cultura nacional”, bem como do próprio sentimento de nacionalidade através desta identidade cultural nacional. Nesse contexto, as idéias raciais segregacionistas e excludentes sobre negros e indígenas, dão lugar ao discurso do congraçamento das três raças fundadoras, em um país que se orgulha de sua condição de miscigenado, onde as raças se misturam e não existe preconceito racial. O mito da democracia racial inaugurado por Gilberto Freyre em seu Casa-Grande e Senzala17 é incorporado ao discurso oficial do governo Vargas, com negros, brancos e índios, formando o conjunto etno-psico-social do povo brasileiro.
Independente das discrepâncias sócio-econômicas extremas separando empiricamente os diversos componentes étnicos da população brasileira, o discurso ferrenho da igualdade racial, serviu inclusive para vetar qualquer tipo de organização social fundamentada em sua especificidade étnica, como é o caso da Frente Negra Brasileira, proibida por Vargas em 1937 ( MNU,.1988,p.70). Estado Novo, ideologia nova, fazia-se necessário um homem nacional novo, que encarnasse a nova auto-percepção do país.
O eugenismo tem então influência crescente nas políticas sociais do Brasil, com eugenistas renomados ocupando cargos públicos de importância, nas áreas de saúde e serviços. Belisário Pena um dos fundadores da Sociedade Eugenista Brasileira, chega a Ministro de Saúde de Vargas, após ocupar diversos cargos menores. É um eugenismo adaptado, certamente, o que busca reunir as melhores aspectos das raças que compõem a população nacional, para a construção do homem brasileiro. A nossa miscigenação, seria capaz de, processualmente, agregar as qualidades de negros, índios e brancos, principalmente, “depurando as raças inferiores’ de suas vicissitudes atávicas”. Por outro lado, uma estrutura moderna de repressão e isolamento dos indivíduos socialmente desviantes era montada, “vigiando e punindo”, aqueles que não se enquadrassem na nova ordem social (SCHWARCZ, 2002).
No campo da cultura, essa mudança de perspectiva também pôde ser sentida. As expressões culturais negras, até então perseguidas e negadas, vão ser incorporadas enquanto contribuições à cultura brasileira , e mesmo enquanto expressões exemplares de nossa cultura. No entanto, do mesmo modo que na relação eugenista referente à genética , essa integração representava uma depuração dos caracteres étnicos mais arraigados em prol de uma “brasilização” de suas práticas, de seus espaços, de suas linguagens e principalmente, de seus discursos. A religião, o samba, a dança, os folguedos negros passam a ser aceitos, na medida em que deixem de representarem espaços específicos de sua comunidade étnica, para se tornarem componentes do folclore brasileiro, expressões inermes, desprovidas de risco, meros reprodutores de um passado que já não se reputa transformador ou influenciador da realidade, pelo contrário, torna-se veículo reprodutor da ideologia do estado, produto cultural de consumo interno e de exportação, de grande lucratividade para uma indústria cultural incipiente.18
A ditadura militar que se inicia em 1964, após um brevíssimo intercurso democrático, embora represente uma mudança na postura econômica do país, com a economia brasileira sendo aberta para o capital norte-americano, não traz qualquer modificação no que se refere ao “lugar” do negro na sociedade brasileira: mão-de-obra barata e não especializada, sendo o futebol, a música e as artes em geral, as únicas vias de ascensão social e financeira do negro. Qualquer manifestação sócio-cultural negra que representasse alguma contestação coletiva desta comunidade era tida por “contrária ao espírito nacional” racialmente democrático. Conquanto não houvessem mobilizações políticas que demandassem repressão policial coordenada, a repressão psicológica era sempre imediata e unânime, tanto da direita, quanto da esquerda que buscava tomar o poder.
É nesse período que a Capoeira Regional atinge o seu apogeu, alcançando plena aceitação em todos os setores da sociedade, disseminando-se pelo mundo, enquanto a capoeira Angola caminhava a passos certos para a extinção. Obviamente, a percepção oficial de cultura e a política cultural proveniente dessa percepção, não são suficientes para, por si sós, determinar a extinção das expressões culturais que não se enquadram no seu modelo padrão. Contudo, o fato é que as expressões culturais dissonantes, passam a sobreviver de forma bastante marginal à cultura oficial, num claro desafio das culturas populares, às imposições da cultura popular oficial veiculada para as massas pelas mídias.
Esse é o caso do samba da malandragem, do jongo, do Candomblé e da Capoeira Angola, entre outros, que vão se manter forçosamente guetificados, com todo o seu potencial latente testemunhado somente por grupos restritos de adeptos.
A caracterização desses três momentos históricos diferenciados, no que se refere à relação entre o Estado e as elites brasileiras com a cultura negra, nos permite propor um quarto momento, que se inicia em finais dos anos 1970, com o processo de abertura democrática da política brasileira, se estendendo até os dias de hoje, quando essa democracia ainda não plenamente consolidada ( e talvez longe disso, ainda), se enriquece, ao menos, com a abertura de espaços para que sejam expressas e ouvidas as vozes da diversidade.
Capítulo IV
Índios e padres e bichas, negros e mulheres, e adolescentes, fazem um carnaval...
A frase titular deste capítulo, extraída da música “Podres poderes”, gravada por Caetano Veloso em 1984, reflete certo incômodo do autor, quanto ao efervescente cenário nacional dos anos 1980. De fato, a diversidade das vozes sociais que se levantaram por todo o país, poderia realmente soar como cacofonia, para qualquer ouvido acomodado ao silêncio de chumbo dos anos de ditadura militar. Mesmo aqueles representantes de certa intelectualidade brasileira acostumada a ser porta-voz única dos supostos anseios do povo, assistiram com receio o momento em que os diversos setores populares brasileiros buscaram se organizar para expressar suas idéias, suas demandas e seus projetos.
Se este “carnaval” feito pelas assim chamadas “minorias sociais” desagradaram a alguns intelectuais de direita e de esquerda, deve-se provavelmente ao fato destes estarem por demais apegados aos lugares sociais nos quais essas parcelas da população estavam convencionalmente encerradas. No entanto, se atentarmos para Roberto da Matta, veremos que o carnaval é o momento ritual, no qual os papéis sociais são invertidos, colocando os estamentos cotidianos de cabeça pra baixo(DAMATTA, 1997, p.81) o que pode certamente causar certa vertigem para alguns.
Os anos 80, são anos de intensa efervescência. Índios e padres, bichas, negros e mulheres e adolescentes, se organizavam em grupos específicos para, a partir da sistematização das suas experiências coletivas, perceberem as suas demandas comunitárias, traçarem planos de ações para construir soluções e, por meio da pressão popular, exigir dos poderes públicos, as vias para que essas soluções fossem alcançadas. Era época da campanha das Diretas-Já, que reuniam milhões de pessoas nas praças do país, clamando pela abertura democrática. Índios seqüestravam diretores da Funai, os padres “comunistas”, organizavam as periferias nas Comunidades Eclesiais de Base, os homossexuais também formavam seus grupos, e o GGB (Grupo Gay da Bahia), fundado em 1980, é referência nesse sentido. Os movimentos negros que se reuniram em 1978 para formar o MNU, adquiriam cada vez mais força, unindo política e cultura numa fórmula de sucesso, as mulheres se reforçavam nos grupos de Gênero, fosse em organizações específicas ou em núcleos existentes dentro de outras organizações, como no próprio MNU, enquanto os adolescentes também criavam os seus problemas, tanto nos movimentos estudantis, quanto nos bandos de punks, que infestavam as ruas escuras das grandes cidades. O país estava convulso.19
Em Salvador, o ano de 1981, é o ano do memorável quebra-quebra dos ônibus coletivos , contra o aumento das passagens. È ano das grandes invasões de terrenos urbanos, das grandes passeatas contra o desemprego, contra a carestia, pela estruturação dos bairros de periferia, ano de muita violência policial. A sucessão de acontecimentos que transtornavam a cidade, foi suficiente para provocar a demissão do então prefeito Mário Kértez e ocupar por bastante tempo os noticiários nacionais.
Mil novecentos e oitenta e um, foi também o ano da explosão da bomba do Riocentro, escândalo em torno de um fracassado atentado terrorista tramado pelas forças armadas, que culminou com a morte acidental de dois militares. Foi ano de Flamengo campeão mundial em Tóquio.
No dia 13 de novembro de 1981, morre o Mestre Pastinha. Registro videográfico realizado nos últimos dias de sua vida e incluído no documentário “Capoeiragem na Bahia”, mostra um resto de homem. Encolhido no canto da cama, sem dentes, cego, silencioso, fechado em seu mundo. Dia 14 de novembro, os jornais retrataram o enterro pobre, pequeno, sem os artistas e intelectuais que se diziam seus amigos, sem políticos, sem autoridades ou diretores dos órgãos de turismo, nem mesmo os seus alunos se fizeram presentes para segurar as alças do caixão. O Caixão, foi comprado por Dona Romélia, sua última esposa, que, vendeu acarajé, para que o Mestre não fosse enterrado em um caixão de indigente.
Se em 1968, o sociólogo Waldeloir Rego, já percebia em seu ensaio Sócio-etnográfico da Capoeira Angola, um quadro de decadência (REGO,1968,p 202) , o início dos anos 80, marcado pela morte do Mestre Pastinha, representam o fundo do poço, o ponto do não retorno, no qual a Angola, por inércia, tendia a permanecer.
Capítulo V
A revitalização da Capoeira Angola
No presente capítulo, nos utilizamos de informações advindas das entrevistas realizadas durante o período de pesquisa, para dar suporte às investigações referentes ao processo de reversão desse quadro de decadência. Nesse sentido, buscamos situar este processo no contexto sócio político atravessado pelo país na época enfocada, travando um diálogo entre o conteúdo das entrevistas e a contextualização social, política e cultural por nós levantada nos capítulos anteriores, buscando perceber as relações existentes entre os desenvolvimentos internos do grupo da Capoeira Angola, com os desdobramentos externos atravessados então pelo conjunto da sociedade brasileira, no qual a Capoeira e os capoeiristas estão inseridos.
O deslocamento da Capoeira desde o espaço determinado para a cultura popular, até o espaço reservado aos esportes da elite, dá-se devido a uma transformação do seu discurso interno, bem como da linguagem através da qual esta se apresenta externamente. Se entendermos a cultura popular como “aquela produzida pelo povo, para ser consumida por este mesmo povo, de produção anônima, isto é de domínio público e muitas vezes, uma construção coletiva” (DIAS, 1996.p.71), percebemos que a disseminação da Capoeira entre as elites baianas a partir dos anos trinta, é resultante de certa descaracterização representada pelas adaptações efetuadas pelo Mestre Bimba, objetivando, segundo o próprio mestre “ tirar a Capoeira debaixo do pé do boi”. Thompson, entretanto, nos avisa para “ ter cuidado quanto a generalizações como ‘cultura popular’ com uma perspectiva ultraconsensual dessa cultura”(THOMPSON,1998, p17). Para o historiador inglês,
“ longe de exibir a permanência sugerida pela palavra ‘tradição’, o costume era um campo para a mudança e a disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentavam reivindicações conflitantes.(...), [esse costume] não se autodefinia, nem era independente de influências externas.(...) Uma cultura é também um conjunto de diferentes recursos em que há sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o dominado, a aldeia e a metrópole...”20.
Para Márcio Abreu,
“ a genialidade do Mestre Bimba, esteve justamente em sua reinterpretação de códigos acadêmicos, lhes dando novos significados e utilizando-os, através da Capoeira, como uma via de transposição de valores.(...)O Mestre Bimba soube aproveitar-se de situações sociais e culturais que lhe permitiram de alguma maneira, atingir resultados práticos, indispensáveis à consolidação do seu projeto de ‘tirar a Capoeira debaixo do pé do boi’ – este entendido como um esforço para que a Capoeira alcançasse uma visibilidade positiva e o reconhecimento social”.21
Se retornarmos à contextualização referente ao cenário político brasileiro na década de 1930, com a implantação do Estado Novo, percebemos que esse processo se estabelece “ através das novas dimensões dadas à ‘indústria do espetáculo e do lazer” ( ARAÚJO, 1992, p.31), em um momento em que uma indústria cultural incipiente, tornava-se importante veículo de construção hegemônica da identidade nacional pretendida pela burguesia. Examinando o processo de disseminação do samba, em processo historicamente e contextualmente próximo ao da Capoeira Regional, Maria de Lourdes Gomes compreende a ascensão musical do samba “intimamente ligada a um novo momento político do país, sendo necessário fazer uma gigantesca síntese de vários padrões e recursos estéticos criados pela mídia para satisfazer o gosto e o desejo dos empresários” (GOMES, 2002, p.28), “ Uma adaptação de seus recursos a um público já propriamente ávido por se identificar como cidadão moderno, moreno, mas industrial, pobre, mas em desenvolvimento...” (Id. 2002.p. 27)
Foi a função desta ‘indústria cultural’ “a adaptação de produtos da alta cultura ou da cultura popular, realizada de forma mecânica, para ser distribuído em larga escala para o consumo das massas”.( DIAS, 1996, p.71)
Nesse contexto, “ tudo o que surge é submetido a um estigma tão profundo que, por fim, nada aparece que já não traga antecipadamente as marcas do jargão sabido e não se demonstre, à primeira vista, aprovado e reconhecido”(ADORNO,2002,pg 18). Importando principalmente a “ capacidade de sujeitar-se minuciosamente às exigências do idioma da simplicidade” (Id. Op. Cit, p.19). Assim, a Capoeira Regional efetivou perfeitamente o depuramento das características raciais mais arraigadas a que nos referimos anteriormente, de modo a adequar seu conteúdo e sua linguagem aos pressupostos ideológicos do momento histórico-político tratado, veiculados e massificados através dos meios de comunicação da época.
É no Estado Novo que a “educação física passa a fazer parte dos currículos escolares, para a tender às necessidades de fortalecer fisicamente o branco, que era débil, assim como, de disciplinar o negro, que era considerado vadio e embrutecido” ( DIAS, 1996, p. 73) A ‘vadiação’, nome utilizado pelos próprios negros para designar a brincadeira descompromissada da Capoeira, passa a representar um paradoxo à moderna padronização da Capoeira desportiva e sistematizada, o que nos manda de volta a Adorno, quando afirma que “ a indústria cultural pode se vangloriar de ter erigido em princípio a transposição – tantas vezes grosseira- da arte para a esfera do consumo, de haver liberado a diversão de sua ingenuidade mais desagradável.” (ADORNO, 2002, p. 28)
Não pretendemos defender uma visão maniqueísta que polarize contrariamente as Capoeiras Regional e Angola, categorizando vilões e heróis, no entanto, as pesquisas nos indicam ter a Regional ocupado o ‘lugar’ previsto para o negro integrado, tendo como base uma perspectiva feryreana de confraternização das raças fundadoras. Enquanto isso, a Angola teria sido depositária dos ‘africanismos anacrônicos’ responsáveis por sua exclusão da modernidade corrente.
Repetindo Thompson em sua reflexão sobre a cultura popular inglesa do século XVIII, e referindo-a à Angola, “ temos assim um paradoxo característico daquele século: uma cultura tradicional que é, ao mesmo tempo, rebelde. A cultura conservadora da plebe quase sempre resiste, em nome do costume, à racionalizações e inovações da economia.” ( THOMPSON, 1998,p. 19) .
“O processo do capitalismo e da conduta não-econômica baseada nos costumes, estão em conflito, um conflito consciente e ativo, como numa resistência aos novos padrões de consumo (necessidades), às inovações técnicas ou à racionalização do trabalho que ameaçam desintegrar os costumes...”22
Na mesma linha de raciocínio, a decadência da Capoeira Angola teria sido determinada por sua não adequação aos ícones metodológicos, estéticos, e comunicacionais pressupostos pela indústria cultural nacional incipiente, em sua busca essencial por consolidar uma identidade nacional ideologizada e burguesa:
“ O negativo desloca-se para a Capoeira Angola, representante das tradições e por isso, dos negros, da vadiagem, dos valentões, das mandingas, das ruas, dos folguedos, dos conflitos sociais, enfim, é a Angola que continuará a ser a ‘arte negra’, elemento da cultura popular. A Capoeira Regional, apresenta-se como moderna, sistematizada, asséptica, eficiente, disciplinadora, uma boa forma de treinamento, apropriada para as academias, um verdadeiro ‘esporte de brancos’, que atende às necessidades do novo homem brasileiro”23.
Sobre essa caracterização da Capoeira Angola como coisa “ da rua’, recorremos outra vez a Roberto da Matta, quando este afirma que em sua sociologia, “ a categoria rua, indica basicamente o mundo, com seus imprevistos, acidentes e paixões, ao passo que casa, remete a um universo controlado, onde as coisas estão nos seus devidos lugares” ( DAMATTA, 1997, p. 90). Se considerarmos a partir de um ponto de vista racial, a determinação do Mestre Bimba em “somente aceitar como alunos pessoas que tivessem ocupação, fossem estudantes ou trabalhadores’ e “ proibir que [ seus alunos] freqüentassem a roda de Angola e de rua, para não se misturarem com possíveis ‘maus elementos’”(D´ANDRADE, 2006, p. 58), podemos perceber quais tipos de “coisas” eram colocadas em quais “lugares”.
A Capoeira Angola, ainda que tenha se utilizado de alguns espaços sociais negociados pelo pioneiro da Capoeira Regional, não se adaptou perfeitamente ao novo formato da Capoeira “produto cultural”, e “quem não se adapta, é massacrado pela impotência econômica, que se prolonga na impotência espiritual do isolado” ( ADORNO, 2002,pp.25-26). Nesse sentido, podemos entender o pesquisador da Capoeira Frede Abreu, quando afirma em entrevista dada para a nossa pesquisa que
“Na medida em que ela [a Capoeira Angola] entra em decadência, somem esses mestres antigos, Waldemar, Cobrinha Verde, eles estão sem condições nem de ensinar nem condições de fazer reproduzir a herança deles, você não tem uma renovação da Capoeira Angola , não é uma coisa jogada mais por jovens, nessa época em que eu entrei na Capoeira, eram pessoas antigas que jogavam a Angola,”.
A sistematização da Capoeira Regional, com a abertura das academias, a nova metodologia de ensino, as graduações, as formaturas, as apresentações, as lutas de ringue, a esportivização, a ligação com a Educação Física, traduziram a Capoeira para uma linguagem acessível às elites, superando (ou possibilitando a superação) dos antigos preconceitos sociais contra a Capoeira, tornando-a produto cultural bem aceito, comercializável e mesmo muito lucrativo. No entanto, ao tornar a Capoeira um produto cultural, o Mestre Bimba não pôde, ele mesmo, tornar-se um “produtor cultural”, ou para melhor definir o sentido que pretendemos dar a esse termo, não pôde tornar-se um “capitalista cultural”, tendo ficado a produção dos grandes eventos, das emissões radiofônicas (e posteriormente as televisivas), a autoria dos livros, a fundação dos grupos internacionais de Capoeira e dos grupos folclóricos, bem como os cargos direcionais das entidades fundadas para reger a Capoeira-esporte, nas mãos dos médicos, advogados, cirurgiões e posteriormente, dos professores de educação física e folcloristas multinacionais, tendo restado ao Mestre Bimba, e a muitos outros mestres negros da Capoeira Regional, o papel de “ prestadores de serviço” cultural, vítimas da mesma trajetória comum aos mestres angoleiros.24
Frede José de Abreu, economista, é um dos principais pesquisadores da Capoeira na atualidade, iniciou suas pesquisas em 1975, envolvido com a nata da Capoeiragem baiana. Participou da organização, em 1980, de um seminário nacional sobre a Capoeira, do qual participaram os Mestres João Grande, João Pequeno, e os mestres Canjiquinha, Cobrinha Verde, e Paulo dos Anjos, então ainda vivos. Trabalhou em diversos projetos sociais referentes à Capoeira, no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, na Fundação Visconde de Mauá, e atualmente no Projeto Mandinga, onde dirige o Instituto Jair Moura, maior acervo internacional de documentos diversos sobre Capoeira. Frede é autor de livros como, Bimba é Bamba, O Barracão do Mestre Waldemar, A Capoeira Baiana no Século XIX, além de dezenas de artigos. Participou da fundação da Academia do Mestre João Pequeno, em 1983, e da re-organização da Academia do Mestre Canjiquinha, na mesma época25.
Para Frede Abreu, ainda sobre a decadência da Capoeira Angola,
“Agente associa isso também ao processo de decadência da Academia do Mestre Pastinha, também coincide ao desaparecimento da roda da Liberdade, do Barracão do Mestre Waldemar, depois da década de sessenta, mas o básico pra se olhar isso é a academia do Mestre Pastinha.(...) A Regional era coisa jogada mais por jovens, da classe média, nessa época, a vitalidade estava mais visível na Capoeira Regional. A Angola, agente tinha a idéia de que ela estava no recolhimento, refratária, não tinha renovação, eram muito poucas pessoas, e era uma coisa restrita à Bahia, depois é que vem essa expansão. (...)Começam a aparecer angoleiros em outras partes do país, e até conversão de caras que eram da Regional ou de outra Capoeira para a Angola.”
Também os outros entrevistados situam o momento crucial da decadência e do ressurgimento da Capoeira Angola no período imediatamente posterior à morte do Mestre Pastinha. Para o Mestre Jogo de Dentro, Jorge Egídio dos Santos, nascido em Alagoinhas, tendo vindo menino para trabalhar em Salvador, formado pelo supracitado Mestre João Pequeno, (aluno do Mestre Pastinha), e que estava dando os seus primeiros passos na Capoeira justamente nessa época,
“ Alguns capoeiristas da época, jovens, criticavam a Capoeira Angola, era coisa de velho, coisa do passado, que não existia mais, que agente estava perdendo tempo.e de certa forma isso nos fortaleceu. E muitos Angoleiros ficaram sem espaço, como esse pessoal mais velho não queria abrir mão, não queria seguir a Capoeira do momento, muitos resolveram ficar afastados, muitos foram pro interior, muitos foram cuidar de suas famílias, porque as pessoas não estavam valorizando.”
O depoimento do Mestre reforça as indicações, de que pesava sobre a Capoeira Angola, o estigma de expressão cultural atrasada, retrógrada, que tendia a desaparecer. Outro mestre entrevistado, o Mestre Valmir, da Federação Internacional de Capoeira Angola, iniciava-se também na mesma época, como aluno do Mestre Moraes, no GCAP. Natural de Salvador, recorda o período em que iniciou-se na Capoeira Angola, quando o isolamento vivenciado pelos artífices da Angola, solidificava-se como fragilidade material:
“O GCAP tinha uma forma de ser dirigida internamente, com comissões, e aí a gente foi a campo, pra ver qual era a situação desses mestres, visitar, saber de suas histórias, agente via o abandono em que essas pessoas estavam, muitas vezes em residências que não tinham estrutura digna para um ser humano, e ao meu ver essa é a decadência de pessoas que tanto deram e tão pouco tiveram como é o caso recente do Mestre Leopoldina.”
O Mestre Moraes, Pedro Moraes Trindade, soteropolitano nascido em 1950, é citado unanimemente pelos demais entrevistados, como personagem fundamental no processo de re-fortalecimento da Capoeira Angola. Ironicamente, foi levado à academia do Mestre Pastinha ainda menino, pelo próprio pai, que sonhava em ter um filho capoeirista. Na década de setenta, Fuzileiro Naval, vai para o Rio de Janeiro cursar a Escola de cabos da Marinha, onde se decepciona com a vida militar:
“Comecei a tomar consciência que a vida militar não era meu lugar, era um paradoxo, eu capoeirista, sendo militar na década de setenta diante daquela situação. Foi quando eu comecei a me envolver mais com a história da Capoeira, com a história sócio- política da Capoeira, aí saí da marinha, fui pra a faculdade estudar. Me formei em letras em 87, atualmente sou mestrando em história Social pela Ufba”
Em 1980, funda o Grupo de Capoeira Angola Pelourinho, retornando a Salvador em 83, transferindo para a Bahia a sede do grupo. É nessa época que se envolve integralmente na missão de resgatar a Capoeira Angola e seus mestres, desde o ostracismo, até o reconhecimento social devido:
“ Eu fui, não gosto nem de falar isso, é muita pretensão, mas eu diria que eu fui um comandante, um general nesse processo , porque quando eu retornei do Rio de Janeiro pra Salvador, em 1983, a Capoeira Angola estava em total decadência na Bahia. Eu vi o Mestre João Pequeno, ensinando Capoeira aqui no Forte, eu vi o Mestre Virgílio, ensinado Capoeira na Fazenda Grande, o Mestre Paulo dos Anjos, mais ou menos por aí. Mas mesmo esses mestres, estavam desacreditados neles mesmos , enquanto praticantes de Capoeira Angola, e adotando identidades que não era deles, e eu resolvi lutar contra isso, chamar a atenção deles para o valor que eles tinham nesse processo de preservação da Capoeira Angola, pelo menos até aquele momento, e que eles não deveriam recuar, que deveriam continuar na luta para que a Capoeira Angola voltasse a ter a força que ela sempre teve antes na Bahia, e que inclusive motivou a criação de um outro estilo de Capoeira, que é a Capoeira Regional. (...)E consegui aglutinar aqui dentro no Forte26, no nosso espaço antigo , a maioria desse Mestres de Capoeira, que já estavam no ostracismo, Mestre Waldemar, Mestre Bobó, e muitos outros .Eu tenho isso documentado essa coisa desses Mestres que voltaram para a Capoeira. Mestre João Grande, por exemplo, que nesse momento já não estava praticando Capoeira e nem ensinando, eu trouxe ele de volta para a Capoeira. (...)Lutei briguei, dei muito a cara a tapa por tudo isso.”
O trabalho do Mestre Moraes no Forte de Santo Antônio vai ser fundamental para o resgate da Capoeira angola, seja por servir como incentivo para que os velhos mestres voltassem a sentir-se valorizados pelos seus conhecimentos referentes à Capoeira, como pelo efeito repercutido nos novos estudantes de Angola, que então iniciavam-se em sua prática, como podemos perceber no depoimento do Mestre Jogo de Dentro:
“ O Mestre João Pequeno, o Mestre Moraes, o Mestre Curió, o Mestre Canjiquinha, o Mestre Paulo dos Anjos todos eles tiveram um papel muito importante pra que a Capoeira Angola não desaparecesse, mas dentro desses mestres todos, na década de oitenta, o Mestre Moraes, pela visão que ele teve de chamar todos esses mestres, muitos já fora de atividade, e ele chamou pra os eventos aqui no Forte, onde ele reunia muitos Mestres, Papo Amarelo, Grandão, Paulo dos Anjos, vários, João Grande, Curió, todo esse pessoal tava lá. (...) Eu acho que esses eventos mostraram que tinha uma força muito grande ali, que só era ter oportunidade e daí que veio o incentivo a essa nova geração, que é a minha, que se dedicou a treinar mais, a valorizar mais, pra manter a Capoeira Angola.”
A partir de então, mesmo que sem nenhum caráter associativo ou federativo característico de por exemplo, uma entidade sindical, o processo de resgate da Capoeira Angola vai se disseminando como um movimento, quando os Mestres passam a falar sobre suas experiências enquanto Capoeiristas e os jovens capoeiristas vão repercutindo a absorção desse conhecimento em suas trajetórias. Nesse ponto, sugerimos que, dentro da percepção Thompsoniana referente às classes sociais, aplicando-as ao cenário cultural baiano dos oitenta:
“ A classe acontece quando alguns homens como resultado de experiências comuns ( herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem ou se opõem aos seus.(...) A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores e formas institucionais.”27
E outro ponto do depoimento de Frede Abreu reforça essa proposição:
“ Renê, na época tinha uma coluna na Bahia, no Jornal A Tarde, e o René batia muito forte na Capoeira Regional e isso dava uma certa visibilidade à Angola.(...) A verbalização do discurso da Angola, e nisso o Moraes é fundamental, a Janja, a Paulinha, são pessoas que são universitários, você já tem um discurso acadêmico sobre a Capoeira, e eles respondem muito bem a isso. (...)O próprio acirramento da discussão entre Angola e Regional, o angoleiro consegue reverter o discurso favorável a ele, de certa forma ela passa a ser a Capoeira politicamente correta, que a Capoeira Regional era coisa de branco, descaracterização, vem esse discurso da pureza, a volta da discussão das origens novamente se remetendo a África como elemento que está ligado às raízes da Angola.”
Nesse período, percebe-se uma apropriação, por parte dos angoleiros, de um aparato instrumental que é próprio também, da indústria cultural, da linguagem e do formato necessário para traduzir o conteúdo da Capoeira Angola para um público mais amplo, tornando-o também produto passível de negociação intersocial. No entanto, novos fatores são importantes de ser fixados para uma maior apreensão do processo: primeiro, o fato de essa linguagem, bem como os espaços e produtos da reprodução discursiva e mesmo da reprodução material do conteúdo Capoeira Angola, como palestras, eventos, Cds, DVDs, apresentações, projetos de captação de recursos, entre outras coisas, estarem basicamente sob o controle dos próprios angoleiros, que aliaram o papel de mestres da cultura, ao de produtores culturais, no sentido novamente, de serem eles mesmos os capitalizadores dos recursos provenientes de sua prática ( e isso independente do montante ). Segundo, que esse processo está inserido no contexto de empoderamento da comunidade negra no Brasil, quando o negro passa a disputar acesso em áreas antes restringidas, a partir do final da década de setenta, que coincide com o momento de abertura democrática da política nacional, quando uma ampla gama de discursos, práticas e comportamentos passam a obter e exigir espaços sociais. Coincide ainda com um momento de grande crescimento econômico da Bahia, com a criação do Pólo Petroquímico de Salvador e do Centro Industrial de Aratu, que abrem muitos postos de trabalho e geração de renda para essa comunidade negra em processo de empoderamento político. E o depoimento do pesquisador Frede Abreu traz mais indicativos dessa contextualização:
“O movimento da Angola, também é tocado pela classe média, mas com a participação muito grande de uma classe média negra, e na época da Regional a elite negra não estava muito aí para a Capoeira, ela queria mais era se livrar dessa tradição, ou pelo menos manter ela escondida, você vê algumas poucas pessoas, como o Abdias do Nascimento, que pensavam diferente.(...) A Capoeira Angola vem também em um momento econômico diferente, no qual a Capoeira já está estabelecida, você já tem um comércio dentro dela, o processo das academias já funciona, já é normal você cobrar uma aula de Capoeira, natural, então ela responde favoravelmente a esse processo de modernização da Capoeira quando se achava que ela não teria condição de responder, que ela se acabaria, que esses ritos que são tradicionais da Capoeira Angola, os discursos, seus elementos, não seriam compatíveis com a modernidade.”
O Mestre Valmir atesta em relação ao seu grupo:
“O registro acontece logo depois[da fundação do grupo-FICA], pois hoje em dia pra você como instituição estar dentro do sistema, pra você ter acesso a determinadas coisas que começam a surgir, você precisa estar registrado, ter seu estatuto, ser reconhecido na prefeitura , pra fazer um projeto, fazer um evento, fazer uma parceria.”
O resgate da capoeira Angola é conduzido pelos próprios angoleiros, diz o Mestre Moraes:
“ No caso da Capoeira Angola, ela fez isso [a revitalização] no peito, com a força de sua ancestralidade, da sua religiosidade e a Capoeira Regional teve todo o suporte do poder, do Estado, e você pode ver que até hoje a Regional está nas escolas de primeiro e segundo grau, nas universidades e a Angola até hoje não.”
A movimentação negra que se organizava no país, também repercutiu no movimento de revitalização da Angola, assim como os movimentos feministas, entre outros, que trocaram influências com o mundo da Capoeira. Em seus documentos para a formação de quadros, de (MNU, 1988, p.54) o MNU28 já citava a Capoeira como luta de resistência negra, e tinha no resgate das expressões culturais negras, importante vetor organizacional, de que são exemplos os blocos afro. Embora os Mestres entrevistados não se declarem como participantes do Movimento Negro institucional, são unânimes em afirmar a influência ( e mesmo a participação, enquanto apoiadores), das mobilizações raciais dos anos 80 e 90. Frede Abreu, ainda que reforce a importância dos movimentos internos da Capoeira Angola no processo estudado, considera grande a influência das lutas raciais no movimento de resgate da Angola:
“O movimento negro dá o discurso, na revitalização da Angola, principalmente se você considerar o GCAP que é uma instituição forte nesse processo de revitalização da Angola, até hoje ele faz esse discurso, não só ele como a FICA a n´Zinga, Boca do Rio, qualquer evento que você vai deles, esse discurso é bem claro. O Curió já fazia isso, o João Pequeno tinha o negócio assim: ‘não é a questão do negro com a Capoeira, é questão do branco com a Capoeira’. (...)Vem vários discursos cruzados, mas esse do movimento negro é bem expressivo. Todas as festas, efemérides ligadas a movimento negro, o GCAP estava presente, tinha esse interesse de mostrar que Capoeira é isso, teria uma função política quase que essencialista, o próprio movimento negro, se você olhar, quase que não faz referência ao Bimba, é só o Mestre Pastinha, Capoeira Angola”
O Próprio Mestre Moraes declara que:
“ Nos não desvinculamos a Capoeira da ligação racial, ancestral, e essa ancestralidade da Capoeira é africana, e isso me leva a tentar explicar para os meus alunos o significado dessa gama de elementos que estão hoje na Capoeira Angola, vertentes da Capoeira como filosofia, como história, como religiosidade, eu só vejo essas vertentes como sendo de matriz africana.(...) Eu tenho consciência do espaço que eu ocupo enquanto afrodescendente, e oriento meus alunos tanto na Capoeira quanto na escola, sobre como eles devem ocupar os seus espaços na sociedade, mas eu vejo um carnavalização em alguns setores do movimento negro, sem generalizar. Eu leio muito os autores negros norte-americanos, sou fã incondicional no Brasil de Abdias do Nascimento e nos Estados Unidos de Malcom X, entendo a postura de Luther King, mas prefiro estar ao Lado de Malcom X*, a liberdade do povo negro não vai ser conseguida com conversa.”
Essa postura é continuada pelos jovens Mestres da Angola, seja o Mestre Valmir, que embora desligado do GCAP, tenha iniciado sua trajetória enquanto aluno do Mestre Moraes:
“Desde o início, agente trabalha com palestras, onde agente discute temas diversos. A coisa não fica somente em ginga, negativa e toque de berimbau. Essa relação com parceiros que vêm na FICA e que vêem a Capoeira Angola como um movimento de resistência do povo africano, e agente fala da nossa história, de como nós chegamos aqui no Brasil, o caminho que trilhamos enquanto instrumento de resistência. (...) Essa preocupação vem desde o início do grupo e certamente porque agente vem de uma escola, o Gcap, que sempre teve essa prática.”
Também o Mestre Jogo de Dentro oriundo da academia do Mestre João Pequeno cita que, na sua opinião:
“ A Capoeira Angola ela vem do negro, vem da periferia ela vem de pessoas que sempre foram perseguidas pela sociedade e você tem de perceber que todo esse processo é de sofrimento e muitos estão praticando a Capoeira só pelos movimentos”
Se nos Estados Unidos, a febre do Rock n´ Roll levou muito dos jovens brancos americanos, a encontrar o jazz e o blues, na busca pelas raízes do rock, a Capoeira Angola também contou com a procura crescente de muitos praticantes não ortodoxo da Capoeira Regional, em busca de conhecer melhor aquela Capoeira que era tida como Capoeira-Mãe, e que como cita a Mestra Janja “na faculdade nos diziam não mais existir29”. Nesse sentido, os Mestres antigos, bem como os jovens Mestres da Angola, passaram a ser freqüentemente convidados para realizar oficinas e palestras nos eventos da Regional, “ Você não faz evento hoje, de Angola ou Regional, que não se leve um angoleiro”, diz Frederico Abreu.
A Capoeira Angola passou a representar fonte de renda para muitos Mestres. A partir dos anos noventa, alguns Mestres se fixam no exterior (como é o caso do Mestre João Grande, que resgatado pelo Mestre Moraes do posto de gasolina onde trabalhava, fixou residência em Nova York em 1994, tendo posteriormente recebido o título de Doutor Honoris Causa pela universidade de Upsaala, e sido recebido mais de uma vez na Casa Branca) e outros que embora continuem no Brasil fazem viagens freqüentes para visitar núcleos dos seus grupos espalhados no exterior. O GCAP, do Mestre Moraes, tem sede em três estados Brasileiros e no Japão, o grupo Semente do Jogo de Angola, do Mestre Jogo de Dentro, tem filiais em quatro cidades brasileiras, além de sedes no Canadá e na Itália, A Federação Internacional de Capoeira Angola, coordenada pelo Mestre Cobra Mansa e pelo Mestre Valmir, tem sede em quatro estados brasileiros, em onze estados norte-americanos, duas sedes na França, além de sedes no México e no Japão. Os três Mestres entrevistados, realizam regularmente encontros em que reúnem capoeiristas de todo o mundo bem como de participantes dos núcleos internacionais de seus grupos. Do mesmo modo, os três grupos tem Dvds e Cds lançados no mercado, tendo sido o Gcap, do Mestre Moraes , o primeiro grupo de Capoeira do mundo a disputar o Grammy, na categoria World Music, em 2004. em outro vetor, os grupos estão também envolvidos em projetos sociais destinados à formação de cidadania em comunidades carentes através da Capoeira.
O Mestre Jogo de Dentro e o Mestre Valmir, vivem da Capoeira Angola, (e vivem para a Capoeira Angola), a partir de recursos gerados pela venda de instrumentos musicais, de aulas, palestras, oficinas, Cd´s, Dvds, entre outras coisas. O Mestre Moraes, tem uma opinião crítica sobre essa relação, “Eu sou radicalmente contra o Mestre que decide sobreviver de Capoeira, porque ele fica refém de aluno e das pessoas que convidam ele para eventos.” No entanto, é constatável o fato de que a simples possibilidade de que alguns Mestres tirem o seu sustento da Capoeira Angola, representa uma nova conjuntura, onde o conhecimento do Mestre Angoleiro é moeda de troca e via de ascensão social de pessoas que de outro modo, talvez não reunissem instrumentos para realizar essa ascensão, como expõe o Mestre Jogo de Dentro:
“Foi a Capoeira Angola que me deu oportunidade de descobrir esses valores, toda essa história, do sofrimento, da maldade eu descobri através da Capoeira Angola.(...) Hoje muita gente da sociedade me respeita porque não tem como não respeitar, mas antigamente, como negro, com o cabelo Rastafari, era difícil e hoje eles são obrigados a vir apertar minha mão. (...)Eu consegui sair de uma situação que poucos conseguem sair, mudei a história, mas sem passar por cima daquilo que eu acredito, da minha história, e isso é importante.”
O Mestre Valmir, ainda comenta o impacto social positivo que essa ascensão social via Capoeira Angola pode ter, a nível comunitário:
“É outro tipo de referência e ele [ o jovem da comunidade] pode ver um educador, uma pessoa que deu certo, uma pessoa que viaja, que mantém sua família através da cultura, que consegue, mesmo morando na comunidade, melhorar seu padrão de vida.”
Esses Mestres e grupos, foram escolhidos para a nossa pesquisa, devido à sua representatividade no processo estudado, no caso do Mestre Moraes, e pela posição de refletores e continuadores diretos do início da revitalização da Capoeira Angola, também pioneiros em um processo realmente muito novo, que é o da expansão internacional da Capoeira Angola no caso dos Mestres Jogo de Dentro e Valmir. Entretanto, muitos outros Mestres de Capoeira Angola poderiam estar sendo citados tanto para exemplificar a reestruturação da Angola em território nacional, quanto pelo fato de seus grupos possuírem sedes em outros países e continentes. Evidentemente, a Angola não alcançou, e talvez nem pretenda, o mesmo patamar de expansão e resposta econômica da Regional, ainda que tenha conseguido construir pequenas estruturas de auto-reprodução ( discursiva e material) e disseminação, geração de renda, e em muitos casos, de emprego. Mesmo a atual conjuntura internacional da Capoeira Angola, é vista com preocupação pelos Mestres entrevistados, entre os quais citamos o Mestre Moraes:
“Eu não considero como crescimento isso que está aí, pra mim é um inchamento.(...)O boom que aconteceu da Capoeira Angola, um tempo depois da Regional. (...) As pessoas não conheciam a Capoeira Angola fora do Brasil, começaram a se interessar por ela, e a Capoeira se tornou um passaporte e as pessoas, sem generalizar, saíram do Brasil pra ensinar a Capoeira Angola, sem um mínimo de conhecimento, e eu afirmo que a grande maioria não tem esse conhecimento. Eu falo isso, eu estou falando de uma Capoeira Angola dotada de elementos subjetivos. (...) Mas eu queria é que o mestre de Capoeira tivesse a condição de verbalizar o sentimento da nossa cultura, a Capoeira Angola, para pessoas de outras culturas, eu tenho ido para vários lugares do mundo e o que eu tenho visto, é uma limitação muito grande, dos Mestres de Capoeira. Eu falo isso relacionando ao título, você se voltando para as culturas orientais, um Mestre estrapola a prática, e é isso que eu cobro dos Mestres, que eles estrapolem a prática, que ele tenha condição de jogar Capoeira fora da roda.”.
Nesse sentido, nos parece que ainda há muito a ser conquistado pela Capoeira Angola, para que o seu processo de globalização se dê tendo como base a qualidade e não a quantidade, como é a preocupação expressa pelos mestres. O governo brasileiro tem, desde 2006, lançado editais públicos de financiamento para projetos relacionados à capoeira ( não determinando estilo de Capoeira), bem como Editais de reconhecimento oficial aos Mestres das culturas populares, que terminaram por contemplar alguns Mestres de Capoeira Angola30. È novamente o Mestre Moraes, que vai apresentar uma visão crítica, que busca perceber além das aparências:
“ Eu não acredito que seja fácil uma relação harmônica entre o Estado e a Capoeira porque quando isso acontecer, a Capoeira vai ter deixado de ser Capoeira. Eu fico com o pé atrás quando o Estado, quer apoiar a Capoeira. O que foi que houve para um estado que sempre foi inimigo da Capoeira, e a Capoeira também sempre inimiga do Estado, querer apoiar a Capoeira? Eu temo pela cooptação, que os capoeiristas já tenha sido cooptados o bastante, para que o Estado já não tenha medo da Capoeira.eu não acredito na possibilidade de uma relação não conflituosa entre o Estado e a Capoeira”.
O Mestre Curió, dirigindo a Associação para o Desenvolvimento Sócio-Cultural do Capuêra Angola (ADESCCA), vem se destacando, na reivindicação dos direitos dos angoleiros, mobilizando capoeiristas e políticos contra as investidas dos conselhos de educação física que se arvoram no direito de fiscalizar a prática da Capoeira, entre outras atividades físicas. Cobrando do governo medidas como a aposentadoria do velho mestre de capoeira. Além disso, lutando pela cessão de passaporte especial para os Mestres, que são verdadeiros embaixadores culturais do Brasil, promovendo a cultura nacional em todo o mundo, gerando renda através do turismo. Isso demonstra que os Angoleiros, cada vez mais estão buscando organizar-se em torno de demandas comuns, articulando-se a partir das experiências coletivas, buscando não deixar reproduzir-se um passado, onde era comum a morte na miséria dos Mestres Angoleiros.
Nas palavras do próprio Mestre Curió, nos seus mais de sessenta anos dedicados à Capoeira: “ Nosso Senhor é do Bom Fim, o bom começo fazemos nós!”
CONCLUSÃO
Expressão pertencente ao arcabouço cultural da população africana e descendente de africanos no Brasil, a capoeira, manifestação própria do povo negro, integrado à sociedade brasileira enquanto escravo( e portanto portador de status social negativamente diferenciado), esteve sempre sujeita a uma relação de ‘negociação e conflito’, com essa sociedade na qual se insere. Negada e perseguida enquanto tradição rebelde do povo escravo, representou grande incômodo para as classes dominantes dos centros urbanos coloniais e do Império, sempre tratada e vista como objeto de repressão, ainda que tenha sido por muitas vezes, utilizada politicamente eu uma relação de capangagem.
Mesmo após a abolição da escravidão e a proclamação da república, o elemento negro brasileiro permaneceu marginalizado e socialmente inferiorizado, sujeito a controle do Estado e objeto de acirradas discussões acadêmicas e políticas a respeito de modelos ideais para que se desse a sua integração nacional efetiva. Criminalizada no Código Penal de 1890, a Capoeira praticamente se extinguiu no Rio de Janeiro, em decorrência da forte repressão policial sofrida durante a 1ª República.
O mesmo período, na Bahia, é marcado pela consolidação do processo de ritualização da prática da Capoeira, característica singular da capoeiragem baiana, que vai diferenciá-la das demais e ser, possivelmente, fator responsável por sua sobrevivência e disseminação em outros estados.
Com a criação da Regional,em 1930, a capoeira entra no Estado Novo, iniciando um processo de renovação e adaptação, através da inserção em sua prática, de golpes de outras lutas, bem como de metodologias e perspectivas desportivas provenientes de outras artes marciais, o que vai possibilitar a superação progressiva de preconceitos raciais e classistas contra a sua prática, tornando-a em manifestação cultural e esportiva aceita pelas elites baianas e nacionais.
Em caminho inverso ao da Regional, que nessa época vivenciou franca expansão apoiada no discurso oficial de confraternização das raças formadoras do Brasil, e em uma perspectiva do esporte e da educação física enquanto formadores de cidadania e civismo, a Capoeira Angola vivencia uma progressiva desestruturação e decadência, que tem sua culminância com a morte do Mestre Pastinha, a extinção da maioria das rodas e o afastamento de mestres e praticantes.
A Capoeira angola não se adapta às formatações conduzidas pela capoeira Regional, que lhe possibilitaram tornar-se em produto cultural comercializável, assimilado pelas elites e veiculado pela mídia. A Angola é caracterizada então, como depositária das referências africanas e negras na capoeira, destoante do processo de afirmação da brasilidade e da identidade nacional miscigenada apregoada pelo Estado Novo e continuado pelo Golpe Militar de 1964. Essa não-adaptação vai corresponder ao seu isolamento e à não reprodução de sua prática, exemplificada pela falta de alunos jovens que pudessem continuá-la.
Após a morte do Mestre Pastinha, em 1981, poucas são os grupos e academias que representam a permanência da Capoeira Angola, caracterizando mais, casos de resistência sócio-cultural, do que exemplificando uma possível vitalidade e renovação. São os casos dos Mestres João pequeno e Curió, que mantinham os seus trabalhos na época.
Com a vinda do grupo de Capoeira Angola Pelourinho, ( GECAP), em 1983, inicia-se uma fase de mobilização e auto-afirmação da Angola, tendo como principal organizador o Mestre Moraes, diretor do GECAP, que desde então, passou a realizar eventos de Capoeira freqüentes, tendo como metas, resgatar do ostracismo e do isolamento os velhos mestres da Angola, promovendo a valorização de seus conhecimentos e de suas vivências, além de buscar a valorização da capoeira Angola como um todo.
Inserida no contexto do dinâmico quadro social dos anos 1980, nos quais diversos setores populares e de classe média tentavam se mobilizar para melhor organizar de forma autônoma as suas demandas específicas, essa movimentação dos angoleiros tem no discurso da resistência política e social étnica negra, sua principal referência, estando a quase totalidade de suas manifestações a partir de então, embebidas desse discurso, quando não objetivamente militantes.
O processo de mobilização e valorização da Capoeira Angola promovido pelo GECAP, é citado pelos mestres Jogo de Dentro e Valmir Damasceno, além de pelo pesquisador e autor Frede Abreu, como tendo sido importante marco catalisador e incentivador, para que se formasse uma nova geração de praticantes de Capoeira Angola, incorporados na percepção positiva desta e na necessidade de seu resgate e preservação qualificada.
A partir do final dos anos 1980, inicia-se o processo de mundialização da Capoeira Angola, com a ida de alguns mestres para o exterior e a abertura, nesses países, de filiais dos grupos brasileiros. Nesse momento, evidencia-se a apropriação, por parte da Angola – enquanto conjunto de grupos- de uma série de linguagens e mecanismos comerciais próprios da indústria cultural, que possibilitam uma maior assimilação dos seus conteúdos, práticas e rituais, como livros, cd´s, dvd´s, palestras e eventos de cunho didático e integrador, que facilitam a disseminação desta Capoeira por indivíduos leigos e provenientes de outras culturas.
A Capoeira Angola está apta para ser consumida, por um público cada vez mais apto para consumi-la.
Entretanto, estando o processo de revitalização da angola, sintonizado com o processo de empoderamento social, político e econômico da comunidade negra brasileira, este tem se dado então, de modo a possibilitar a sua gerência e coordenação, por parte de indivíduos oriundos desta comunidade, a partir de pequenas estruturas organizacionais juridicamente fundamentadas, que têm podido garantir o controle comercial das atividades de produção cultural e dos produtos daí resultantes. Além disso, o controle da própria reprodução capoeirística, em se tratando de aulas, fabricação de instrumentos, lançamentos de livros, teses, apresentação de palestras, e principalmente, em se tratando do estabelecimento de suas significações morais, éticas, filosóficas e estéticas.
De todo modo, diversos inconvenientes quanto a esse crescimento mundial da Capoeira Angola, podem ser citados pelos seus mestres, como o surgimento de “mestres” auto-intitulados, incapazes de apreender a integralidade subjetiva da Angola, a violência resultante de disputa de prestígio, e mesmo a relação da Capoeira com o Estado, é vista com desconfiança por alguns mestres. Contudo, diversos níveis de parcerias entre as entidades da Capoeira Angola e os poderes públicos municipais, estaduais e federais, têm sido estabelecidos e tido importante papel para a preservação e disseminação qualificada da Angola.
Por outro lado, a busca por institucionalização e organização dos grupos de Angola, tem sido crescente, objetivando o maior controle e poder de diálogo dessas relações, além de cobrar investimentos públicos, a ação dos políticos, autonomia diante das tentativas de ingerência por parte das entidades reguladoras da Educação Física, e mesmo, direitos trabalhistas para os capoeiristas.
Com o presente trabalho, esperamos estar contribuindo para um estudo multifocado da História do Brasil, que valorize a percepção da cultura enquanto prisma para a observação das várias ‘cores’ e perspectivas que compõem essa história conflituosa, diversa, dinâmica e viva. Nesse sentido, acreditamos no papel do historiador enquanto investigador e partícipe da sociedade que estuda e transforma, citando o Mestre jogo de Dentro no que diz respeito a mudar a história, “mas sem passar por cima daquilo que eu acredito, da minha história, e isso é importante.”
Fontes
Orais:
Frederico José de Abreu ( Frede Abreu) Economista e pesquisador da Capoeira
Entrevista em Outubro de 2007 . 37 min, 57 seg
Jorge Egídio dos Santos (Mestre Jogo de Dentro)Mestre de Capoeira
Entrevista em novembro de 2007. 39 min, 30 seg
Valmir Damasceno ( Mestre Valmir)
Entrevista em Novembro de 2007. 39 min, 10 seg
Pedro Moraes Trindade ( Mestre Moraes) Professor de Inglês, mestrando em História pela Ufba. Entrevista em novembro de 2007, 57 min , 08 seg
Jornalísticas
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Jornal da Bahia, de 22/10/71, “ Pastinha, Tradição da Bahia em apuros’ ( Recorte sem indicação de número de página)
Jornal A Tarde, de 14/11/1981, “ Pastinha morre no abandono” ( Chamada de Capa)
Jornal Tribuna da Bahia, de 14/11/1981, “ Mestre Pastinha morre aos 92, como indigente”, Pág 06
Jornal Tribuna da Bahia, de 14/11/1981, “ Mestre Pastinha pede ajuda ( mas foi tarde demais)”, Pág 06
Jornal Correio da Bahia de 14/11/1981, “Morre Pastinha, um símbolo da cultura baiana ( recorte sem indicação de Número de página)
Jornal da Bahia, de 17/11/1981, “ A capoeira também perde a sua academia”, Pág 02
Jornal da Bahia, de 15/12/1981 “Missa de 30o dia pela morte de Mestre Pastinha”, pág 02
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Revista Praticando Capoeira, São Paulo: D+T, 2001, Número 16
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